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Um dos grandes equívocos da história político-jurídica do Brasil foi a adoção de pagamentos das condenações da Fazenda Pública por meio de precatórios. A solução surgiu na Constituição de 1934 e se destinava a combater a corrupção, impondo o pagamento segundo a ordem cronológica de requisição do pagamento. Mas também se fundou na exigência de previsão orçamentária para os desembolsos do Estado.

As Constituições subsequentes foram ampliando a complexidade do sistema. Mas não estabeleceram sanções efetivas contra a ausência de pagamento dos valores objeto de precatório.

Ao longo do tempo, o montante das dívidas estatais resultantes de sentença judicial foram se acumulando. A situação fática se tornou insuportável. A Constituição de 1988 previu, no art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), uma moratória de oito anos. A União conseguiu liquidar o seu passivo. Mas, de modo geral, os demais entes federados não o fizeram.

Veio a Emenda Constitucional 30/2000. Depois, a Emenda Constitucional 37/2002. Enfim, a Emenda Constitucional 62, de dezembro de 2009. Em todas elas, a solução sempre foi postergar o pagamento e criar obstáculos para o credor privado. Isso induzia descontos no valor do crédito.

As Emendas Constitucionais 30 e 62 foram objeto de questionamento no Supremo Tribunal. O julgamento da liminar da ADI 2.356, em que se questionou a Emenda 30, levou dez anos para ser concluído. Na ocasião, já estava quase esgotado o prazo de moratória previsto nas normas questionadas.

O julgamento da EC 62, foi muito mais rápido. O Min. Carlos Ayres foi o relator e levou o processo a julgamento em 16 de junho de 2011. Sucederam-se pedidos de vista. O julgamento foi concluído em 14 de março de 2013. Por maioria de votos, a sistemática de liquidação de precatórios foi declarada inconstitucional.

Mas os problemas práticos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62 se revelaram imensos. Muitos entes federados simplesmente paralisaram os pagamentos. Foi necessário o novo relator, Ministro Fux, editar decisão acautelatória, determinando que a sistemática da Emenda 62 continuasse a ser aplicada.

O STF promoveu, então, o julgamento de Questão de Ordem (na ADI 4.425) para modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. O julgamento se iniciou em 24 de outubro de 2013 e se concluiu em 25 de março de 2015. À época, o Min. Barroso já integrava o STF e interveio intensamente na questão, trazendo sugestões muito inovadoras. Ao final, o STF determinou que o sistema da Emenda 62 permaneceria em vigor por outros cinco anos, computados a partir de 1º de janeiro de 2016. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade foram reportados a 25 de março de 2015. Tudo parecia encaminhar-se para uma solução definitiva.

Mas embargos de declaração opostos pelo Congresso Nacional foram levados a julgamento em 9 de dezembro de 2015. O recurso tinha efeitos infringentes, pleiteando o reconhecimento da validade do sistema da Emenda 62. Nessa data, o Min. Edson Fachin já compunha o STF. E foi dele o voto no sentido de serem ouvidas as partes, em virtude do potencial efeito infringente do julgamento. Essa decisão foi adotada por maioria. Em 25 de maio último, o Min. Fux determinou a intimação dos interessados para ser manifestarem em trinta dias. Na sequência e talvez antes do final do ano, haverá o julgamento dos embargos de declaração.

Há dois pontos fundamentais que induzem o provável acolhimento do recurso, com a reversão da decisão recorrida e o reconhecimento da constitucionalidade da Emenda 62.

O primeiro é a alteração da composição do STF. Ayres Britto e Joaquim Barbosa, que haviam votado a favor da inconstitucionalidade, deixaram o STF. Barroso, que não participara do julgamento recorrido, deixou claro o seu entendimento quanto à necessidade de uma solução prática para o problema. Isso é um indicativo de que votará contra o conhecimento dos embargos de declaração. Mas é muito provável que a mesma maioria que apoiou o voto do Min. Fachin se manifeste pelo cabimento recurso. Se isso ocorrer, é provável que Barroso vote pela constitucionalidade da Emenda 62. E é evidente que, se Fachin concordasse com a inconstitucionalidade, não teria liderado a orientação da intimação dos possíveis interessados para se manifestarem sobre os embargos. Os Ministros Marco Aurélio e Lewandowski nunca afirmaram a inconstitucionalidade global da sistemática da Emenda 62. Isso permite antecipar que apenas os Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Rosa Weber votarão pela manutenção da decisão original de inconstitucionalidade

O segundo ponto é a versão de que a sistemática da Emenda 62 permitiu a redução do estoque de precatórios. Segundo alguns, dentro de alguns anos (cinco ou dez), haverá a liquidação dos passivos da maioria dos entes federados. Essa versão é problemática, mas vem sendo largamente difundida. Os dados do CNJ indicam que, em junho de 2014, o total de precatórios não pagos atingia a mais de R$ 97 bilhões de reais. Esse passivo vem sendo liquidado, em grande parte, mediante a apropriação dos depósitos judiciais. Ao que parece, o montante total de depósitos judiciais (tributários e não tributários) atinge a R$ 120 bilhões de reais. Então, os diversos entes federados têm lançado mão desses valores para liquidar inclusive os débitos por precatório. A solução quanto aos depósitos judiciais derivados de questões tributárias foi expressamente autorizada pela Lei Complementar 151. Estados, Distrito Federal e Municípios pretendem, agora, valer-se também dos depósitos judiciais de outra origem para fazer face a todos os seus passivos.

Lembre-se que a utilização dos depósitos judiciais é um dos pontos centrais da proposta do Min. Barroso para resolver os problemas dos precatórios.

Nesse cenário, é lamentável constatar a ausência de sensibilidade de todos os envolvidos na discussão quanto à causa efetiva do problema e quanto ao modo de sua solução. Até é possível que a apropriação dos depósitos judiciais permita a liquidação do passivo atual. Pode ser que a sistemática da Emenda 62 produza a extinção do estoque de precatórios nos próximos quinze anos. Mas esse problema será revivido em breve.

Porque o problema essencial não é o pagamento da dívida da Fazenda Pública. A causa de tudo é a ausência de capacidade da ordem jurídica de impedir a geração contínua de passivos novos por parte da Fazenda Pública.

Ao que parece, o direito não dispõe de força normativa para impedir a atuação indevida e ilícita dos agentes públicos. A Constituição consagra limites e impedimentos à atividade administrativa, submete a Administração Pública a exigências severas e determina a responsabilização civil do Estado por critérios objetivos. Apesar disso, as infrações continuam a ser praticadas. Sucedem-se sentenças condenatórias, que representam passivos sempre crescentes. Não há recursos para pagar tanta dívida!

Mas o problema fundamental não reside no modo de liquidar os precatórios. Consiste em obter a diminuição das condenações da Fazenda Pública. E isso somente pode ser obtido pelo respeito à ordem jurídica. Temos de nos esforçar no sentido de eliminar condenações, não com o modo de pagar os precatórios.

O princípio da prevenção, que norteia a generalidade dos ramos do direito, não foi incorporado pelo Direito Administrativo. Continuamos a idolatrar a supremacia do interesse público, sem tomar consciência de que o interesse público supremo consiste em obedecer ao direito. O respeito ao direito elimina o ilícito e torna excepcional a responsabilização civil do Estado.

Resta-nos indagar por quanto tempo ainda conviveremos com um Direito Administrativo Imperial, que ignora a dimensão republicana do Estado brasileiro.

Marçal Justen Filho é mestre e doutor pela PUC/SP

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