Logo no primeiro ano das faculdades de Direito, aprendemos que interpretar é desvendar o conteúdo e o alcance das leis. Precisamos saber o significado das palavras que estão no texto legal, como se relacionam entre si, quais os seus limites e a que se destinam. Isto é, o que querem dizer e até onde se pode ir com elas. A lei está lá, o que necessitamos fazer é descobrir o que ela exprime. Este passo é muito importante, mas é só o primeiro.
Afinal, já se passou o tempo em que a interpretação se restringia à atividade de subserviência ao legislador, como se o Direito emanasse de uma só fonte: o quase-sagrado Poder Legislativo, única expressão das leis. Então, ao intérprete caberia declarar o conteúdo pré-constituído pela vontade do legislador. Tudo isso por meio dos métodos ortodoxos da hermenêutica: os já cansados elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático (estabelecidos no século XIX por Savigny ). (Critérios que nem sempre foram manuseados de acordo com o desenvolvido por Savigny, diga-se de passagem.)
Nessa concepção declaratória do Direito pré-constituído, os fatos seriam irrelevantes, portanto. De nada importaria o que se passou na realidade, eis que a norma é universal e abstrata, de aplicação automática. Existe a voluntas legis, a ser respeitada. Aos demais Poderes resta a subsunção dos fatos à lei. Aos cidadãos, cabe cumpri-la. Basta que exista o texto formalmente apelidado de lei.
Como se constata com facilidade, essa separação absoluta dos Poderes do Estado retira, sub-repticiamente, dos cidadãos a capacidade de conhecimento e construção do Direito. Reserva aos Poderes constituídos sua elaboração e aplicação. Só é Direito aquilo que o Legislador disser, nos termos em que o Executivo aplicar, nos limites do controle exclusivo do Judiciário. Nós, pobres mortais, ficamos do lado de fora desse ciclo autossuficiente.
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Felizmente, essas restrições e exclusões já foram ultrapassadas pela Ciência do Direito e Tribunais. Isso sem se falar na legislação: basta pensarmos na Lei 9.784/1999, cujo art. 2º, em seu parágrafo único, inc. I, preceitua que que a Administração Pública deve observar o critério de “atuação conforme a lei e o Direito”. Ora, isso significa que o Direito não é somente aquele enclausurado no texto legal, mas vai além. A bem da verdade, ele é constituído pelo intérprete, a partir das fontes normativas de que dispõe (Constituição, princípios, leis, regulamentos, costumes, contratos, boas práticas, etc.). A aplicação da lei precisa levar em conta os fatos, integrando-os à norma e criando o Direito em cada caso. A responsabilidade é de todos e de cada um de nós.
Mas, somos humanos e a imperfeição é a nossa marca. Erramos todos os dias. Às vezes, de forma tão séria que precisamos de órgãos, preferencialmente colegiados, que controlem os nossos erros. Daí porque, no mundo do Direito, existem os Tribunais. Os recursos protegem os próprios advogados, Ministério Público e juízes de seus erros. A toda evidência, o sistema não é perfeito, nem nunca o será. Mas é o que de melhor – ao lado da Democracia – o ser humano conseguiu elaborar.
Contudo, fato é que, de tempos em tempos, o passado insiste em se fazer presente. Hoje, estamos diante de uma dessas tentativas, ao menos em parte do texto da assim denominada Lei de Abuso de Autoridade (cuja redação ainda está em debate). Trata-se do PLS 280/2016, que, em uma de suas versões, tem o art. 1º, parágrafo único, a preceituar que “Não constitui crime de abuso de autoridade o ato amparado em interpretação, precedente ou jurisprudência divergentes, bem assim o praticado de acordo com avaliação aceitável e razoável de fatos e circunstâncias determinantes, desde que, em qualquer caso, não contrarie a literalidade desta Lei.”
O que este finalzinho do dispositivo quer dizer é o seguinte: se a letra crua da lei for desobedecida, não há alternativa – deu-se o crime, que deverá ser punido. O que importa dizer que toda a Lei de Abuso de Autoridade, palavra por palavra, em seu sentido genuíno, sobrepõe-se a qualquer interpretação. Ainda que prevaleçam outras redações ao dispositivo, o problema persistirá se mantido o seu núcleo relativo à atividade interpretativa – pautando a atividade do aplicador ao submetê-la à censura penal.
Situação que se complica em vista dos tipos penais abertos de que se vale o projeto de lei – aqueles que não possuem descrição completa e minuciosa da conduta delituosa (que, em tese, poderia ser executada de várias formas), mas o fazem de forma ampla, a demandar da instrução processual e da sensibilidade do juiz a definição da ilicitude. Quem dá completude ao tipo penal é o Poder Judiciário, como o Supremo Tribunal Federal consignou, em julgamento versando sobre o crime de tortura: “Trata-se de preceito normativo que encerra tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado, eis que o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade.” (HC 70389, rel. p/ acórdão Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 10/08/2001).
Logo, autoriza-se a interpretação (como que por bondade), mas ela não pode contrariar a “literalidade desta Lei”. Ou, em outras palavras, não pode divergir de outras interpretações (sobremodo a “oficial”, prescrita pelo Legislador). Vale só aquilo que o Poder Legislativo escolheu, nas minúcias de suas palavras (muitas delas, paradoxalmente, de textura aberta). Podem interpretar à vontade, desde que a conclusão seja meramente declaratória e não-independente. Quem interpretar a lei de modo distinto de sua literalidade (ou da “interpretação oficial”), estará cometendo crime interpretativo – ou, como tornado célebre na expressão de Ruy Barbosa, um “crime de hermenêutica”.
Diante dessa tentativa de retorno a um passado sombrio, a pergunta que se precisa fazer é: o que se pretende com isso? É necessário enclausurar a interpretação da lei na voluntas legislatoris como condição para que as autoridades não cometam abusos? O princípio da separação dos poderes autoriza que o Legislativo predefina a aplicação da lei, a ser feita pelos demais Poderes do Estado? A independência da Magistratura e do Ministério Público pode ser submetida a punições penais em decorrência da interpretação que seus membros decidam dar às leis? Será que não foi exatamente isso que fizeram os golpes nos nossos Estados de exceção, quando fecharam o Legislativo?
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