No último dia 9 de junho, o governo federal divulgou o novo programa federal de concessões para projetos de infraestrutura (rodovias, ferrovias, portos e aeroportos). São obras e serviços públicos estimados em R$198,4 bilhões. Um número bem difícil de imaginar.
Para se ter uma ideia, em 2015, o orçamento da cidade de Curitiba é de R$ 8,4bi; o do Estado do Paraná, R$ 49,1bi. O que importa dizer que o programa representa, num cálculo grosseiro, 23 “Curitibas” ou 4 “Paranás”, durante o ano inteiro. Ou, fazendo mais contas, o orçamento anual de uma cidade imaginária, com mais de 41 milhões de habitantes (a população de Curitiba em 2010, vezes 23). Por outro lado, os cortes orçamentários recentemente divulgados pelo governo federal batem R$ 69,9bi – quase um terço do que se pretende que seja investido em infraestrutura.
Ainda assim, é bastante complicado pensar, em termos reais, o que significa R$ 198,4bi. A cifra parece algo surreal, apenas um número sem representatividade fática – tal como crianças jogando monopólio. Lembra o “Campo de Distorção da Realidade” – expressão criada para descrever o carisma de Steve Jobs e sua aptidão para distorcer a percepção da audiência quanto às proporções das dificuldades reais, instalando a crença de que a tarefa é possível.
Mas, digamos que a tarefa seja possível. Que esse número existirá no mundo real. Sinceramente, espero que sim. Logo, a questão que se põe é a seguinte: de onde vêm e para onde vão esses R$ 198,4bi?
A primeira pergunta é fácil de ser respondida.
Como se sabe, o governo tem pouco dinheiro à disposição. Não pode fazer desembolsos. O dinheiro não será público, portanto. Virá de qualquer lugar, menos do Estado. O que significa dizer que não estamos falando de Parcerias Público-Privadas – PPPs (Lei 11.079/2004), as quais exigem aportes públicos, mas sim de concessões comuns (Lei 8.987/1995).
As concessões comuns são projetos de investimento de longo prazo, que exigem aportes iniciais do empresário privado e cuja receita advém exclusivamente das tarifas cobradas dos usuários (quem usa, paga). Pensando bem, há algo de interessante aqui: afinal, nas empreitadas tradicionais e nas PPPs, quem paga pela obra ou serviço não é só o usuário, mas o contribuinte (ferrovias pagas por quem nunca viu um trem; aeroportos por quem jamais andou de avião; rodovias por quem não tem automóvel ... e assim por diante).
Nas concessões comuns, não é assim. Elas são contratos de investimento autossustentáveis: não precisam de aportes de verbas públicas. Então, quem faz o desembolso? O investidor privado. E quem gera a receita? Os usuários. E, no melhor dos mundos, quem garante os empréstimos? A própria receita do contrato, projetada no tempo.
Em outras palavras, o programa recém divulgado exige investimentos maciços de sociedades empresariais privadas. Estas deverão examinar os editais de licitação, verificar os investimentos disponíveis, pensar bem e fazer uma escolha: será que vale a pena sacrificar o meu dinheiro neste projeto de infraestrutura? Há quem cultue o deus-dinheiro, mas fato é que ele não é onipresente: não posso investir a mesma quantia em dois projetos ao mesmo tempo. Se o empresário for racional, ele fará o aporte em empreendimentos que combinem rentabilidade e segurança, com algum tempero picante quanto ao risco (se não, o negócio deixa de ser apetitoso). É um investimento de longo prazo, que merece ter uma adequada taxa interna de retorno.
Isto é, a taxa de retorno há de compensar os eventuais dissabores futuros (captação de recursos nos mercados; intervenções nos contratos; brigas judiciais; precatórios etc.). Algumas vezes, o governo insistiu em disciplinar essa taxa, na maioria das vezes em conjugação com o teto da tarifa a ser praticada – o que é um erro brutal. Só o empresário sabe qual remuneração vale a pena e que preço precisa ser cobrado para que as obras e serviços existam ao longo do tempo. Se o mercado constatar que a remuneração mínima é de 15%, de nada adiantará o poder público insistir em ser aprendiz de feiticeiro e fixar que a taxa de retorno será de 6 ou 7% - só os aventureiros ou irresponsáveis oferecerão propostas (o que instala o risco de o governo tornar-se refém de ilusionistas).
Em suma, é da iniciativa privada que virão os R$ 198,4bi – não de uma só vez, mas aos poucos. Mas, ainda assim, são desembolsos que exigirão liquidez dos mercados. Afinal, demandarão empréstimos a juros viáveis. O que não está fácil nestes tempos de crise ...
Mas, e a outra pergunta? Para onde vai esse tsunami de dinheiro? Os números apresentados distribuem R$ 66,1bi em rodovias; R$ 86,4bi em ferrovias; R$ 37,4bi em portos e R$ 8,5bi em aeroportos. Serão feitas novas licitações, para futuros contratos, bem como renovadas as concessões existentes, por meio da combinação de novos investimentos com alargamento do prazo contratual e/ou aumento da tarifa. Esta é uma solução bastante inteligente: ao se manter os atuais operadores nas respectivas concessões (por meio de novos investimentos), incrementa-se a competitividade nas novas licitações. Haverá menos certames ao mesmo tempo, o que permite escolhas mais eficientes.
Com tudo isso, o que se pretende? Duas ordens de objetivos: permitir que a economia volte a funcionar, com intensos fluxos de trabalho e investimentos, e eliminar alguns dos pontos de estrangulamento. Isto é, tentar fazer com que o transporte de pessoas, bens e produtos, não gere custos extraordinários.
Os editais e licitações serão complexos, haverá alguns litígios, mas o que se espera é que a máquina comece a rodar. Será necessária firme segurança jurídica, sobretudo com respeito aos contratos. Se os editais e contratos não forem respeitados, se inviabilizam os investimentos (presentes e futuros).
Mas uma coisa é certa: feitas as licitações em 2015/2016, a infraestrutura terá melhorias em 2017/2018. Ou seja, as vantagens só serão experimentadas pelo sucessor do atual governo. Afinal, esta é uma questão de Estado; não de governo.
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Pensemos a respeito
“Se pudéssemos transportar um cirurgião do século 19 para um hospital de hoje, ele não teria ideia do que fazer. O mesmo vale para um operador da bolsa ou até para um piloto de avião do século passado. Não saberiam que botão apertar. Mas se o indivíduo transportado fosse um professor, encontraria na sala de aula deste século a mesma lousa, os mesmos alunos enfileirados. Saberia exatamente o que fazer. A escola parece impermeável às décadas de revolução científica e tecnológica que provocaram grandes mudanças em nosso dia a dia. Ficou parada no tempo, preparando os alunos para um mundo que não existe mais.” – esta abertura da entrevista de Viviane Senna para a BBC Brasil faz pensar nas nossas faculdades de Direito – que, além de lecionar como no século XIX, têm cursos com estrutura e sequência de disciplinas oriundas do século XVIII.
Será que preparamos os nossos alunos para um mundo que não mais existe? Às vezes me parece que sim... Basta ler o texto da coluna de hoje, que diz respeito a temas do dia a dia da Administração Pública (investimentos; contratos de longo prazo; taxa de retorno; riscos etc.) – mas quais são as faculdades que efetivamente ensinam os seus alunos a compreender como são os mais importantes contratos públicos dos dias de hoje?
* Egon Bockman Moreira: advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
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