A ideia que temos de democracia, o governo do povo em que os governantes perseguem o bem comum, lamentavelmente não equivale à sua prática. Como demonstra o processo de impeachment, o exercício da democracia nem sempre corresponde aos nossos ideais.
O impeachment é a mais severa pena política. Existe um abismo entre ele e o recall, que é atinente a temas políticos (revoga-se o mandato porque o eleito não cumpriu o prometido). Mas o recall não tem abrigo em nossa Constituição. Já o impeachment destina-se a punir aquele que cometeu delito gravíssimo: o de responsabilidade. Uma vez apurado, o Senado está apto a julgar se o crime cometido enseja o impedimento. Essa sanção político-penal é a pena capital na vida política: equivale ao degredo, ao exílio – senão à morte. Estamos falando de algo excepcional, portanto.
Ocorre que, no impeachment, o político e o jurídico são embaralhados. Este determina que as Casas do Congresso apliquem a Constituição: todas as votações devem respeito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Também o conceito de crime de responsabilidade advém da Constituição e das leis que o definem. Mas, a partir deste ponto, o jurídico torna-se menos visível.
Afinal, são os membros do Legislativo que avaliam se os atos praticados são crimes. Os julgamentos são coletivos, realizados por leigos, no calor do processo (e das ruas). Os votos tendem a não se submeter à razão, mas à emoção. Aqui, são expostas as vísceras da nossa democracia. A votação na Câmara demonstrou que boa parte dos deputados não dá a mínima para o crime de responsabilidade. O relevante é a propaganda para as próximas eleições (ou o cumprimento de promessas). O que realmente importa – o efetivo exame da prática de crime – foi deixado de lado.
Contudo, isso não torna o impeachment um golpe de estado. Cada congressista vota de acordo com sua consciência – e isso confere legitimidade ao resultado, que advém de processo juridicamente válido. O crime é jurídico, mas os votos são políticos. Assim, as teses de situação e oposição se equivalem: uma, ao dizer politicamente que houve crime de responsabilidade; outra, a defender politicamente que o processo é um golpe. São os dois lados do espelho; as duas faces da mesma moeda. Essa é a nossa democracia posta em prática; a vida como ela é...
*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve mensalmente, para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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