A edição n.º 285 do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), relativo ao mês de agosto do corrente ano, publica artigo de minha autoria com o título “Nova redação e limites da pronúncia”. O objetivo é aclarar o sentido da nova regra acerca da decisão de pronúncia que envolve assunto da maior importância prática e constitui matéria constantemente analisada pelos tribunais. O fenômeno chamado “excesso de linguagem” é um vício praticado por muitos juízes que ultrapassam a linha divisória que separa as atribuições da justiça togada da prerrogativa constitucional da justiça popular.
A publicação coloca-se em antagonismo à opinião do destacado jurista Guilherme de Souza Nucci quanto à exata compreensão do § 1º do art. 413 do Código de Processo Penal: “A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”. (Redação dada pela Lei 11.689, de 2008).
O interesse público da matéria é inquestionável e tem acento constitucional no que se refere à soberania dos veredictos proferidos pelo Tribunal do Júri (CF, art. 5º, XXXVIII, c). Daí a oportunidade de sua reedição agora no prestigiado espaço jornalístico Justiça & Direito. Segue-se o texto.
1. Definição
Embora tenha a estrutura de uma sentença, denominação utilizada pela antiga doutrina e referida no art. 416 do CPP, a melhor definição para a pronúncia a reconhece como “decisão interlocutória mista, que julga admissível a acusação, remetendo o caso à apreciação do Tribunal do Júri”. Com efeito, a palavra “decisão” é empregada nos arts. 420 e 421 do Código.
Passados mais de 150 anos, a obra imortal de Pimenta Bueno mantém absoluta coerência e atualidade em relação à observação supra, quando recomenda: “Convém que tal sentença seja fundamentada, mormente quando as provas não forem intuitivas, para que se manifeste a análise e raciocínios deduzidos dos indícios. Sua redação nunca deve imitar a das sentenças definitivas, que condenam ou absolvem a final, pois que tal despacho não passa de provisional ou interlocutório (Cod. arts. 144, 145, 327 e 329), não impõe fim à causa, não estabelece caso julgado, nem impede a renovação da informação, caso apareçam novas provas ou circunstâncias que determinem a criminalidade”.
2. Evolução legislativa da decisão de pronúncia
Para a melhor compreensão do tema ora tratado, é necessário um retrospecto temporal acerca da redação da pronúncia: (a) Código de Processo Criminal do Império (1832), art. 144. “Se, pela inquirição das testemunhas, interrogatório do indiciado delinquente ou informações, a que tiver procedido, o Juiz se convencer da existência do delito e de quem seja o delinquente, declarará por seu despacho nos autos que julga procedente a queixa ou denúncia, e obrigado o delinquente a prisão, nos casos em que esta tem lugar, e sempre a livramento”; (b) Dec.-lei 167/1938, que regulou o funcionamento do tribunal popular após a Constituição de 1934, art. 14. “(...) Si o juiz, apreciando livremente as provas existentes nos autos, se convencer da existência do crime e de indícios de que o réo seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento ”; (c) CPP, redação do Dec.-lei 3.689/1941, art. 408. “Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento. § 1.º Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol dos culpados, recomendá-lo-á , na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para a sua captura”; (d) CPP, com redação da Lei n.º 11.689/2008, art. 413. “O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação . § 1.º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena.
O Projeto de Lei 156/2009, aprovado pelo Senado Federal, mantém inteiramente a regra acima (art. 327), com pequena alteração no final: “devendo constar ainda a classificação do crime, bem como as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena, nos termos em que especificadas pela acusação”.
3. Alteração do dispositivo sobre a pronúncia (I)
Um dos aspectos essenciais com as novas regras sobre o tribunal popular foi a preocupação com o conteúdo e os limites da decisão da pronúncia. O legislador teve em conta o imenso número de precedentes nos quais os tribunais declaravam – e ainda declaram – a nulidade desse ato pelo chamado excesso de linguagem, ou seja, a usurpação da competência constitucional do tribunal popular (CF, art. 5º, XXXVIII, c). A experiência judicante do imortal mestre J. F. Marques sustenta a natureza declaratória desse relevante ato ao recomendar que o magistrado “deve exarar a sua decisão em termos sóbrios e comedidos, a fim de não exercer qualquer influência no ânimo dos jurados”.
O Projeto de Lei 4.900/1995, da Câmara dos Deputados, trouxe a primeira modificação no texto do CPP/1941. Com efeito, em lugar da expressão “existência do crime” (utilizada desde o Império), essa proposta diz no art. 408: “Se o juiz se convencer da materialidade do fato, e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, pronunciará o acusado, e o sujeitará a julgamento pelo Tribunal do Júri”. Não mais alude a um “crime”, mas sim, a um “fato”. A substituição de vocábulo é aprovada por Nucci: “Tecnicamente está melhor a atual nomenclatura, pois é viável ocorrer um fato-homicídio que, no entanto, não se constitua em crime de homicídio (ex.: praticado em estado de necessidade)”.
A reforma de 1938 permitia ao juiz examinar “livremente a prova dos autos ” e o CPP/1941 referia que “se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios (...) pronunciá-lo-á dando os motivos do seu convencimento ”.
Como se verifica na evolução legislativa, anteriormente o magistrado podia apreciar o meritum causae, isto é, analisar os elementos constitutivos do crime. Mas o dispositivo vigente restringe a sua atuação, em homenagem à soberania dos vereditos do tribunal popular. Interpretando o revogado art. 408 do CPP/1941, Câmara Leal assim expõe: “1.209. Para que o juiz pronuncie o acusado, julgando-o incurso nas penas de determinada infração, é mister que as provas coligidas no processo o convençam de duas coisas: a) da existência do crime pelo concurso de todas as circunstâncias que o integram, segundo a definição dada pela lei penal”; b) de sua autoria, atribuída ao acusado, quer esteja a mesma cabalmente demonstrada, quer haja indícios suficientes para presumi-la”.
4. Alteração do dispositivo sobre a pronúncia (II)
O texto do vigente §1.º, do art. 413, do CPP com a Lei 11.689/2008, espanca qualquer dúvida acerca da reserva de competência do tribunal popular quanto ao mérito da imputação criminal, porque “a fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato (...)”, revogando a expressão “do crime ”. A mesma palavra “fato” é repetida no art. 414.
Ao declarar o dispositivo legal “em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento da pena” (§ 1.º do art. 413), o magistrado está reconhecendo a existência, in these, de um crime que, se for afiançável, admite a prestação da eventual fiança (§ 2.º do art. 413). A decisão estará motivada pelo não reconhecimento de causa de exclusão de criminalidade ou isenção de pena que tenham sido alegadas pela defesa, na medida em que o acusado está sendo encaminhado para julgamento pelo júri.
O exímio jurista Nucci entende que “o disposto no § 1.º, do art. 413 deve ser considerado inconstitucional, se interpretado de maneira abrangente, ou inútil, visto de maneira restrita”. Considera ele redundante a expressão “fundamentadamente”, invocando a obrigatoriedade de motivação de todas as decisões do Judiciário (CF, art. 93, IX). Esquece, porém, que a lei tem uma função didaticamente importante para conhecimento geral dos cidadãos. A prevalecer a suposta crítica, seriam absolutamente despiciendos os arts. 3.º e 7.º do CPC/2015, porque repetem normas constitucionais. Especialmente, o art. 11. “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as suas decisões, sob pena de nulidade”. É equivocada a exegese de que, ao ignorar “o amplo quadro de alegações porventura trazido pelas partes”, o acusado torna-se indefeso e a decisão seria inconstitucional pela carência de fundamentação. A resposta a essa objeção está nos itens a seguir.
5. Inexistência de obscuridade, ambiguidade, contradição ou omissão
Admita-se a situação rotineira na qual o réu, antes da pronúncia, sustente a ocorrência da legítima defesa. E que o juiz, aplicando corretamente o Código, limite-se a afirmar a existência da materialidade do fato, os indícios suficientes de autoria ou de participação e quanto ao mérito afirme que não se convenceu de nenhuma das causas que permitam a impronúncia ou a absolvição sumária, referindo-se expressamente aos arts. 413 e 415 do CPP, afirmando que tal matéria deve ser analisada pelos jurados. É evidente que os eventuais Embargos Declaratórios (CPP, art. 382) opostos pelo réu não seriam conhecidos, porque não houve nenhuma das hipóteses. Tal decisão é irretocável. O juiz não é obrigado a opinar e muito menos decidir assunto da competência exclusiva do magistrado leigo. Haverá, em caso contrário, usurpação de uma função que é atribuída, com exclusividade, pela nossa Carta Magna.
6. Quando o juiz pode examinar o mérito da imputação
É evidente que não há qualquer interesse público em sujeitar o acusado a uma decisão do juiz de fato quando o juiz togado admite, após a instrução, a ausência de justa causa (por ex.: exclusão de crime ou isenção de pena). Não é possível submetê-lo a um julgamento que poderá, eventualmente, resultar em injusta condenação. Assim, o magistrado pode e deve, quando provocado, e até mesmo de ofício, reconhecer a hipótese de impronúncia ou de absolvição sumária quando assim for convencido pela prova dos autos (CPP, arts. 414 e 415). Em outras palavras: na pronúncia, o juiz tem competência para, analisando a situação da prova, decidir o mérito da imputação somente quando ele se apresenta favorável ao acusado. Contra ele, nunca.
7. A proibição do duplo julgamento
A Constituição de Portugal declara que “ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime” (art. 29, n.º 5). Desde o século XVIII, a 5.ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos (1791) dispõe que “ninguém poderá ser, pelo mesmo crime, duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde”. O sistema positivo brasileiro acolhe esse princípio (CF, art. 5.º, § 2.º), que somente é excepcionalizado quando a sentença é anulada em grau de recurso para ser renovada nos casos previstos pelo Código de Processo Penal, entre eles, o art. 593, § 3.º do CPP.
O juiz não pode invadir o espaço de soberania do tribunal dos cidadãos para se opor à defesa. Caso contrário, estaria relegada a salutar garantia do devido processo legal e, em especial, do princípio de vedação do double jeopardy. Com efeito, o réu seria, então, julgado: (a) pelo togado; (b) pelo leigo.
8. Movimento de simplificação dos códigos de processo
A Lei 11.689/2008, que modificou substancialmente o procedimento do Tribunal do Júri, não teve geração espontânea. Os trabalhos de seu respectivo anteprojeto iniciaram-se 16 (dezesseis) anos antes, quando o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, na condição de presidente da Escola Nacional da Magistratura, foi nomeado pelo ministro da Justiça Célio Borja para presidir comissões de juristas encarregados de propor estudos e soluções visando à simplificação dos códigos de Processo Civil e Processo Penal (Portaria 145, de 30.03.1992). A primeira comissão foi composta pelos seguintes operadores jurídicos: Luiz Vicente Cernicchiaro Sidney Agostinho Beneti, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Antonio Carlos Nabor Areias de Bulhões, Francisco de Assis Toledo, Inocêncio Mártires Coelho, Luiz Carlos Fontes de Alencar, Miguel Reale Júnior, Paulo José da Costa Júnior, René Ariel Dotti, Rogério Láuria Tucci e Sérgio Marcos de Moraes Pitombo (Portaria n.º 3, de 03.06.1992).
Com a distribuição de vários títulos, capítulos e secções entre os indicados, couberam-me, por honrosa indicação do professor Rogério L. Tucci, o estudo e a apresentação de um disegno di legge do procedimento relativo aos processos da competência do Tribunal do Júri.Aceitei o desafio por ter atuado por muitos anos no Júri, tanto na defesa como na assistência do MP.
Pela Portaria 349 (DOU, 17.09.1993) do ministro da Justiça Maurício Corrêa, instituiu-se uma Comissão de Revisão dos anteprojetos já publicados para discussão da comunidade científica, após reuniões em São Paulo, Salvador, Goiânia e Belo Horizonte. Foram seus integrantes: Sálvio de Figueiredo Teixeira, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Nabor Bulhões, Aristides Junqueira de Alvarenga, Cid Flaquer Scartezzini, Edson Freire O’Dwyer, José Barcelos de Souza, Fátima Nancy Andrighi, Luiz Carlos Fontes de Alencar, Luiz Vicente Cernicchiaro, Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira, Miguel Reale Júnior, Rogério Láuria Tucci, Weber Martins Baptista e Luiz Flávio Gomes, representando o IBCCrim e René Ariel Dotti, relator.
Após os trabalhos das reuniões plenárias, foi criada a Comissão de Sistematização sob a minha presidência e relatoria, com a presença dos professores Antonio Magalhães Gomes Filho, Luiz Flávio Gomes e Rogério Láuria Tucci.
9. Interpretação conforme a Constituição e a lei
Na síntese magistral de Clovis Beviláqua, “interpretar a lei é revelar o pensamento que anima as suas palavras”. Relativamente à natureza e os objetivos da pronúncia, é indispensável a leitura de confronto entre o CPP/1941 e o CPP com alterações da Lei 11.689/2008, à luz dos elementos histórico, lógico, teleológico e sistemático, além do gramatical. A exegese assim procedida não autoriza outro entendimento senão o da simplificação do procedimento sem prejuízo ao princípio do devido processo legal, conforme o entendimento exposto. São inadmissíveis as extravagantes razões de autoridade que abastecem a ilegal e abusiva prática que, secularmente, tem ignorado a singela distribuição de competências determinada pela Constituição Política do Império Brasileiro: “Os Jurados se pronunciam sobre o fato, e os Juízes aplicam a lei” (art. 152).
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed., São Paulo: Forense, Rio de Janeiro, 2016, p. 940.
PIMENTA BUENO, José Antonio Pimenta Bueno (1803-1878), Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diario, 1857, Cap. XIV, nº 180, p. 103 (Mantida a ortografia original).
Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, vol. III, p. 177.
Código de Processo Penal Comentado, cit., p. 945.
Câmara Leal, Antonio Luiz. Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, São Paulo/Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, vol. III, p. 67-68 (Destaques meus).
E também: “o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado, especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena” (CPP, art. 413 e § 1º).
Teoria geral do Direito Civil, 7.ed., atualizada por Achilles e Isaías Beviláqua, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1955, p. 37.
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