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1.Abuso do Direito

Na decisão do HC 126.292 (SP), o Supremo Tribunal Federal contrariou dispositivo constitucional expresso – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII) –, ao declarar exequível provisoriamente o acórdão condenatório proferido em grau de apelação. E, ao mesmo tempo, afrontou o princípio da independência entre os poderes (CF, art. 2º), substituindo-se ao legislador para “revogar” os seguintes dispositivos: (a) arts. 50 e 51 do Código Penal e 164 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), que exigem o trânsito em julgado da sentença condenatória para a execução da pena de multa; (b) arts. 105 e 147, da LEP, que estabelecem a mesma condição para o cumprimento das penas privativa de liberdade e restritiva de direitos; (c) art. 283 do Código de Processo Penal, que taxativamente declara: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Outra evidente demonstração do abuso judiciário foi caracterizada pela aplicação da nova doutrina de segurança pública com efeito ex-tunc, isto é, retroativamente, para alcançar todos os condenados por fato anterior à decisão. Estabelece o novo Código Civil (sem correspondência no diploma anterior) que comete ato ilícito “o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (art. 187). A redação guarda semelhança com o texto correspondente do Código Civil português: “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito” (art. 334º).

2.Decisão de conteúdo misto

O lamentável precedente tem, inequivocamente, um conteúdo misto porque envolve matérias de direito processual penal e direito penal. Não se trata, como poderia parecer, em um juízo incipiente, de uma regra aplicável “desde logo” ao caso concreto (CPP, art. 2º).

Essa conclusão foi adotada no meu Curso de Direito Penal: Parte Geral, 5ª ed. (p. 135-136), ao relacionar a norma da presunção de inocência entre os princípios fundamentais de Direito Penal, porque expressamente se refere à culpa e à sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII). No mesmo sentido, Celso Limongi explica que, “embora seja inteiramente correto afirmar-se que o ‘due process of law’ constitua paradigma do Direito Processual, não há nenhuma incorreção afirmar-se que também constitui princípio basilar do Direito Penal” [1]. Os tribunais consagraram essa categoria de normas ao aplicar o art. 366 do Código de Processo Penal. Assim, o Tribunal Federal da 1ª Região: “nova redação conferida pela Lei 9.271/96 ao art. 366 do CPP cominou ao mesmo tempo em consagrar norma de direito processual, determinando suspensão do curso do processo, e, ainda, na regra de direito material, suspendendo o fluxo da prescrição. Inaplicabilidade. Norma mais gravosa ao acusado, conduta anterior à referida lei. Aplicação ao princípio constitucional da irretroatividade da norma menos benéfica” [2]. A propósito, Nucci: “tendo em vista que se trata de lei de conteúdo misto – penal (suspensão da prescrição) e processual penal (suspensão do processo) – tornou-se jurisprudência pacífica que não pode ela retroagir, levando-se em conta ser o aspecto penal da norma prejudicial ao réu, pois impede o curso da prescrição” [3]. É claro que o acórdão da mudança, pela maioria dos membros do STF, interpretou uma norma constitucional-penal (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”) para contrariá-la na hipótese da condenação de segundo grau. A maior demonstração de que o mencionado aresto tem conteúdo heterogêneo se apresenta quando a execução antecipada da pena de prisão implica, necessariamente, a execução pena de multa se for cumulativa, situação que nega vigência ao art. 50 do Código Penal: “a multa deve ser paga dentro de 10 (dez) dias depois de transitada em julgado a sentença (...)”.

3.Proibição da retroatividade mais gravosa

O aresto proferido conforme a Constituição tem força cogente assim tal qual a lei penal, como foi possível verificar no julgamento que descriminalizou o aborto do feto anencéfalo. Tem a mesma natureza o julgado em discussão que padece de inconstitucionalidade.

É da tradição constitucional brasileira a proibição da aplicação retroativa da lex gravior. Até mesmo a Carta Política autoritária de 1937, que previu a pena de morte em tempo de paz, resguardou o princípio dispondo que “as penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores” (art. 122, § 13). A vigente CF declara que a lei penal não retroagirá, salvo em benefício do réu (art. 5°, XL).

Em substancioso parecer, “Mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Segurança Jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais”, o Professor Luis Roberto Barroso leciona: “se é o Poder Judiciário, e sobretudo o Supremo Tribunal Federal, no sistema brasileiro, o órgão que define em última análise qual é o direito, a modificação do entendimento consolidado da Corte sobre determinada matéria modifica o direito vigente e, sob a perspectiva do cidadão, isso equivale em todos os elementos relevantes, à alteração do próprio texto legislado. Ora, a fim de proteger o indivíduo, a Constituição ocupa-se de impor limites à inovação legislativa. Pelas mesmas razões, e na linha do que já se destacou acima, uma Suprema Corte que decide modificar sua jurisprudência consolidada deve preocupar-se com cuidados semelhantes” [4].

E, mais incisivamente: “a aplicação do que se acaba de expor ao caso é de singela verificação. A eventual mudança de interpretação por parte do STF na hipótese produz os mesmos efeitos da edição de um novo ato legislativo. Mesmo porque, como já se sublinhou, a norma não se confunde com o texto legislado, sendo na verdade o produto final da interpretação. Nesse passo, se a prática anterior dos contribuintes era expressamente reconhecida pelo STF e pelos demais tribunais como o comportamento exigível, este era o direito ou a norma em vigor. A nova orientação da Corte, caso venha a ser efetivamente formalizada, importará em norma nova e resultará na majoração do tributo a ser pago, podendo ser aplicada apenas a partir do momento de sua edição, e não retroativamente” [5]. (Segue)

[1] “Um bom exemplo da análise da lei penal, à luz do princípio constitucional do devido processo legal”, em Boletim do IBCCrim, São Paulo, nº 101, abril, 2001, p. 1.

[2] AP. nº 1998.01.00.051300-9-MG-A, 2ª Turma, Rel. Des.Fed. Vera Carla Cruz, RT 804/687.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado, 15ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 824.

[4]BARROSO, Luís Roberto. Mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Segurança jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais. In: Revista de Direito do Estado n. 2, abril/junho de 2006. Rio de Janeiro: Renovar, p. 273.

[5]BARROSO, Luís Roberto (Ob. cit., p. 283).

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* René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câm. dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova parte geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Min. da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991).

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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