1. O caso concreto: o excesso de prazo
Em 09.11.2006, o paciente Marcel Ferreira de Oliveira, juntamente com um cúmplice, desferiu vários tiros de arma de fogo que causaram a morte de uma primeira vítima. Na sequência, ainda na companhia do corréu, e com o objetivo de ocultar a prática do delito anterior, desferiu novos disparos de arma de fogo contra um segundo ofendido que também veio a falecer.
O Tribunal do Júri de Ibiúna (SP) condenou-o à pena de 25 (vinte e cinco) anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, sendo-lhe negada a possibilidade de aguardar em liberdade o julgamento de recurso. Contra essa decisão foram impetrados e negados habeas corpus perante o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça. Junto ao Excelso Pretório a súplica foi renovada (HC 118.770-SP), ao argumento de que a decisão que manteve a prisão preventiva - durando já 7 (sete) anos - não estava motivada quanto ao requisito da ordem pública. E requereu a concessão da liminar que foi deferida pelo Ministro MARCO AURÉLIO, na qualidade de relator, aos argumentos seguintes:
“3. A fase é de exame da medida acauteladora. Hoje, sem culpa formada, o paciente está preso há 9 anos, 5 meses e 21 dias. Surge o excesso de prazo. Na sentença, ao manter a preventiva, chegou-se a justificar a continuidade da custódia com o fato de ter permanecido segregado durante toda a instrução processual. A constrição decorrente de título condenatório provisório, embora admitida pela lei penal, continua a pertencer ao campo da excepcionalidade. A preventiva há de fazer-se balizada no tempo. Privar da liberdade, por prazo desproporcional, pessoas cuja responsabilidade penal ainda não veio a ser declarada em definitivo viola o princípio da presunção da não culpabilidade. Concluir pela manutenção da medida é autorizar a transmutação do pronunciamento mediante o qual foi implementada – diga-se, ainda não alcançado pela preclusão –, em execução antecipada da pena, ignorando-se garantia constitucional inafastável.3. Defiro a liminar pleiteada. Expeçam alvará de soltura a ser cumprido com as cautelas próprias: caso o paciente não se encontre recolhido por motivo diverso da preventiva retratada no processo nº 0004626-52.2008.8.26.0238, em trâmite na 1ª Vara Judicial de Ibiúna/SP.
Advirtam-no da necessidade de permanecer na residência indicada ao Juízo, atendendo aos chamamentos judiciais, de informar possível transferência e de adotar a postura que se aguarda do homem médio.
4. Colham o parecer da Procuradoria-Geral da República.
Brasília, 5 de maio de 2016.
Relator
2. O caso concreto: uma “tese de julgamento”
Abrindo a divergência, o Ministro ROBERTO BARROSO assentou que o caso seria de habeas corpus substitutivo do recurso ordinário previsto constitucionalmente, situação processual que não admite conhecimento em face da jurisprudência da 1ª Turma.
Ao rejeitar a possibilidade de concessão de ofício da ordem, sustenta ele a constitucionalidade da execução provisória da condenação proferida pelo tribunal popular com a seguinte “Tese de julgamento. ‘A prisão do réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não culpabilidade”.
A ementa de seu pronunciamento está assim redigida: “DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. HABEAS CORPUS. DUPLO HOMICÍDIO, AMBOS QUALIFICADOS.CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI.SOBERANIA DOS VEREDICTOS. INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA. POSSIBILIDADE.
A primeira das considerandas do voto refere a competência constitucional do tribunal do povo para os crimes dolosos contra a vida e a soberania de seus veredictos “a significar que os tribunais [togados] não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular”. A segunda estabelece: “Diante disso não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer recurso. Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral no ARE 964.246-RG, Rel. Min. Teori Zavascki, já que, também no caso de decisão do Júri, o Tribunal não poderá apreciar os fatos e provas, na medida em que a responsabilidade do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri”.
Como contraponto à inusitada orientação, o ministro BARROSO faz uma ressalva, na terceira série de ponderações: “Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, hipóteses incomuns [1], o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso”.
3.Os fundamentos da tese
O corpo do voto está redigido com a maestria típica das manifestações orais e escritas do exímio jurista quanto à clareza de linguagem e escorreita forma gramatical. Sob o título “III. A AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE DA PRISÃO E A SOBERANIA DO VEREDICTO DO TRIBUNAL DO JÚRI”, o laureado mestre advoga sua opinião iniciando com preceitos da lei fundamental que define a competência do Júri e a soberania de seus veredictos (art. 5º, XXXVIII, d e c, respectivamente). Arremata que “os tribunais não podem substituir a decisão proferida”. E invoca o magistério de NUCCI: “o veredicto popular é a última palavra, não podendo ser contestada, quanto ao mérito, por qualquer Tribunal togado”.
Ao mencionar que a sentença absolutória dos jurados pode ser invalidada a pedido do Ministério Público (nulidade ou decisão manifestamente contrária à prova dos autos), reafirma: “Porém, como regra geral, o Tribunal não poderá substituir uma decisão do júri, mas apenas determinar a realização de um novo julgamento” [2].
O núcleo da fundamentação da tese, pela sua originalidade e relevância, merece transcrição literal: “12. Como já assentei, a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/1988, art. 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar (CF/1988, arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). Assim, interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas. 13. Essa forma de solucionar a questão se mostra compatível com a lógica adotada nas deliberações do Plenário Físico (HC 126.292, Rel. Min. Teori Zavascki; ADCs 43 e 44, Rel. Min. Marco Aurélio) e do Plenário Virtual por este Tribunal (ARE 964.246-RG, Rel. Min. Teori Zavascki), relativamente à exequibilidade das condenações criminais após o julgamento em segundo grau de jurisdição. É que, como já observado, tendo em vista a competência privativa do Tribunal do Júri e a soberania dos seus veredictos, o Tribunal não pode rediscutir autoria ou materialidade, ante a impossibilidade de substituir os jurados na apreciação de fatos e provas. Daí ser legítima a execução antecipada da condenação” [3]. (...)
Em uma nota de rodapé (nº 5), o ministro propõe nova redação ao art. 597 do Código de Processo Penal [4], nos seguintes termos: “Deve-se conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 597 do Código de Processo Penal, para se excluir a possibilidade de que o texto do dispositivo seja interpretado no sentido de obstar a execução provisória da pena depois da decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, de modo a compatibilizá-lo com as exigências constitucionais de soberania dos veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c) e de efetividade e credibilidade do sistema de justiça criminal no caso de crimes dolosos contra a vida” [5].
Na verdade, a expressão repetida em vários julgamentos que encerrariam uma “interpretação conforme a Constituição” é, no presente caso, um autêntico eufemismo com o objetivo de alterar o texto legal, procedimento cuja competência é exclusiva do Poder Legislativo. É óbvio que a “interpretação” que resulta em conclusão frontalmente contrária à literalidade do texto, interpretação não é, mas pura e simples negação de seu sentido; desobediência ao seu claro comando. Tal extravagância de exegese é o mesmo quanto afirmar que onde se lê quadrado, deve-se passar a ler círculo; onde está escrito escuro, leia-se iluminado; no lugar de “a apelação terá efeito suspensivo”, entenda-se “a apelação não terá efeito suspensivo”. Valendo-se dessa curiosa (e perigosa) “técnica interpretativa”, todas as leis escritas poderão, subitamente, ser ignoradas – e, junto com elas, a segurança jurídica da sociedade. Em nome da soberania do povo no tribunal popular, nega-se, precisamente, tal soberania– fonte que é da feitura das leis. Afinal, é da vontade geral que a apelação contra a condenação do Júri tenha efeito suspensivo. É o Poder Legislativo quem o afirma.
4.O desmonte de princípios e regras constitucionais e legais
O Supremo Tribunal Federal, com o malsinado precedente no HC 126.292 e agindo como arauto da mídia sensacionalista , de uma só “penada” afrontou: (a) o princípio constitucional da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII); (b) os princípios de independência e harmonia entre os poderes do Estado, essenciais em um Estado Democrático de Direito; (c) a regra legal da presunção de inocência (CPP, art. 283); (d) o direito de iniciar o pagamento da multa somente após 10 (dez) dias do trânsito em julgado da sentença (CP, art. 50); (e) os comandos dos arts. 105, 147, 160 e 164 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), que regulam a execução das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, do sursis e da multa.
5.O flagrante equívoco da tese
5.1.A RELATIVIDADE DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DA DECISÃO DO JÚRI
A soberania das decisões dos juízes de fato não é absoluta como não são absolutos os direitos e as garantias fundamentais, a exemplo do bem maior de todos que é a vida humana, em face da previsão da pena de morte para crimes militares em tempo de guerra (CF, art. 5º, XLVII, a c/c arts 55-57 e 355 e seguintes do Código Penal Militar).
5.2.PRECEDENTES ESPECÍFICOS
Há inúmeros julgados afirmando a possibilidade de, em sede revisional, desconstituir a decisão (condenatória) do tribunal popular, demonstrando que a soberania do Júri não implica na intangibilidade de suas decisões. Seguem alguns antigos, outros recentes. Inicio por acórdãos colhidos por RUI STOCO na obra Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, 2. ed., São Paulo: RT, 2004, v. 4, p. 1195: “Júri. Revisão criminal. Peticionário condenado por homicídio duplamente qualificado (meio cruel e recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima). Testemunhas que afirmaram não ter o réu participado do linchamento. Exclusiva versão de que se pode extrair veracidade. Soberania do Júri que não significa intangibilidade de suas decisões. Garantia constitucional da soberania dos veredictos que deriva das garantias individuais e não da instituição propriamente dita. Absolvição do peticionário, com fundamento no art. 386, IV do CPP. Revisão deferida” [7] “Os juízes togados podem, validamente, no processo de revisão criminal, reexaminar os veredictos do Tribunal do Júri, pela prevalência do interesse social do status libertatis” [8]. •• “A condenação penal imposta pelo Júri, quanto transitada em julgado, reveste-se de revisibilidade. É passível de desconstituição, mediante ação de revisão criminal, não se lhe sendo oponível a cláusula constitucional da soberania do veredicto do Júri”. (RT 656/364) (TJSP – 2º Gr. Cs. Crims. – Rev. 227.269-3 – Rel. Des. BITTENCOURT RODRIGUES – j. 20.10.1998 – JTJ-LEX 222/328)”. E, ainda mais: “O fato de tratar-se de decisão do Júri, recoberta pelo manto da soberania, não impede a revisão criminal. É que o conceito de soberania aqui não se confunde com o sentido absoluto e rígido de ‘poder incontrastável de querer coercitivamente e fixar competências’ do Direito Constitucional” [10]. •• “Em revisão, o Tribunal de Justiça pode absolver réu condenado pelo Júri” [11].
O Tribunal de Justiça do Paraná, em acórdão relatado pelo Desembargador LUIZ OSÓRIO MORAES PANZA, mostra igual orientação: “REVISÃO CRIMINAL. JÚRI. HOMICÍDIOS (CONSUMADO E TENTADO). DECISÃO CONDENATÓRIA CONTRÁRIA À EVIDÊNCIA DO AUTOS. JULGAMENTO AMPARADO APENAS EM PROVAS COLHIDAS NO INQUÉRITO POLICIAL. NULIDADE CONFIGURADA. ERRO JUDICIÁRIO CONFIGURADO. NECESSIDADE DE ABSOLVIÇÃO. PEDIDO PROCEDENTE. - Contraria a evidência dos autos a decisão condenatória que se fundamenta apenas em prova testemunhal produzida no inquérito policial e que é retificada em Juízo e em Plenário, a impor a sua absolvição, eis que houve erro judiciário, inclusive diante da nova redação do art. 155, CPP. Não seria lógico simplesmente encaminhar o réu a novo júri, diante da possibilidade de manutenção do aventado erro, limitando a matéria a ser discutida em novo recurso” [12].
Há determinada passagem do aresto que merece destaque: “Baseando-se a condenação, pois, unicamente em declarações prestadas no Inquérito Policial, não confirmadas em Juízo, mas, sim, retificadas, impõe-se decretar a nulidade da condenação por ofensa ao princípio do contraditório, mas não o submetendo a novo julgamento perante o Tribunal Popular, uma vez que o apontado erro poderia persistir, inclusive com prejuízo na esfera recursal. Sobre o tema, muito embora não sendo algo corriqueiro, foi lapidar o voto proferido pelo Ministro Celso Limongi, do Superior Tribunal de Justiça, ao entender que seria caso de absolvição e não de mera anulação com novo júri, haja vista a possibilidade da perpetuação do erro, não sendo esse o objetivo do sistema processual penal. Assim, faço uso do seu voto para justificar o presente, não sem antes citar a referida ementa: ‘HABEAS CORPUS.CONDENAÇÃO. TRIBUNAL DO JÚRI. REVISÃO CRIMINAL INDEFERIDA. TRIBUNAL ESTADUAL. MANIFESTO ERRO JUDICIÁRIO COMETIDO PELO JÚRI. REVISÃO QUE PODERIA E DEVERIA RESCINDIR A SENTENÇA CONDENATÓRIA E ABSOLVER O PACIENTE. ORDEM CONCEDIDA PARA ABSOLVER O PACIENTE, POR FALTA DE JUSTA CAUSA.1. A soberania do Júri é garantia em favor do jus libertatis. 2. A revisão criminal também objetiva proteger o jus libertatis, pois só pode ser utilizada pela defesa. 3. Institutos que convergem para proteção da liberdade de ir, vir e permanecer. 4. Indeferida a revisão só resta o habeas corpus a impedir a perpetuidade do erro judiciário. O remédio heroico, por sua natureza, pode, diante de claro erro judiciário, desconstituir e injusta condenação e absolver o ora paciente. 5. Ordem concedida para absolver o paciente, com expedição de alvará de soltura clausulado. HC 63290/RJ, Rel. Min. HAROLDO RODRIGUES (Desembargador convocado do TJ/CE), Rel. p/Acordão Ministro CELSO LIMONGI (Desembargador convocado do TJ/SP), 6ª T., j. 03.09.2009, DJe 19.04.2010.
A afirmação de que as cortes togadas não têm competência para examinar o mérito dos processos de crimes dolosos contra a vida é neutralizada pela interpretação sistemática de normas constitucionais e por lúcida e firme jurisprudência. O mérito da imputação é analisado pelo Tribunal de apelação quando a decisão dos jurados (condenando ou absolvendo) for “manifestamente contrária à prova dos autos” (CPP, art. 593, III, d). É certo que repetida a decisão de mérito em novo julgamento pelo tribunal do povo “não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação” (CPP, art. 593, § 3º, in fine). Mas, no juízo universal da Revisão Criminal, essa possibilidade é assegurada não só pela lógica jurídica como também pela lucidez da doutrina e inteligência de precedentes judiciais.
Reconhecendo a existência de conflito entre princípios constitucionais relevantes e a necessidade de enfrentá-lo, o talentoso ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ resolveu-o com absoluta precisão dogmática: “PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. JÚRI. REVISÃO CRIMINAL.ABSOLVIÇÃO. POSSIBILIDADE. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA SOBRE A SOBERANIA DE VEREDITOS E COISA JULGADA. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. 1. Havendo o Tribunal de origem consignado que a solução condenatória contrariou a evidência dos autos, inviável rever o entendimento do Tribunal, porquanto importaria em reexame do acervo fático-probatório dos autos, procedimento vedado em recurso especial, por força do enunciado sumular n. 7 do Superior Tribunal de Justiça.2. Diante do conflito entre os princípios da soberania dos vereditos e da dignidade da pessoa humana, ambos sujeitos à tutela constitucional, cabe conferir prevalência a este, considerando-se a repugnância que causa a condenação de um inocente por erro judiciário (REsp 964978/SP) 3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido” [13].
5.3.A TESE DESATENDE O PRECEDENTE STF HC 126.292(SP)
É necessário rememorar a ementa do voto do ministro TEORI ZAVASCKI (HC 126.292-SP) em todas as vertentes de convencimento porque a sua construção teve a excepcional força para desconstituir o princípio da presunção de inocência, frente à uma nova perspectiva de interpretação, verbis: “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado”.
Como é elementar, os casos criminais submetidos ao comando desse precedente não podem ser objeto de aplicação analógica ou interpretação extensiva, máxime porque o mandamento judicial em referência caracteriza uma elaboração de conteúdo misto: penal e processual penal. A propósito, essa espécie foi reconhecida no julgamento do TRF 1ª Região, 2ª Turma, na AP - AP 1998.01.00.051300-9-MG- Rel. Des. VERA CARLA CRUZ, 26.02.2002, RT 804/687, verbis: “Prescrição. Admissibilidade. Indiscutível essência de direito material, uma vez que extingue a pretensão punitiva do Estado. Nova redação conferida pela Lei 9.271/96 ao art. 366 do CPP cominou ao mesmo tempo em consagrar norma de direito processual, determinando suspensão do curso do processo, e, ainda, na regra de direito material, suspendendo o fluxo da prescrição. Inaplicabilidade. Norma mais gravosa ao acusado, conduta anterior à referida lei. Aplicação ao princípio constitucional da irretroatividade da norma menos benéfica”.
O pressuposto do duplo grau de jurisdição, literalmente exigido como conteúdo material para embasar a revolucionária exegese, é igualmente mencionado no voto do ministro BARROSO. Em síntese: a execução antecipada está sujeita a uma condição suspensiva, ou seja, a confirmação da sentença condenatória de primeiro grau. Ocorre que a decisão do Júri não caracteriza, obviamente, uma “sentença penal condenatória confirmada por tribunal de segundo grau de jurisdição”, nos termos do enunciado paradigmático do voto condutor que atropelou o princípio constitucional da presunção de inocência.
5.4.UMA CRÍTICA BEM FUNDAMENTADA
Em vigoroso e bem lançado artigo, comentando o voto em análise, o procurador de Justiça da Bahia, professor RÔMULO MOREIRA, observa: “A soberania popular aproveita ao réu, não à acusação! Não esqueçamos, outrossim, que as decisões do Tribunal do Júri são imotivadas. Sequer se exige grau de instrução aos jurados (confira-se o Código de Processo Penal). Como, então, podemos admitir que alguém, condenado pelo Conselho de Justiça, sem estarem presentes os requisitos da prisão preventiva, seja imediatamente forçado a cumprir uma pena? E se o Tribunal de Justiça ou o Tribunal Regional Federal anular o julgamento por entender, à vista das provas juntadas aos autos, que houve uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos (portanto, não se trata apenas de análise de questão de Direito)? E se, depois do segundo julgamento, quando não mais haverá possibilidade de recurso sob o mesmo fundamento (art. 593, parágrafo terceiro do Código de Processo Penal), o réu for absolvido, quem arcará com o erro judiciário? Algum Ministro, certamente, colaborará com a indenização. Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 89544, tendo como relator o Ministro Cezar Peluso, assentou não haver violação à soberania popular a proibição da reformatio in pejus , decisão repetida no Habeas Corpus nº. 136.768”.
O texto do prestigiado mestre de Direito Processual Penal encerra com essa irônica e suposta dúvida: “Será mesmo que, ‘doravante, ocorrerão com menor frequência as lamentáveis situações em que homicidas condenados pelos jurados saem pelas portas do tribunal do júri ao lado de seus julgadores e dos familiares de suas vítimas?’ [14] Mas, quem os disse homicidas? Já existe uma decisão judicial transitada em julgado? Eis a questão!” [15].
6.Revisão Criminal para absolver o réu condenado pelo Júri
A Revisão Criminal é um direito subjetivo do condenado previsto e tutelado pela Constituição (arts. 101, I, (j) e 105, I, (e) e pelo Código de Processo Penal [16], visando desconstituir o erro judiciário fenômeno reconhecido pela lei fundamental para obrigar o Estado a indenizar o condenado (art. 5º, LXXV). O seu deferimento poderá consistir em (a) mudança da classificação da infração; (b) absolvição do réu; (c) modificação da pena, ou (d) anulação do processo (CPP, art. 626).
Autorizada doutrina - além da jurisprudência já referida - sustenta a viabilidade dessa ação penal constitutiva quando, entre outras hipóteses legais, “a sentença condenatória for contrária (...) à evidência dos autos”. (CPP, art. 621, I, in fine). O saudoso Procurador de Justiça de São Paulo, MIRABETE, comentando o art. 621 do Código de Processo Penal, sustenta: “É admissível a revisão de sentença condenatória irrecorrível proferida pelo Tribunal do Júri, pois a alegação de que o deferimento pedido feriria a ‘soberania dos veredictos’, consagrada na Constituição Federal não se sustenta. A expressão é técnico jurídica e a soberania dos veredictos é instituída como uma das garantias individuais, em benefício do réu, não podendo ser atingida enquanto preceito para garantir sua liberdade. Não pode, dessa forma, ser invocada contra ele” [17]. Em monografia específica, o desembargador OLIVEIRA JUNIOR, do Tribunal de Justiça de São Paulo, esclarece: “O júri popular exercitando um julgamento político, ou simplesmente fático – e não jurídico – não detém o atributo de quem fala por último, sem que se possa dar o dito pelo não dito. Não se há de confundir, como assinalado por Marcus Vinícius Amorim de Oliveira [18], ‘soberania com onipotência insensata e sem freios’.” Afinal, o poder dos jurados, consistente em julgar sem fundamentação jurídica, ao reverso de certo indicativo constitucional (CF, art. 93, inc.IX) [19], “não pode colidir com o direito à plenitude de defesa do réu, em que se incluem o contraditório, o princípio da reserva legal e o princípio da presunção de inocência. Daí a necessidade da existência de mecanismos de controle da legalidade da decisão dos jurados” [20].
Prossegue o magistrado OLIVEIRA JÚNIOR: “Hoje está assentado que ‘a soberania os veredictos é preceito estabelecido como garantia do acusado, podendo ceder diante de norma que visa exatamente a garantir os direitos de defesa e a própria liberdade’ [21]; e, a revisão criminal, sendo aquele instrumento constitucional para a obtenção de um especial juízo de amparo para o restabelecimento da Justiça e da Liberdade, é perfeitamente utilizável em face de decisões injustas do Tribunal Popular, não lhe denegrindo a soberania” [22].
Na mesma obra em referência, a lição do notável processualista penal, MARQUES PORTO [23], imortal membro do Ministério Público de São Paulo, adotada “com cunho de definitiva”, merece invocação: “a soberania dos veredictos tem seu sentido próprio - impossibilidade de outro órgão jurisdicional modificar a decisão dos jurados, para absolver o réu condenado ou condenar o réu absolvido pelo Tribunal do Júri - e seus efeitos restritos ao processo enquanto relação jurídico-processual não decidida. Assim, transitando em julgado a sentença do Juiz Presidente, é cabível a revisão do processo findo [...] e o que foi decidido na esfera revisional não fere a soberania do Júri” [24].
Penso que um exemplo da realidade forense joga uma pá de cal na crença aberrante que faz da soberania do veredito condenatório do Júri a barreira intransponível para o reexame togado. Determinado réu, dirigindo um automóvel com excesso de velocidade atropela cinco pessoas que estavam em uma fila de ônibus, causando-lhes a morte. Denunciado e pronunciado por homicídio qualificado com dolo eventual é condenado a 15 anos de reclusão pelo tribunal popular sensibilizado com a extraordinária repercussão midiática do fato e a existência anterior de infrações de trânsito. O tribunal de apelação dá provimento ao recurso reconhecendo que a decisão é “manifestamente contrária à prova dos autos” que, indubitavelmente, caracteriza um crime culposo. Em segundo julgamento os jurados decidem contrariar o veredito togado. Não cabe segunda apelação. Pode-se falar em “efetividade e credibilidade do sistema de justiça criminal” com esse tipo de justiça das ruas sem a proteção legislativa da revisão criminal operando para a restitutio in integrum?
7. A mídia e a justiça das ruas
A frase final da tese proposta constitui o seu ponto ótimo, ou seja, que a execução (provisória) da condenação pelo Júri, em função da soberania do veredicto, caracteriza a “efetividade e credibilidade do sistema de justiça criminal no caso de crimes dolosos contra a vida”. Trata-se, evidentemente, de uma perspectiva alimentada pelo preconceito da condenação que, obviamente, não traduz os objetivos do processo penal em nosso Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º). Com efeito, o objetivo público do processo penal é oferecer elementos para a realização da Justiça, absolvendo ou condenando o acusado após o devido processo legal com os direitos e as garantias de que se reveste.
É evidente que o crime, como o mais grave dos ilícitos sociais, não pode ficar no desconhecimento da população quando suas consequências merecem a reprovação dos cidadãos. Mas uma coisa é noticiar a existência do delito e seu autor quando essa informação é necessária em favor da segurança pública, da paz social, da prevenção da reincidência, de seu controle, etc. Outra é a sistemática e ruidosa exploração do fato e seu autor para aumentar níveis de audiência como fator de interesse comercial pela propaganda com base em matérias de rotina policial. Como todas as profissões, o jornalismo não pode descurar da responsabilidade social da imprensa. A propósito, merece referência a lúcida opinião da desembargadora do Tribunal Federal da 2ª Região (RJ / Espírito Santo), SIMONE SCHREIBER: “A incompatibilidade entre a verdade midiática e a verdade mediada pela atividade processual (única que pode arrimar um veredicto condenatório válido e justo) já é por si um elemento de tensão entre a imprensa e o judiciário. Ademais, o propósito de influenciar o resultado do julgamento criminal é parente no ‘jornalismo militante no combate ao crime’. É necessário portanto desmistificar a ideia de que eventuais restrições postas à liberdade de expressão para promoção de outros direitos implicam, em última análise em cerceamento indevido da única instituição depositária dos ideais democráticos no país. Contudo, não se quer sustentar que qualquer cobertura jornalística de feitos criminais é espúria, persistindo a necessidade de distinguir as manifestações lícitas das ilícitas, entendidas como ilícitas aquelas que violem o direito do réu ao julgamento justo” [25].
Um aspecto revelador do mass media sobre o Supremo Tribunal Federal que, na referida decisão em 17 de fevereiro deste ano (HC 126292-SP), assumiu indevidamente a função de legislador, são as permanentes manifestações de alguns ministros em entrevistas para jornais, rádio e TV sobre temas sociais e políticos de natureza controvertida e que, não raro, desqualificam a imparcialidade inerente ao honroso cargo e a missão institucional da magistratura.
8.Vereditos e condenações
Já foi dito com muita propriedade que “na tensão dialética entre, de um lado, a liberdade de imprensa e de outro, por exemplo, a presunção de inocência, o que se tem visto com espantosa frequência é o perecimento da presunção de inocência, avassalada por uma pressão de mídia, que se tresmalha dos limites do razoável e do justo. E há um paradoxo curioso nesses embates: a imprensa cobra ética da sociedade e de seus atores, de maneira implacável; contudo, pressionada pela necessidade do furo e pelo frenesi crescente das campanhas, guarda pouca ou nenhuma ética em sua conduta” [26].
Em palavras memoráveis sobre o tema “Vereditos e condenações”, o búlgaro ELIAS CANETTI - Prêmio Nobel de Literatura (1981) - retrata o pesaroso espetáculo de adesão crescente das massas populares às organizações nazistas, na Alemanha e Áustria dos anos 30. Aludindo à “enfermidade do julgamento” como fenômeno generalizado da humanidade assim observa com lucidez e vigor: “Temos constantemente a oportunidade de flagrar conhecidos, desconhecidos e a nós mesmos nesse processo do condenar. O prazer do veredito negativo é sempre inequívoco. Trata-se de um prazer rude e cruel, que não se deixa perturbar por coisa alguma. Um veredito somente é um veredito se proferido com uma segurança algo sinistra. Desconhece a clemência, da mesma forma como desconhece a cautela. Chega-se a ele com rapidez, e que tal se dê sem reflexão é algo perfeitamente adequado à sua essência. A paixão que o veredito revela está ligada à sua velocidade. O veredito incondicional e o veloz são os que se desenham como prazer no rosto daquele que condena”. (....) “O juiz sentencia continuamente, por assim dizer. Seu veredito é a lei. O que ele julga são coisas bastante específicas; seu extenso saber acerca do bem e do mal provém de uma longa experiência. Mas mesmo aqueles que não são juízes – aqueles aos quais ninguém designou nem designaria em sã consciência para tal cargo -, mesmo esses atrevem-se sem cessar a proferir vereditos, e em todas as áreas. Nenhum conhecimento objetivo é exigido para tanto: podem-se contar nos dedos aqueles que reservam para si seus vereditos porque deles se envergonham. Essa enfermidade de julgamento é uma das mais disseminadas entre os homens, acometendo praticamente a todos” [27].
Notas:
[1] Afirmação sem dados que a comprovem. Anulado o julgamento por um ou outro fundamento e devolvido o recorrente à liberdade, quem pagará as horas, os dias e os meses da prisão ilegal, se não houver o reconhecimento do erro judiciário (CF, art. 5º, LXXV)?
[2] BARROSO, Roberto. Voto no HC 118.770 (SP). (Os itálicos são meus).
[3] Idem, ibidem.
[4] CPP, art. 597. “A apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo, salvo o disposto no art. 393, a aplicação provisória de interdição de direitos e de medidas de segurança (arts. 374 e 378), e o caso de suspensão condicional da pena”.
[5] Itálicos meus.
[6] Mais do que nunca defensores de acusados precisam reagir à difamatória imputação de que são responsáveis exclusivos pela excessiva demora do processo mediante expedientes protelatórios quanto à prova e petições repetitivas quanto aos recursos. Como é elementar, nenhum desvio ético pode prosperar na “indústria da prescrição” se não tiver o exequatur do magistrado e a leniência ou indiferença do Ministério Público e/ou do seu assistente. Afinal, o juiz tem o domínio do fato processual.
[7] TJSP- Gr.Cs.- Rev. 224.406-3/8-00 - Rel. Des. WALTER GUILHERME, j. 04.05.1999, Boletim IBCCrim 82/379, set. 1999.
[8] TJRJ - Rec. - Rel. Des. ENÉAS COTTA, RT 594/372.
[9] Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, cit., coordenadores: Alberto Silva Franco e Rui Stoco.
[10] Tribunal de Justiça de São Paulo, RT 479/321. (Itálicos meus).
[11] Tribunal de Justiça da Guanabara, RT 449/476.
[12] Tribunal de Justiça do Paraná, - 1ª C. Criminal em Composição Integral - RCS - 610690-9 - Ibiporã - Unânime - J. 19.08.2010)
[13] REsp 1050816 (SP), STJ, 6ª T., j. 01.12.1016, DJe 15.12.2015.
[14]Uma nota de rodapé com o número 5 tem a seguinte redação: “[5] https://vladimiraras.blog/2017/03/12/a-soberania-do-juri-e-a-execucao-penal-imediata/
[15] www.cecgp.com.br/noticias/1619-0-juri-a-presuncao-de-inocencia-e-como-sempre-os-fascistas-de-plantao (acesso em 27.03.2017)
[16] CPP, art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I - quando a sentença condenatória for contrária à lei expressa ou à evidência dos autos; II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena”.
[17] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado, 7. ed., São Paulo: Editora Atlas S/A, 2000, p. 1349-1350. (Destaques em itálico, do original; destaques em negrito, meus).
[18] “OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. Tribunal do júri popular na ordem jurídica constitucional, Curitiba: Juruá, 2002, p. 87”. (Itálicos do original). (Número original da nota de rodapé: 259).
[19] “Há quem, aliás, como fizemos no passado e agora reformulamos nosso pensar, em função da desnecessidade da fundamentação dos veredictos, dita que o júri não é órgão do Poder Judiciário.TUBENCHLAK, James. In: Tribunal do Júri - contradições e soluções, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 1997, s/n”. (Número original da nota de rodapé: 260).
[20] OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. Tribunal do júri popular na ordem jurídica constitucional, Curitiba: Juruá, 2002, p. 87. (Itálicos do original). (Número original da nota de rodapé: 261)
[21] “GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; e, FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no processo penal, 5. ed., Revista dos Tribunais, 2008, p. 315”. (Itálicos do original). (Número original da nota de rodapé: 262)
[22]OLIVEIRA JUNIOR, Antonio Sydnei de. Revisão Criminal, cit, p. 166. (Itálicos e negritos meus).
[23] MARQUES PORTO, Hermínio Alberto. Júri: procedimentos e aspectos do julgamento: questionários, 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 38-39.
[24] OLIVEIRA JUNIOR, Antonio Sydnei de. Revisão Criminal, cit., p. 167. (Itálicos do original; negritos meus).
[25] A publicidade opressiva de julgamentos criminais, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 412. (Itálicos meus)
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