Primo Levi (sobrevivente de Auschwitz), em seu “Se isto é um Homem”, tem uma frase a respeito dos campos de concentração que até hoje ecoa, nas mais diversas experiências da vida: “compreender é quase justificar”. Assim, talvez não se possa - ou não se deva – nem sequer pensar em compreender alguns comportamentos humanos. O melhor é não tentar entender, para não correr o risco de procurar justificar (ou de pensar numa justificativa). Mas, se compreender é impossível, conhecer é necessário. Afinal, se algo se deu uma vez, por mais absurdo e aterrador que possa ter sido, pode ocorrer de novo (sobretudo se o tempo nos fizer esquecer).
Na Espanha, recentemente houve um episódio que permite reviver tal drama, mas sob outro ângulo. Trata-se da história de Enrique Marco, um sobrevivente do campo de concentração de Mauthausen , onde foram internados mais de 7500 espanhóis – dos quais apenas pouco mais de 2300 sobreviveram, que também esteve no campo de Flossenbürg. Ele havia lutado na guerra republicana espanhola e, depois, seguiu para a França, onde guerreou contra os nazistas e foi capturado pela Gestapo (“o deportado número 6.448”). Submetido às mais abjetas humilhações e torturas, ainda assim sobreviveu, para ser libertado em 1945. Voltou à Espanha e lutou contra a ditadura franquista. Tempos depois, tenazmente presidiu a associação espanhola Amical de Mauthausen, dos egressos do campo. Fez centenas de conferências e entrevistas. Levou muitos às lágrimas em seu discurso na Câmara dos Deputados, quando foi rendida homenagem aos quase 9 mil espanhóis deportados para o III Reich. Recebeu comendas da mais alta distinção. Afinal, a privação que experimentou foi brutal – e a sua perseverança e vontade de viver são um exemplo para todos nós.
O detalhe mais arrasador, contudo, está num fato revelado em 2005: tudo isso é mentira.
Enrique Marco é um impostor. Durante 30 anos, enganou a todos. Ele havia viajado à Alemanha nazista por opção, colaborando com o regime franquista no fornecimento de mão de obra para a indústria alemã. Esteve preso, mas nada de republicano; nada de campo de concentração. Sofrimentos experimentou, mas não os que o tornaram uma celebridade. Como no título do artigo de Mario Vargas Llosa, Enrique Marco é Espantoso e genial, um “contrabandista de irrealidades”. Mas, ainda assim, é um impostor.
Pois El Impostor é o título do livro de Javier Cercas a respeito dessa revelação que chocou o mundo. Tem um pouco de non-fiction novel, um pouco de documentário, bastante de filosofia. O livro é terrível, desde sua primeira frase: “Eu não queria escrever este livro”. Javier Cercas fez dezenas de entrevistas com Enrique Marco. Pesquisou a fundo as histórias que lhe eram contadas. Contraditou-as e recebeu novas versões do próprio biografado. Visitou os lugares, desde a mais tenra infância da personagem cujo maior atributo deu título ao livro. E chegou à conclusão de que pouco – ou quase nada – da vida de Enrique Marco é verdadeiro. Nem mesmo a data de nascimento por ele alardeada (“nasci no 14 de abril, Dia da República!”). Ele criou a sua história, escreveu-a na memória e reconstruiu a própria narrativa.
O que não deixa de ser uma verdade instigante, pois, como o demonstra Leonard Mlodinow em seu Subliminar, a memória é um construído, não um dado. Nem sempre o que nos lembramos foi o que exatamente sucedeu. Pois Enrique Marco é um grande arquiteto, um sublime inventor, um magistral historiador. É romancista de envergadura. Um construtor de memórias, enfim – que, depois de exposto, continuou na elaboração da sua própria realidade: “Alguém teria me ouvido se eu não houvesse criado essa persona?”.
Mas, como diz Javier Cercas, uma boa mentira vem sempre amassada entre algumas verdades. Fica mais difícil separar se as cores não estiverem nítidas. Por isso que os impostores misturam as coisas: dizem algo que nos comove – ou que instiga a nossa solidariedade, com traços de verdade. Instalam dúvidas e se aproveitam do seu benefício. Valem-se da boa-fé alheia e tiram ganhos da mentira. Todas as vantagens de que se pode cogitar: dinheiro, vaidade, fama, poder, irresponsabilidades etc. Mas fato é que tais estratégias só podem inspirar desprezo. Nem mesmo o medo pode legitimar a farsa.
Contudo, uma coisa é o erro – ou ceder às tentações momentâneas; outra, a impostura: aquela mentira ardilosa, dissimuladamente construída ao longo do tempo. Errar é humano e, muitas vezes, somos demasiadamente humanos. Porém, tornar-se um impostor é repugnante.
Ainda assim, há quem diga que, pensando bem, que mal pode fazer a fraude que se prolonga no tempo? Como no caso de Enrique Marco, que tão bem expôs o Holocausto e preservou a memória dos fatos. Não fosse ele e a sua verve, o tema não teria repercutido na mesma dimensão. Ele não prestou um admirável serviço à causa – e tão bem expôs o drama, comovendo e gerando apoio de tantos outros? O título do artigo de Claudio Magris no Corriere della Sera sintetiza tais perguntas: O mentiroso que disse a verdade.
Mas, como em todos os outros fingimentos, o detalhe está em que existe algo que se chama moral. Mais: a mentira, mesmo aquela feita para contar verdades, pode machucar os outros. Não só os que sofreram a brutal violência que ele disse ter experimentado (e os seus descendentes), mas também aqueles que nele acreditaram. Ele chegou ao cúmulo de enganar os que efetivamente estiveram nos campos – e os trapaceou tão bem, que foi eleito presidente da sua associação. Por que fez isso? Como chegou aos 84 anos enganando tanta gente por tanto tempo?
Aqui, o alerta de Primo Levi volta a fazer sentido. Como assinalado em passagem do livro de Javier Cercas, “determo-nos em buscar justificativas para o seu comportamento é não compreender e menosprezar o legado dos deportados.”
A pergunta, portanto, é: vale a pena tentar compreender o que ilusionistas como os Enrique Marco da vida pensam quando nos enganam? Quando dizem coisas que sabem ser mentira, a fim de obter o resultado? Mais: será que eles não sabem que estão se comportando de forma desprezível? Ou supõem que as mentiras nunca serão reveladas? Ou, se o forem, serão simplesmente toleradas? Será que acordam de madrugada e não conseguem dormir? Ou constroem soluções à la Enrique Marco: “Sou um embusteiro, não um falsário”.
Mais ainda, em termos mais brandos: até onde vai a verdade e onde começa a mentira? As regras da boa educação e da diplomacia, como funcionam? Nos dias de hoje, qual a receita para sobreviver só dizendo a verdade? Como descreveu Javier Cercas num jantar de escritores na casa de Vargas Llosa: “É como se todos tivéssemos algo de Marco. Como se todos fôssemos um pouco impostores.” Afinal, qual a fronteira entre ficção e vida?
Talvez o drama seja ainda mais sério nestes nossos tempos. Como Vargas Llosa escreveu na resenha do livro de Javier Cercas, fato é que “Vivemos uma época em que os trapaceiros nos rodeiam à volta toda, e a imensa maioria deles — banqueiros, autoridades, dirigentes políticos e sindicais, juízes, acadêmicos — mente e delinque para enriquecer, sórdido desígnio vital, sem que suas histórias transcendam as previsíveis trapaças do ladrão vulgar. Pelo menos, Enric Marco o fazia com horizontes mais amplos e, por que não?, menos egoístas. (...) Que Marco era, que é, um narciso louco por publicidade, um ávido midiopata, obcecado por sair sempre na foto? Sem a menor dúvida. Mas sua doença é uma doença de nosso tempo, de uma cultura na qual a verdade é menos importante do que a aparência, na qual representar é a melhor (talvez a única) maneira de ser e de viver. A ficção passou a substituir a realidade no mundo em que vivemos e, por isso, os medíocres personagens do mundo real não nos interessam nem nos entretêm. Os fabuladores sim.”
Porém, de uma coisa não podemos abdicar: Primo Levi persiste tendo razão. Cada vez mais. É difícil, às vezes doloroso, constatar que por tanto tempo fomos enganados por aqueles por quem nutrimos apreço – e que até admiramos. Mas que a impostura persista incompreensível! Afinal, é melhor apenas conhecer, sem correr o risco de tentar justificar.
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Um vídeo
Antes do livro de Javier Cercas, mas depois da revelação e dos vários artigos escritos a respeito, em 2009 foi feito um filme. O sugestivo nome é Ich Bin Enric Marco: verdadeiro ou falso. Dirigido por Santiago Fillol e Lucas Vermal, foi apresentado e indicado no San Sebastián International Film Festival (2009) e no Rotterdam International Film Festival (2010). Retrata o campo de Flossenburg, leva Enrique Marco a ele e registra o seu depoimento. São menos de 15 minutos: belo e instigante.
*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
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