Como se sabe, a Constituição brasileira exige a aprovação em concurso como requisito à investidura em cargos e empregos públicos. A norma vem expressa no art. 37, inc. II, sem margens para dúvidas (“a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”). Trata-se de matéria constitucional com aplicabilidade imediata, que não pode ser nem mesmo atenuada pelo legislador ordinário.
A exigência surgiu no art. 170 da Constituição de 1934 e foi reiterada, com poucas variações, na Carta de 1937 (art. 156); na Constituição de 1946 (art. 186); na Constituição de 1967 (art. 95) e respectiva Emenda Constitucional nº 1/69 (art. 97).
O fato de ter sido positivada na Constituição de 1934 é revelador: até então, era livre a investidura quando a Administração Pública era o contratante. Isso havia feito com que, sobretudo devido à migração para os centros urbanos, os empregos públicos se tornassem moeda de troca na captação de votos e favores governamentais. Se, nas zonas rurais, os coronéis controlavam os votos e o sistema de arranjos políticos, as classes médias urbanas (especialmente nas regiões não-industrializadas) desenvolveram um nicho empregatício no setor público, dando origem àquilo que Hélio Jaguaribe denominou de Estado cartorial, assim descrito por Celso Lafer: “um compromisso pelo qual as elites dominantes, através da cooptação, colocaram a classe média na administração pública, que funcionava para outorgar legitimidade ao sistema. Assim, essa administração pública se ampliou, inchando-se para atender não às necessidades operacionais do sistema, mas às suas variáveis de participação, ou seja, para absorver uma classe sem função econômica mas com peso político, que precisava de emprego. Era, pois, o regime do voto de favor barganhado pelo emprego de favor.” (JK e o programa de metas (1956-61). Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 32).
O processo seletivo mediante concurso prestou-se – e ainda se presta – a tentar inibir tais abusos e favorecimentos indevidos. Inicialmente, havia alguns concursos sérios e outros tantos fantasiosos, simulados, que se destinavam unicamente a presentear parentes e amigos com a estabilidade do emprego público. Aliás, não se precisa ir muito longe, pois as fraudes permanecem: em 2014, o Superior Tribunal de Justiça confirmou a nulidade de concurso promovido no Distrito Federal, em que um dos membros da banca examinadora era irmão do candidato classificado em primeiro lugar (AgRg no RMS 24.980). É a duras penas, portanto, que o concurso público vem se consolidando como forma republicana de se prestigiar um sistema meritocrático para a seleção de servidores públicos estáveis.
Contudo e como não poderia deixar de ser, a sua forma de realização foi originalmente imaginada para a Administração Pública do início do século XX. O sistema era relativamente simples, pois concebido para certames de pequena dimensão e baixa complexidade – seja devido ao tamanho da máquina administrativa, seja em razão das dificuldades de acesso (quer das informações do concurso, quer da distância para a sede das provas, quer da qualificação exigida). Assim e de usual, a própria Administração escolhia a banca examinadora dentre servidores mais probos e de notório conhecimento – com um ou outro convidado externo. Estes reuniam-se, elaboravam as provas, as aplicavam e lançavam as notas em pouco tempo. As questões versavam sobre a matéria de fundo: o conhecimento do tema e suas variações. Os exames orais eram feitos num só dia, com substanciais arguições. Uma vez aprovado, em breve o candidato tomava posse e permanecia naquela função até a aposentadoria. Os recursos administrativos eram excepcionais e consistentes – seja em decorrência do respeito aos membros da banca, seja por que simplesmente não se cogitava do recurso sem motivos sérios. O concurso público era o que era: uma sequência de provas, em que se ganhava ou se perdia – e a vida seguia em frente.
Quase cem anos depois, a realidade dos concursos é outra. A Administração Pública dos três poderes precisa realizar muitos, todos os anos e em todos os níveis. O volume de candidatos é massivo, com caravanas se deslocando pelo Brasil afora. São centenas para cada concurso, a demandar e a produzir milhares de páginas escritas. Os órgãos estatais já não mais dispõem de estrutura nem para elaborar nem para aplicar os exames: é necessário contratar terceiros (nos mais sofisticados, por inexigibilidade). De igual modo, a racionalidade das provas se alterou: hoje, muitas vezes o conhecimento a ser avaliado é homogeneizado e demanda respostas-padrão, não-reflexivas. Vários exames não se preocupam em descobrir a profundidade do conhecimento dos candidatos, mas a sua capacidade de decorar conceitos. Daí a exigência da divulgação de “gabaritos” para as provas dissertativas (o que é uma contradição em termos).
De igual modo, multiplicaram-se os cursinhos preparatórios (reais e virtuais). Muitos com aulas sérias, outros nem tanto. Principalmente na internet, em que se pode divulgar qualquer coisa, há aulas de arrepiar (pseudo-professores que não sabem conjugar verbos, mas são bons em contar piadas). Boa parte dessas “aulas” apenas pesquisa as instituições contratadas para elaborar as provas e pretende dar pistas a propósito do que será perguntado, circunscrevendo o estudo a temas “quentes”. Também por isso, muitas vezes o ensino diz respeito a técnicas de aprovação, não à matéria de fundo: não se aprende o tema a ser arguido, mas como ser aprovado neste ou naquele concurso. Como responder; quanto tempo para cada questão nesta ou naquela prova; qual o grau de profundidade etc. etc. Técnicas muito louváveis, desde que haja substância. Afinal, de que adianta decorar uma sigla – ou uma rima – para os princípios do art. 37 da Constituição se não se sabe o que é legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência?
Porém, quais são as consequências negativas desse admirável mundo novo dos concursos públicos? Vou rascunhar algumas delas, mas não sem antes consignar que com isso não pretendo defender a retração dos concursos, mas sim colocar a debate alguns de seus temas sensíveis. Afinal, tive a honra de fazer parte de várias bancas e experimentei alguns de seus desafios. Neste texto, vou tratar de apenas três pequenos problemas.
Em primeiro lugar, é uma lástima a perda da necessária subjetividade nas provas – tanto em sua elaboração como nas respostas e na correção. Tudo se esvai no “julgamento objetivo”, como se se pudesse abdicar do subjetivismo na escolha da matéria a ser perquirida, na redação das respostas e na respectiva avaliação. Como se sempre houvesse perguntas com uma e somente uma resposta certa. Como se provas dissertativas pudessem se submeter a juízos de “verdadeiro/falso”. Este é um problema sério, pois esvazia a razão de ser das provas dissertativas (quando não das orais), subvertendo-as em testes de memória. Parece-me que não se poderia exigir tal grau de objetividade em provas que não fossem puramente objetivas.
Em segundo lugar, há sérios desafios vindos desse sujeito cruel que é o tempo. Centenas de provas dissertativas não podem – nem devem – ser corrigidas em curto lapso. Mesmo porque a correção de provas escritas é indelegável: caso o membro da banca não possa realizá-la, deve ser nomeado outro, com qualificação equivalente. A atividade de correção é privativa do membro da banca, o que exige tempo para a leitura e correção. Porém, é apertada a agenda da Administração – sempre acentuada pela ansiedade dos candidatos. A alta velocidade é imprescindível para se concluir o certame e realizar as nomeações (inclusive, para não perder os melhores, que podem seguir para outros concursos). Mas fato é que isso pode macular a correção. Ou torná-la menos reflexiva. Logo, os prazos precisam ser proporcionais aos esforços e ao volume do trabalho – e não devem ser definidos por quem nunca elaborou nem corrigiu uma prova. Mais: deve haver uma carga pesada na primeira prova objetiva – exigente, pois eliminatória –; nota de corte elevada e número bem limitado de candidatos habilitados a fazer a prova dissertativa (proporcional aos cargos vagos).
Em terceiro lugar, há que se impor limites a esse diabinho chamado “recurso administrativo”. Ele pode infernizar a vida da banca e impedir o prosseguimento do concurso. Outrora um direito, hoje fonte de infindáveis abusos (que contaminam o direito daqueles que efetivamente precisam ter a sua prova reavaliada e a nota aumentada). Afinal, vige a máxima do “pior do que está não fica”, pois os recursos são gratuitos e é impossível a reformatio in pejus. Vigora a liberdade sem responsabilidade: todos podem recorrer, muitas vezes sem sequer dizer por que recorrerem, mas apenas apresentando uma irresignação. Por que não gostou da nota, o candidato protocola o recurso administrativo sem indicar o motivo pelo qual a resposta estaria certa, mas apenas que a correção precisa ser revisada porque nota está... baixa. Outras tantas, o recurso apresenta razões que não estão escritas na prova, mas em livros que a resposta não citou (comprovando que a resposta era vazia). Há recursos que vêm carregados de erros vernaculares – ou sem qualquer lógica. Por isso, é necessário haver fronteiras aos abusos. Quem sabe diminuir um ponto da nota da prova se do recurso não constar o pedido? Ou diminuir outro ponto se houver recursos iguais apresentados por candidatos diferentes? Ou diminuir dois pontos da nota se do recurso constar erros vernaculares? Ou declarar a inidoneidade para outros concursos?
Enfim, o que me parece é que os concursos públicos persistem sendo a melhor forma de seleção para o preenchimento de cargos para servidores públicos estáveis. Porém, a sua atual elaboração, aplicação e revisão precisam ser revistas.
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