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Um dos jogos de computador que despertou grande adesão chama-se “SimCity”. Foi criado em 1989 e, desde então, fez muito sucesso. O jogo tem por objetivo a construção de uma cidade pelo jogador. O programa permite, mas também impõe, que o jogador estabeleça o zoneamento urbano e produza o desenvolvimento da cidade. Mas existem circunstâncias que são alheias à vontade do jogador, de modo que as escolhas realizadas acarretam consequências inevitáveis. A cidade criada pelo jogador se desenvolve segundo certos parâmetros – muitos dos quais independem da vontade do criador. Portanto, uma decisão aparentemente irrelevante pode gerar consequências imprevistas. Aquilo que foi considerado como uma escolha irrelevante pode revelar-se como um grave erro de planejamento. O jogo é orientado a promover a qualidade de vida e a felicidade dos habitantes, sem ultrapassar os limites orçamentários.

Esse jogo permite inúmeras avaliações filosóficas, sob prismas muito diferentes. O jogador é investido de uma competência regulatória no mundo virtual, muito semelhante àquela desempenhada pela autoridade pública na vida real. É um jogo em que o jogador assume uma posição de onipotência. Permite ao sujeito levar avante a confusão entre a própria vontade e o destino do mundo.

Uma das características muito relevantes do jogo é a revelação de que “o poder pune” a quem o exercita de modo imprudente, negligente ou sem perícia. Quem tem o poder para gerar aquilo que bem lhe apraz arcará com a responsabilidade pelo equívocos em que incorrer.

Não é casual, aliás, que o nome do jogo remete à expressão “sin” – pecado, em inglês. O poder absoluto é também um caminho direto para falhar e para ser punido por isso. A cidade imaginária, criada na pura abstração de um indivíduo, é a cidade do pecado, porque permite o exercício unilateral de todos os desejos e impulsos de um criador humano.

Mas, neste texto, SimCity é apenas um pretexto para falar de outro fenômeno, que vem se instaurando na ordem jurídica. Vou denominá-lo de SIMLAW.

A norma fundamental kelseniana, nesse modelo, consiste em “eu reino nesse mundo”

Quando iniciei minha formação jurídica, a PUC de São Paulo professava um imaginário kelsenianismo. Pretendia adotar a distinção rigorosa entre Direito e Ciência do Direito, tal como delineada por Hans Kelsen. Como se sabe, Kelsen construiu um modelo teórico que afirmava caber ao cientista do direito uma função puramente descritiva da ordem jurídica. Kelsen nunca negou a possibilidade de tomada de posição quanto ao direito: apenas negava que tal postura se enquadrasse na ciência do direito. A concepção kelseniana acabou abandonada, especialmente pela virada democrática ocorrida nos anos 1980.

O grande problema da proposta kelseniana é a impossibilidade de uma isenção absoluta do doutrinador do direito. Não se trata apenas do seu comprometimento com os valores fundamentais. Antes disso, é imperioso reconhecer que a circunstância pessoal influencia a condição humana. Portanto, o doutrinador sempre professa uma preferência pessoal, ainda quando disso não tiver consciência.

A partir especialmente da vigência da CF/88, difundiu-se a posição da validade do posicionamento pessoal do doutrinador no desenvolvimento de sua atividade específica. Reconheceu-se que o doutrinador é também um cidadão e que a sua atividade profissional deve refletir o compromisso com valores fundamentais.

O problema é que o direito apresenta, como um atributo intrínseco que lhe dá identidade, a heteronomia. O direito vale não porque o indivíduo reconheça a ordem jurídica como válida ou eticamente legítima. O direito se impõe coercitivamente sobre todos. A heteronomia significa que as normas jurídicas são dotadas de validade independente da vontade do destinatário.

Ora, a heteronomia do direito não comporta neutralização por meio da autonomia hermenêutica. Não é viável existir uma ordem jurídica em que cada indivíduo tenha a liberdade para determinar o sentido e o alcance da norma a ser aplicada. Nem que escolha um princípio para privilegiar, de modo a assegurar a prevalência da disciplina jurídica que bem lhe aprouver.

Apesar disso, a análise da situação existente na prática do Brasil de hoje evidencia uma espécie de SIMLAW. Cada operador do direito arroga-se o poder para construir uma ordem jurídica segundo as suas concepções pessoais, sem maiores considerações quanto ao direito real – ou melhor, o direito real passa a ser aquele pensado subjetivamente pelo doutrinador.

A norma fundamental kelseniana, nesse modelo, consiste em “eu reino nesse mundo”. Cada operador jurídico escolhe os princípios jurídicos que constituirão o alicerce de sua produção criativa, determina os sentidos que tais princípios apresentarão, seleciona as normas legais reputadas válidas, elimina a validade daquelas consideradas inválidas, adota interpretação conforme a própria vontade para as normas inconvenientes e instaura uma ordem jurídica à sua imagem e semelhança. Qualquer entendimento distinto, professado por outro operador, é desqualificado como incompatível com o direito. Com algum exagero, poderia ser dito que existem hoje no Brasil tantos direitos quantos sejam os operadores jurídicos.

É claro que SimCity é uma diversão legítima, que não merece qualquer reprovação ética. Mas o SIMLAW é algo totalmente distinto, porque o jogador se leva a sério. O doutrinador pensa-se como o grande Criador de uma nova ordem, aquele que veio ao mundo para eliminar as brumas e para instaurar o reino da Justiça.

O praticante do SIMLAW não exercita um juízo de autocrítica, não compreende nem mesmo que as suas concepções são essencialmente antidemocráticas. Porque a democracia implica a fixação de valores fundamentais e depende da formulação de escolhas normativas concretas por meio de processos intersubjetivos. A democracia exige a humildade de cada cidadão para aceitar a prevalência da opinião diversa, para submeter-se às decisões da maioria. Ainda que a democracia exija mecanismos contramajoritários, isso não implica o poder de cada doutrinador construir um modelo próprio de ordem jurídica. Portanto, o SIMLAW padece de um defeito inafastável, que é o seu cunho antidemocrático. O que não deixa de configurar um paradoxo: o praticante do SIMLAW costuma justificar as suas produções precisamente na intenção de promover os valores democráticos. É uma forma de ditadura fundada na pretensão da implantação compulsória e arbitrária de uma ordem democrática.

Há outra face, muito menos divertida, do SIMLAW. A multiplicação de soluções normativas, ao sabor da criatividade de cada operador jurídico, destrói a segurança jurídica. A defesa das soluções normativas distintas e diversas, variáveis de acordo com cada sujeito, acarreta a insegurança e a incerteza. Nos dias de hoje, ninguém consegue expor, com um mínimo de segurança, a disciplina normativa vigente no Brasil. A profusão de criações imaginárias destrói o direito do mundo real. É o paraíso do “achismo”: todos confundem o direito vigente com aquilo que eles “acham” que o direito é (ou que devia ser).

Quando os desatinos do jogador de SimCity conduzem ao impasse, o jogo termina e tem de ser recomeçado. Quando muito, o jogador perdeu o seu tempo – se é que o conceito de perda de tempo se aplica a jogos de videogame. Não se pode aludir a algum mal imposto aos habitantes virtuais de uma cidade imaginária.

Mas o SIMLAW é muito diferente. Porque a produção do operador jurídico afeta concretamente a vida das pessoas. Não se duvida que o praticante do SIMLAW tenha as melhores intenções. Mas as soluções equivocadas podem produzir efeitos materiais, no mundo real. Então, o resultado prático terá sido que as aventuras teóricas do operador do direito terão produzido um prejuízo real para a sociedade. E isso configura não apenas um problema social. É um pecado individual.

O que se pode esperar é que tudo isso seja apenas um movimento do pêndulo da História. Tomara que esses exageros da subjetividade sejam superados. Tomara que, no futuro, sobreviva apenas o jogo de videogame e que SIMLAW seja apenas uma expressão sem sentido.

*Marçal Justen Filho, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP
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