Há um ano, eu tive a oportunidade de publicar artigo que versava também a respeito do “efeito borboleta” decorrente de atos de corrupção: as consequências, muitas vezes inimagináveis pelas partes, que podem atingir áreas imensas e previamente não-mensuradas. Isto é, as repercussões randômicas de tais atos, para muito além daquele específico negócio que porventura beneficie os envolvidos.
Ocorre que tal texto tratava de momento preliminar, antes político e socioeconômico do que propriamente jurídico. Contudo, devido a alguns dos debates que antecederam a divulgação da recente lista de inquéritos do STF, as preocupações assumiram outra dimensão, mais jurídica em sentido estrito. Muito embora a suma importância dos atos celebrados com o Ministério Público Federal e homologados pelo Judiciário, fato é que persistem algumas zonas de incerteza quanto às suas consequências.
Isso porque houve uma série de entrevistas e reportagens (além de artigos acadêmicos), as quais escancararam alguns potenciais problemas oriundos das delações. Por exemplo, a Advocacia-Geral da União e um dos advogados divergiram sobre os efeitos que elas poderiam gerar (inclusive, depois de homologadas judicialmente).
Contudo e em específico quanto à esfera federal, não parece haver dúvidas de que, quando a empresa e as pessoas físicas negociam e assinam o acordo, estão celebrando-o com a União – tornada presente no ato pelo Ministério Público Federal. Logo, uma vez que o STF homologa tais acordos, os efeitos de tal decisão judicial estende-se imediatamente a todos os órgãos e entidades que integram a União (incluindo-se aqui os três Poderes), os quais, muito embora não tenham participado ativamente das negociações, a ela se subordinam. Afinal, os órgãos e entidades federais podem ser autônomos e independentes, mas não são soberanos. Estamos a falar, sobretudo, de segurança jurídica.
Claro que algumas incertezas ainda estão para ser transpostas: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), por exemplo. Se porventura as negociações não tenham envolvido as minúcias de eventuais ilícitos concorrenciais, podem ser instalados processos naquela autarquia federal e desenvolvidos outros acordos de leniência – os quais deverão ser parametrizados e ter como referência de proporcionalidade os pactos firmados com a União (e homologados pelo STF). Afinal, versarão a propósito de repercussões das mesmas condutas (ao menos em sede primária de sua configuração). Isso além de se circunscreverem ao tema “direito da concorrência”, tal como de fato configurado pós-homologação dos acordos pelo STF. Ou seja, uma coisa é o mundo concorrencial antes do 11 de abril; outra, é o que temos hoje. O CADE haverá de se preocupar em resolver ativamente os problemas, não em criar outros tantos.
Porém, existe outro tema que exigirá atenção redobrada: as consequências dos acordos homologados pelo STF nas esferas estadual e municipal. Por exemplo, pense-se em específico depoimento que mencione ato indevido no seio de sociedade de economia mista municipal. Esse ato poderá repercutir em múltiplos sujeitos, contratos e instituições. Quais seriam, ao nível municipal, as decorrências do ato celebrado como Ministério Público Federal e homologado pelo STF?
Isto é, será que o Ministério Público estadual, ou demais órgãos e entidades das administrações municipais e estaduais, ao se deparar com atos e contratos supostamente ilícitos nestas esferas, estarão impedidos de atuar em razão das decisões homologatórias do STF? Haverá limites subjetivos e/ou objetivos? Mais: estarão as autoridades de outras esferas federativas pautadas pelo Ministério Público Federal? Aqui, existem problemas jurídico-federativos de envergadura.
Em que pese o princípio da unidade do Ministério Público, fato é que o estadual não se subordina ao federal. Ambos são titulares privativos das respectivas ações penais. Da mesma forma que um acordo de colaboração celebrado pelo Procurador-Geral de Justiça estadual não vincula o Procurador-Geral da República em face da suas competências específicas, exige-se a reciprocidade. Mais ainda: as procuradorias das empresas estatais, bem como as autárquicas, municipais e estaduais, como devem se comportar? Podem se valer do acordo de colaboração para voltar-se contra o colaborador? Precisam respeitar o que foi pautado com o Ministério Público Federal?
A toda evidência, toda essa série de peculiaridades poderá gerar consequências imprevisíveis, como no caso do “efeito borboleta”. Mas, uma coisa é certa: necessitamos nos preocupar com a segurança jurídica, com a proporcionalidade, assim como com o sistema de incentivos às colaborações premiadas (bem como os direitos de terceiros porventura por ela afetados). Igualmente, necessário se faz o respeito à decisão do STF, ao trabalho do Ministério Público federal e, por que não dizer, à efetiva colaboração dos envolvidos. Caso essas premissas sejam frustradas, não haverá outras colaborações e o sistema de investigação criminal voltará aos tempos em que não se desvendavam alguns dos ilícitos que hoje estão na ordem do dia. Os desafios estão lançados.
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