1.Introdução
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, em reunião recente, a proposta legislativa que reduz a maioridade penal, atualmente fixada em 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos. O assunto ganhou repercussão nacional em face de determinados crimes de sequestro, homicídio qualificado e roubo qualificado pelo resultado morte (latrocínio).
O art. 228 da Constituição Federal declara que os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, sujeitos às normas da legislação especial, no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sancionado com a Lei nº 8.069, de 13.07.1990.
O disegno di legge ainda será submetido a discussões intensas no parlamento e nos mais variados grupos sociais estimulados pelos meios de comunicação que dedicam pautas especiais para um vigoroso debate público. Algumas questões afloram, desde logo, no quadro das dúvidas sobre a razoabilidade ou não do projeto. A primeira delas é a natureza jurídica do art. 228 da Constituição que autorizada doutrina considera cláusula pétrea e, portanto, insuscetível de emenda constitucional porque o dispositivo consagra uma garantia individual (CF, art. 60, § 4º, IV). A segunda é a absoluta precariedade dos presídios brasileiros que, além de insuportável congestionamento atentatório do princípio da dignidade da pessoa humana, não oferece condições para que os condenados jovens cumpram pena em estabelecimento em separado dos adultos e compatível para a sua adequada reinserção social.
2.Antigos modelos legais
O Código Criminal do Império (16.12.1830) declarava pelo art. 10: “Também não se julgarão criminosos: § 1. Os menores de quatorze anos”. O Código Penal da Primeira República (11.10.1890) foi bem mais rigoroso ao estabelecer que não seriam criminosos “os menores de 9 annos completos” (art. 27, § 1º) e os “maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento” (art. 27, § 2º). Um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo de 12.05.1893 decidiu criminalizar a conduta do maior de 9 anos e menor de 14 “que procurou occultar o crime e destruir-lhe os vestigios” (OLIVEIRA ESCOREL, Codigo Penal brazileiro, p. 117. E um aresto da Relação de Ouro Preto, de 20.03.1885, reconheceu o discernimento no menor que, “para commeter o crime de roubo, se premune de instrumentos apropriados, e procura horas adiantadas da noite para arrombar um cofre” (OLIVEIRA ESCOREL, ob. e loc. cit. O Projeto Alcantara Machado (1938) excluía a imputabilidade (“não são passíveis de pena”), dentre outros, o menor de 18 anos (art. 15, I). Mas previa eventual medida de segurança, dentro do “Regime de minoridade” (Tít. VI, Cap. I), determinando o art. 102: “Sempre que fôr cometida ação ou omissão definida como crime, por menos de 18 anos, proceder-se-á ao estudo da personalidade do agente, da situação moral e material da família e das outras condições em que o menor tenha vivido, fazendo-se para esse efeito as perícias e investigações necessárias”. Os dispositivos seguintes regulam a pedagogia correcional dos menores de 14 anos e os adolescentes com mais de 14 e menos de 18 anos (arts. 103 a 110). A Parte Geral do Código Penal de 1940 dispunha: “Os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial” (art. 23). O debate acerca da matéria é antigo e repercutiu no Anteprojeto Hungria (1963) cujo art. 32 previa: “ O menor de 18 anos é penalmente irresponsável, salvo se, já tendo completado 16 anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria conduta. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de um terço até metade. Os menores entre 8 e 16 anos, bem como os menores de 18 e maiores de 16 não responsáveis, ficam sujeitos às medidas educativas, curativas ou disciplinares determinadas em legislação especial”. Essa foi a orientação do Código Penal de 1969, em sua redação original, com pequenas variações (arts. 33 e 34). Na alteração imposta pela Lei nº 6.016, de 31.12.1973, o texto foi desdobrado: “O menor de dezoito anos é inimputável” (art. 33); “Os menores de dezoito anos ficam sujeitos às medidas educativas, curativas ou disciplinares determinadas em leis especiais” (art. 34).
3.A aparente contradição
Segundo muitas opiniões leigas, ocorre um paradoxo com a faculdade de alistamento eleitoral e o voto para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (CF, art. 14, § 1º, II, c) e o reconhecimento de que podendo votar e escolher desde o simples vereador de sua cidade até o presidente da República, o jovem nessa faixa de idade tem suficiente discernimento para orientar a sua conduta entre o bem e o mal. Mas a contradição é aparente porque o legislador constituinte seguiu a orientação do Código Penal que adota um critério de Política Criminal em face da permanente e dramática crise do sistema carcerário brasileiro que marcaria brutalmente o jovem no tempo de formação de sua personalidade. É imperioso observar que a Lei nº 8.069, de 13.07.1990, embora declare como adolescente a pessoa entre 12 e 18 anos de idade, admite, excepcionalmente a aplicação das normas do ECA às pessoas entre 18 e 21 anos de idade (art. 2º e parág. Ún.).
Criticando a corrente a favor da redução da capacidade penal com base na questão do voto, a Procuradora Federal JULIANA DE ASSIS observa que o sufrágio facultado ao adolescente maior de dezesseis e menor de dezoito anos é “apenas e tão somente uma prática incentivadora e aceleradora da cidadania ativa, jamais demonstração de maturidade suficiente para a imputabilidade penal”. “Redução da maioridade penal como fator incapaz de gerar a diminuição da violência”, em Revista Magister, 47/2012, p. 14).
4.Direito comparado
O Código Penal espanhol (Ley Orgánica 10/1995) estabelece que os menores de dezoito anos “no serán responsables criminalmente com arreglo a este Código. Cuando un menor de dicha edad cometa un hecho delictivo podrá ser responsable con arreglo a lo dispuesto en la ley que regule la responsabilidad penal del menor” (art. 19). Nos termos do art. 23 do Código Penal Tipo para a América Latina, “no es punible el que no tuviere en el momento del hecho la edad señalada en la ley respectiva”. O texto remete ao sistema legal de cada país latino-americano que esteve representado, por seus respectivos penalistas, na discussão e redação do mencionado diploma.
Na observação dos professores ARTUR DE BRITO GUEIROS SOUZA e CARLOS ADRIANO JAPIASSÚ, a legislação brasileira adotou a orientação comum entre os diversos países do mundo, lembrando que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional estabelece que a capacidade criminal inicia aos 18 anos de idade. “No estatuto, conforme o disposto no art. 26 do Decreto nº 4.388/2002, consta a seguinte regra: O Tribunal não terá jurisdição sobre menores de 18 anos de idade no momento da prática do crime’” [2]. O Anteprojeto de Código Penal Argentino (2014) elaborado por comissão presidida por Eugenio Raúl Zaffaroni, estabelece em 18 (dezoito) anos o início da capacidade penal (art. 4, nº 2)
5.O momento da aquisição da imputabilidade
O adolescente é criminalmente imputável, ou seja, adquire a capacidade de culpa a partir do momento em que completa 18 anos. Se o fato é praticado no mesmo dia em que ele atinge esse limite, responderá perante o Código Penal, não se indagando a hora em que ocorre esse evento [3]. Há precedentes específicos: “Considera-se penalmente responsável o agente que pratica a infração no preciso dia em que completa seu 18º aniversário” (extinto TACRIM-SP, Rel. Juiz ADAUTO SUANNES, RT 554/356). “Considera-se penalmente responsável, o agente que completou dezoito anos no dia da pratica do crime” (STJ, 5ª T. REsp. 90.105/GO, rel. Min. CID FLAQUER SCARTEZZINI, DJ 06.10.1997). Por outro lado, a jurisprudência doméstica é invariável no sentido de reconhecer a inimputabilidade do menor de 18 anos, fundada apenas no critério biológico, sendo, porém, indispensável a prova idônea [4]. Precedentes: “Menor de dezoito anos. Inimputabilidade (art. 23 do Código Penal de 1940 e 27 do reformado). Presunção ‘juris et de jure’. Prova da menoridade indispensável. Anulação do processo a partir da sentença condenatória. ‘Habeas Corpus’ concedido.” (STF, 2ª T. HC 64249, rel.Min. CÉLIO BORJA, DJ 13.02.1987) (Itálicos meus) • É inadmissível a sujeição de menor de dezoito anos a processo penal, por força do art. 27 do Código Penal. A ilegalidade é mais evidente diante da condenação transitada em julgado e do já cumprimento de um sexto da pena em regime semiaberto (STJ, 6ª T. HC 119.384/SP, rel. Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJ 29.11.2010).
Considerando a regra do tempo do crime (CP, art. 4º) se um dia antes de completar 18 anos, ele praticar violência contra a vítima que venha a morrer três ou quatro dias após, o caso será apreciado pelo ECA e não julgado pelo Código Penal. A mesma jurisdição de menores é mantida mesmo com a superveniência da imputabilidade penal que não tem, por si só, o condão de interferir na aplicabilidade das regras do ECA” (STJ, 6ª T. HC 186.751/RJ, rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJ 25.04.2012). Quanto aos crimes permanentes [5] e continuados [6] adota-se a orientação de se aplicar o Código Penal se o agente completar 18 anos, p.ex.: a) durante a manutenção da vítima em cativeiro (CP, art. 148); b) no intervalo de tempo entre um crime e outro (CP, art. 71). Serve o paradigma: “Atribuída a prática do delito de sonegação fiscal, crime permanente, à paciente após o advento da sua maioridade penal, não há falar em inimputabilidade. ” (STJ 5ªª t. HC 117.119/ PÉ, rel. Min. MARCO AURÉLIO BELIZZE, DJ 01.02.2012).
6.Maioridade penal e maioridade civil
A maioridade penal é independente da civil. Em face do exclusivo critério biológico adotado pelo Código Penal para determinar a imputabilidade somente a partir dos 18 anos, não importa que, para os atos da vida civil, os maiores de 16 e menores de 18 anos tenham cessada a incapacidade na ocorrência das hipóteses previstas pelo Código Civil. Assim ocorre pela concessão dos pais, ou de um deles na falta de outro; casamento; exercício de emprego público efetivo; colação de grau em curso de ensino superior e pelo estabelecimento civil ou comercial ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com 16 anos completos tenha economia própria (parág. Ún. Do art. 5º). O menor entre 18 e 21 anos na data do fato tem em seu benefício uma atenuante genérica e a redução, pela metade, do prazo prescricional (CP, arts. 65, I e 115). Interessante observar que o menor de 21 anos ao tempo do crime, embora tenha adquirido a capacidade civil pelo casamento, não perde o direito à atenuante respectiva em função da idade [7], cf. precedente do STF, relatado pelo Min. CLOVIS RAMALHETE (STJ, 2º T., HC 59031, DJ 09.10.1981). Esse julgado vale para a hipótese do agente que, tendo casado com a idade de 16 anos completos (CCiv. art. 5º, parág. Ún. I) e praticar um crime aos 17, ainda será objeto do procedimento especial do ECA. Portanto, nem o matrimônio e nem a capacidade política antes de 18 anos, pressupondo, em princípio, desenvolvimento psicológico e social capaz de discernir entre o lícito e o ilícito, servem para romper a presunção iure et de iure da inimputabilidade criminal. (Continua)
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[1] Dec.-lei nº 1.004, de 21.10.1969, que deveria entrar em vigor no dia 1º de agosto de 1970 (Lei nº 5.573, de 1º.12.1969), reformado pela Lei nº 6.016, de 31.12.1973 e revogado pela Lei nº 6.578, de 11.10.1978
[2] Curso de Direito Penal- parte geral, Rio de Janeiro, Elsevier, 2012, p. 244
[3] DAMÁSIO DE JESUS, E. Direito Penal: parte geral. 35.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 550
[4] Súmula nº 74 do STJ: Para efeitos penais, o reconhecimento da menoridade do réu requer prova por documento hábil”
[5] Crime permanente é aquele cuja consumação se protrai no tempo, remanescendo a ofensa ao bem jurídico protegido. Ex. sequestro e cárcere privado (CP, art. 148)
[6] O crime continuado ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes serão havidos como continuação do primeiro (CP, art. 71).
[7] PG/1940, art. 48, I; PG/1984, art.65, I. O aresto se refere, apenas, à atenuante embora também haja o benefício da redução do prazo de prescrição (PG/1940 e PG/1984, art. 115.
*René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova Parte Geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Ministério da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário da Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991). Escreve quizenalmente para o Justiça & Direito.
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