1.A conduta paradoxal do “guardião” da Constituição
O fenômeno do chamado erro judiciário, desgraçadamente uma ocorrência reproduzida em inúmeras ações penais pelo país inteiro, chegou ao Supremo Tribunal Federal em 17.02.2016, pela via estreita do HC 126292 (SP), sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki. A ementa do julgado está assim redigida: “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.”
Acompanharam o relator os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Divergiram os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
2.A resistência da boa doutrina
Um dos autorizados críticos dessa orientação é o Professor Paulo César Busato, que, em lúcido e bem fundamentado texto (02.03.2016), demonstra não somente a dispersão e o corporativismo de opiniões dos profissionais do foro, como também e principalmente, uma grave violação institucional. São suas estas palavras: “O que não vi – volto a ressaltar: com raras e honrosas exceções – foi emanar de Magistrados e Promotores a preocupação com a democracia. Isso sim é relevante. É preciso dizer, e fazê-lo claramente, que executar a pena sem trânsito em julgado de sentença condenatória é uma agressão ao regime democrático”. E ainda mais: “com a devida venia dos ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal que se posicionaram de modo diverso, parece óbvio que uma pena só se executa frente a um culpado. Não creio que seja possível afirmar, pendentes recursos que podem resultar em absolvição, que alguém possa ser tratado como culpado! Se é assim, como se executará a sentença penal que não se debruça ainda sobre uma culpa afirmada? Como pode ser democrático um Estado que aceita uma privação de liberdade, por exemplo, de alguém que, ao final, pode ser considerado pelo próprio Estado não culpado? Como explicar ao réu ou à sua família, na eventualidade de uma absolvição com declaração de inocência na superior instância, as razões pelas quais esteve preso até então? A meu ver, nem a restauração dos termos da lei 8.038/90, nem a eventual postergação infindável dos processos criminais é razão suficiente para agredir a democracia”. [1]
3.O chamado erro judiciário
Como é óbvio, a situação processual do erro judiciário ganhou essa designação em face da decisão condenatória proferida por juiz (de direito e de fato) e por tribunais (togados e populares) em consequência do erro ou equívoco acerca das circunstâncias concretas, especialmente da autoria quando o inocente é condenado em lugar do culpado [2]. Mas a decisão, com o vício de percepção da realidade, também ocorre quando um culpado é absolvido. Sob outro aspecto, o erro judiciário é praticado não somente em razão do fato objeto do julgamento, mas, também, quanto ao direito aplicável. Assim, há erro judiciário de direito quando o réu é sancionado a uma longa pena de prisão, como responsável por um concurso material de crimes, mas, evidentemente, a hipótese era de crime continuado (CP, arts. 69 e 71) e assim declarada na apelação da defesa.
4.O desmonte de princípios e normas legais
O Supremo Tribunal Federal, com o malsinado precedente e agindo como arauto da mídia sensacionalista [3], de uma só “penada” afrontou: (a) o princípio constitucional da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII); (b) os princípios de independência e harmonia entre os poderes do Estado, essenciais em um Estado Democrático de Direito; (c) o princípio legal da presunção de inocência (CPP, art. 283); (d) o direito de iniciar o pagamento da multa somente após 10 (dez) dias do trânsito em julgado da sentença (CP, art. 50); (e) os comandos dos arts. 105, 147, 160 e 164 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), que regulam a execução das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, do sursis e da multa.
A propósito do relevante assunto, abre-se uma fecunda discussão sobre o açodamento de maioria dos juízes da Corte Excelsa, que, certamente, não poderão manter por muito tempo essa anomalia que provocará situações aberrantes, como por exemplo: (a) expedido e cumprido o mandado de prisão pela Câmara ou Turma dos tribunais, houver a admissibilidade do recurso especial e/ou extraordinário; (b) idem, ibidem, houver a concessão de habeas corpus pelo STJ ou STF, reconhecendo a nulidade parcial do processo incluindo a sentença (CPP, art. 573, § 1º); (c) idem, ibidem, o número de ações de indenização contra os Estados e a União, fundadas no inciso LXXV, do art. 5º, da Lei Maior: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.
5.Retroatividade e ultratividade benignas
É elementar que a execução atual dos mandados de prisão, nas condenações confirmadas ou proferidas em segundo grau de jurisdição é manifestamente abusiva, autorizando a impetração de habeas corpus pelos fatos praticados antes de 17 de fevereiro de 2016 (data da decisão no HC 126292), pela simples razão: no mês de fevereiro de 2009, o Informativo STF nº 534 veiculou a decisão plenária, por maioria de votos (7x4), relatada pelo Ministro Eros Grau, no pressuposto de que “ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do CPP” (HC 84.078/MG, 05.02.2009).
A doutrina e vários precedentes reconhecem que as decisões do Supremo Tribunal Federal, conforme a Constituição, têm a eficácia da lei penal e é aplicável no caso concreto, com seus efeitos retroativo e ultrativo (CP, art. 2º e parág. ún.). Assim sendo, o fato praticado antes da decisão acima indicada está coberto pelo princípio da retroatividade da jurisprudência benigna que consagrou a presunção de inocência. A mesma solução deve ser dada ao fato posterior àquela data em face do princípio da ultratividade da jurisprudência. O que é inadmissível – e fonte de inúmeras ações de indenização por danos materiais e morais – é emprestar efeito retroativo maligno ao julgado de hoje para romper a sentença de ontem, que mandou promover a execução “após o trânsito em julgado da condenação”.
[1] Disponível em: www.emporiododireito.com.br/tag/hc-126292 (Acesso em 19.06.2016) (Os destaques em itálico são meus).
[2] Na verdade, chamar de “judiciário” um erro que, na maioria das vezes, deve ser atribuído a equívoco, vício ou incompetência da investigação e/ou da instrução do fato delituoso, não raro com a omissão ou ação das partes é, sem dúvida, de uma injustiça berrante.
[3] Mais do que nunca defensores de acusados precisam reagir à difamatória imputação de que são responsáveis exclusivos pela excessiva demora do processo mediante expedientes protelatórios quanto à prova e petições repetitivas quanto aos recursos. Como é elementar, nenhum desvio ético pode prosperar na “indústria da prescrição” se não tiver o exequatur do magistrado e a leniência ou indiferença do Ministério Público e/ou do seu assistente. Afinal, o juiz tem o domínio do fato processual.
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* René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câm. dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova parte geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Min. da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991).
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