1.Umas das hipóteses de julgamento do recurso especial ocorre quando nas causas decididas, em única ou única instância, os Tribunais Regionais Federais ou tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, derem à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal (CF, art. 105, III, c). Cabe, portanto, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a missão de uniformizar a aplicação dos preceitos em atenção à exigência da segurança jurídica. Está, portanto, consagrada, na lei fundamental, a existência do dissídio de jurisprudência que consiste na falta da uniformidade sobre a exegese aplicada a uma norma no mesmo ou em diversos graus de jurisdição.
2. A respeito da contradição de julgados em causas da mesma natureza - e que ofendem o primado da igualdade de todos perante a lei - é oportuno lembrar o refinamento crítico de CALAMANDREI (1889-1956), quando o imortal jurista jornalista, político e professor universitário, alude ao exórdio de um defensor que, ao sustentar certa tese jurídica diante de um tribunal, que já duas vezes havia decidido a mesma questão contradizendo-se, começou seu discurso assim: - “A questão que trato só admite duas soluções. Esta Excelentíssima Corte já a decidiu duas vezes, a primeira num sentido, a segunda no sentido contrário...” Pausa. Depois, com uma reverência: - “... e sempre muito bem!” [1].
3. Dois eventos ocorridos nos últimos dias abrem oportunidade para refletir sobre o tema do presente artigo. O primeiro deles consiste no julgamento final do HC nº 124.306 (RJ) pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), impetrado em favor de cinco presos em flagrante em 14.03.2013, sob a acusação de manterem clínica de aborto, sendo-lhes imputados os crimes previstos nos arts…126 [2] e 288 [3] do Código Penal. O fundamento da impetração era a falta de requisitos para a decretação da prisão preventiva a que foi convertida a medida cautelar original. O relator, Ministro MARCO AURÉLIO concedeu a ordem para revogar a prisão. Primeiramente, em favor de dois acusados (08.12.2014) e depois, com extensão aos demais corréus (27.06.2015).O Ministro ROBERTO BARROSO pediu vista e meses depois apresentou seu voto (29.11.2016) acompanhando o relator mas ampliando o benefício do writ para declarar que “é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal - que tipificam o crime de aborto - para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola direitos fundamentais da mulher, bem como princípio da proporcionalidade”.[4] Após exaustivos argumentos de fato e de Direito, manejados com notável sensibilidade humana e exímia redação técnica, o Ministro BARROSO conclui que “praticamente nenhum país democrático e desenvolvidos do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime , aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália”. [5]
É importante salientar que o voto-vista encerra com a declaração restritiva de que o deferimento da ordem, ex offício, tem a objetivo de “afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus” [6]. Acompanharam-no os ministros ROSA WEBER e EDSON FACHIN enquanto o relator e o Ministro LUIZ FUX, limitaram-se à revogação da prisão preventiva.
Já no dia seguinte ao julgamento, o presidente da Câmara dos Deputados, RODRIGO MAIA declarou o início das hostilidades entre os poderes Judiciário e Legislativo, ao anunciar a criação de uma CPI para analisar a natureza e alcance da revolucionária decisão averbada como mais um episódio do chamado ativismo judiciário. A iniciativa recebeu o fogo cerrado nas redes sociais sob o mantra de que “a direita conservadora tem na sua estratégia a retirada de direitos específicos da negritude e das mulheres”[7], lembrando que no ano passado mulheres do país inteiro foram às ruas contra o Projeto de Lei de autoria do Deputado EDUARDO CUNHA, que acrescenta o art. 127-A ao Código Penal para tipificar como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática do aborto.
4. O texto ora em desenvolvimento não comenta os fundamentos do lúcido e exaustivo voto-vista e nem a perspectiva de política judiciária ao avançar num assunto extremamente delicado e cuja ampla discussão é da competência parlamentar que possa representar a opinião da sociedade civil, permanentemente empenhada em decifrar o enigma da esfinge que é o começo da personalidade civil com a colocação a salvo, desde a concepção, dos direitos do nascituro (Cód. Civil. art. 2º). Evidentemente a partir da vida (CF. art. 5º caput). O meu objetivo é analisar, dentro dos limites de espaço da coluna, a pertinência temática entre o a decisão da Corte Suprema de nosso país e a relevante pesquisa efetivada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, no curso de Mestrado em Direito das Relações Sociais sob a orientação do Professor Titular Doutor LUIZ GUILHERME MARINONI, entre os anos de 2009 a 2011 para obtenção do título de Mestre de WILLIAM PUGLIESE. A investigação foi convertida no livro Precedentes e a civil law brasileira: interpretação e aplicação do novo Código de Processo Civil, lançado justamente no dia 29 de novembro, tendo como foco as normas do recente diploma. A valiosa publicação integra a coleção O novo processo civil sob a coordenação de LUIZ GUILHERME MARINONI, SÉRGIO CRUZ ARENHART e DANIEL MITIDIERO.
5. Como se verifica pelas indicações anteriores, o voto do Ministro ROBERTO BARROSO, embora tenha constituído a maioria dos membros de sua Turma não tem o efeito erga omnes [8]. Em outras palavras, não vale como precedente vinculante para outros casos, embora exatamente iguais em sua natureza e tipicidade penal. Coloca-se, assim, em manifesta desobediência ao princípio da isonomia (CF, art. 5º) ou seja, da igualdade de todos perante a lei. E, além do mais, não traduz uma decisão plenária, única possibilidade regimental para descriminalizar fato punível a exemplo da ADPF 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, em 2004. A CNTS defendeu a descriminalização da antecipação do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo, sob a alegação de ofensa a dignidade materna que sofre a tragédia de manter em seu ventre um feto sem condições de sobrevivência.
6. Encontro nas primeiras palavras do Professor WILLIAM PUGLIESE o momento óptimo para tratar do assunto deste artigo. Considero estar aí o cerne da fecunda discussão proposta pela Teoria dos Precedentes nas tradições jurídicas da common law e da civil law.É oportuno reproduzi-las: “A insegurança jurídica e a absoluta imprevisibilidade das decisões judiciais, até mesmo no mais importante tribunal brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, tem instigado alguns juristas a refletir a respeito da necessidade de um sistema legal coeso, que possibilite ao jurisdicionado, ao menos, programar suas condutas de acordo com o Direito. Esta mesma mentalidade guiou o legislador na redação do novo Código de Processo Civil. Não é exagero dizer que a lei, por si só, tem sido incapaz de orientar as condutas da população, já que para alguns magistrados ela pode ser considerada inconstitucional, para outros, válida e para um terceiro grupo nem mesmo ser aplicável a determinado caso concreto. Aliás, a noção de caso concreto parece ter iludido juristas e magistrados à ideia de que qualquer caso pode ser decidido de qualquer forma [9]. Esta noção, bastante equivocada, viola o Estado de Direito que se diz democrático, pois despreza o valor fundamental da igualdade. Afim de proporcionar maior segurança ao jurisdicionado é preciso reconhecer um fato bastante simples: o direito deve ser o mesmo para todos, salvo em casos especiais que, na prática, se revelam como casos diferentes. Nos cursos de Direito ligados ao sistema da common law esta noção é transmitida já nas primeiras aulas. Agora, no Brasil, essa realidade começa a se aproximar, tendo em vista as alterações empreendidas pelo novo Código de Processo Civil no que diz respeito à previsibilidade e à segurança jurídica”[10].
7. Realmente, o novo diploma processual civil (CPC/2015) contém disposições específicas para impedir - ou quando menos reduzir - os inconvenientes de um processo que era concebido na lembrança de CALAMANDREI como “um duelo entre os litigantes, em que o magistrado, como um árbitro no campo de esportes, limitava-se a assinalar os pontos e a zelar para que fossem observadas as regras do jogo, parecia natural que a advocacia se reduzisse a uma competição de acrobacias e que o valor dos defensores fosse julgado com critérios, por assim dizer, esportivos. Um dito espirituoso, que não fizesse a verdade dar mais um passo, mas que acertasse em cheio algum defeito do defensor adversário, entusiasmava a plateia, como hoje, no estádio, o chute de mestre de um jogador de futebol. E, quando o advogado se levantava para o arrazoado, virava-se para trás, para o público, com o mesmo gesto do pugilista que, subindo no ringue, ostenta o volume dos bíceps” [11].
8. Vem, a propósito, a consagração legislativa do princípio da isonomia que precisa ser tido como a viga mestra de direitos e garantias dos litigantes num processo que além de ser legal (due process of law) [12] deve ser, também, justo. Daí a indispensável complementaridade: due and fair process of law. O art. 7º do CPC/2015 assegura “às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. O dispositivo caracteriza, ao mesmo tempo, um comando no interesse dos litigantes (contraposição de oportunidades) e um dever imposto ao magistrado de fiscalizar a atuação funcional das partes para que o contraditório não se transforme em mera proclamação otimista. A eficiência exigida do juiz também é realçada no art. 8º do CPC/2015, ao lado de outras normas indispensáveis à boa aplicação jurisdicional: (a) fins sociais da lei e às exigências do bem comum; (b) resguardo e promoção da dignidade da pessoa humana [13].
9. Tratando dos princípios fundamentais constitucionais e infraconstitucionais, WAMBIER e TALAMINI observam que a lei ordinária “reitera, especifica e aprofunda a disciplina dos princípios constitucionais do processo. Especialmente o CPC reflete a consagração de diversos princípios, como fruto do desenvolvimento que essa matéria sofreu nas últimas décadas, seja em decorrência do amadurecimento da experiência constitucional brasileira, seja como consequência do uso, cada vez mais frequente, do método de redação dos textos normativos que privilegia cláusulas abertas e conceitos indeterminados” [14]. E, com base em dispositivos da Carta Política de 1988, relacionam vários princípios: (a) inafastabilidade e universalidade da tutela jurisdicional; (b) efetividade do processo; (c) devido processo legal; (d) ampla defesa; (e) contraditório; (f) imparcialidade; (g) juiz natural; (h) motivação (fundamentação) das decisões; (i) publicidade; (j) razoável duração do processo; (k) proibição de provas ilícitas; (l) assistência jurídica integral e gratuita; (m) duplo grau de jurisdição; (n) princípio dispositivo (ou da inércia inicial da jurisdição), e tantos outros.
10. Sem desconsiderar essa vasta gama de instrumentos de garantia do processo justo, a monografia do talentoso e ora doutorando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFPR, concentra-se na tríade de capítulos: (a) tradições jurídicas da common law e da civil law; (b) razões para seguir precedentes; (c) interpretação legislativa a partir de precedentes.
Precedentes e a civil law brasileira: interpretação e aplicação do novo Código de Processo Civil, assinala em inúmeras passagens o vigor intelectual da denúncia de PUGLIESE que vai muito além da régua e compasso dos textos acadêmicos para ganhar a conotação social relevante: “O jurisdicionado precisa ter segurança de que o Estado se comportará de acordo com o direito e de que os órgãos que o aplicam o farão de maneira uniforme. É essa segurança jurídica que vai permitir ao cidadão que defina seu comportamento e as suas condutas, com a certeza do que é correto e do que á legal” [15]. Em outras palavras, pode-se afirmar que certas decisões judiciais devem ter a mesma eficácia dos comandos normativos. Daí porque “é comum justificar o respeito aos precedentes com o fundamento de que o magistrado, ao aplicar uma decisão anterior, confirma a certeza do direito e demonstra que é imparcial em relação à causa e às partes” [16].
11. Preocupado com os valores da segurança e da confiança, o Mestre PUGLIESE menciona as razões para seguir os precedentes [17], longa e motivadamente expostas. As razões de utilidade e eficácia do processo com a adoção da Teoria dos Precedentes [18] em nosso sistema judiciário serão expostas no próximo artigo. Desde logo, porém, é preciso reconhecer que a valiosa - e muito didática - contribuição científica em referência está em plena harmonia com algumas vertentes constitucionais de garantia real do justo processo já imperantes no CPC/2015. Por exemplo: (a) dispensa de reexame necessário quando a sentença estiver fundada em hipóteses taxativas (art. 496, §§ 3º e 4º); (b) negativa ou concessão de provimento a recurso com base em entendimento dos tribunais (art. 932); (c) incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976); (d) negativa de seguimento aos recursos extraordinário ou especial que contrariarem entendimento dos tribunais superiores (art. 1.030); (e) não conhecimento do recurso extraordinário pelo STF, em decisão irrecorrível, quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral (art. 1035); (f) recursos repetitivos (art. 1036). (Continua)
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[1] Eles, os juízes, vistos por um advogado, trad. De Eduardo Brandão do original italiano Elogio dei giudice scritto da um avvocato: ed. Martins Fontes, 1995, p. 38. (Itálicos do original).
[2] CP, art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena- reclusão, de um a quatro anos.
[3] CP, art. 288. Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. (Redação determinada pela Lei nº 12.850/2013)
[4] Item 3 da ementa do voto-vista. (Itálicos meus).
[5] Item 7 da ementa do voto vista. (Itálicos meus).
[6] Item 8 da ementa do voto-vista. (Itálicos meus).
[7] Fonte:www.operamundi.uol.com.br/blog/samuel/bide/maia-stf-aborto, acesso em 03.12.2016.
[8] A súmula do julgamento registra que a Turma julgou extinto o HC por se tratar de substitutivo do recurso ordinário constitucional, impetrado contra acórdão da 6ª Turma do STJ, mas, em caráter excepcional, conheceu-o de ofício nos termos do voto do Min. Barroso para o efeito de revogar a prisão preventiva.
[9] Entendo que esta passagem lembra a anarquia judicante proposta por alguns juízes, especialmente, gaúchos da nouvele vague dos anos 80, com a surrealista escola do chamado direito alternativo que, desconsiderando o preceito legal “dava” ao caso concreto uma interpretação pessoal que melhor se afeiçoasse às suas ideias sobre o homem, o mundo e a vida. A má experiência daquela justiça de opinião não resistiu a mais elementar forma de rejeição. Tratava-se de um renovado e terrível modelo de ditadura: que não surgiria da lei; mas da cabeça do juiz.
[10] PUGLIESE, William. Ob. cit., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 17-18, Introdução. O trecho reproduzido contém notas de rodapé justificando as afirmações do autor.
[11] CALAMANDERI, Piero. Ob. cit. p. 31. (Itálicos do original).
[12] O devido processo legal é um gênero que supõe espécies como a ampla defesa, o contraditório, o equilíbrio de armas, o juiz natural e imparcial, além de outras que asseguram a proteção das partes tanto nas causas judiciais e administrativas. Com mais detalhes, vide a relação no item seguinte.
[13] A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos primordiais da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III).
[14] WAMBIER, Luiz Rodrigues/ TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: Teoria Geral do Processo 1, 16ª ed., São Paulo: Thomson Reuters/Revista dos Tribunais, 2016, p. 74. (Itálicos meus).
[15] Ob. cit., p. 18. (Itálicos meus).
[16] PUGLIESE, William. Ob. cit. p. 52. (Itálicos meus)
[17] Não colhe o argumento ad terrorem do engessamento de função judicante porque o sistema dispõe de cláusula e mecanismos adequados para a revisão ou cancelamento do precedente, a exemplo do art. 103-A, § 2º da Constituição Federal.
[18] É absolutamente obrigatória a leitura da magnífica obra de LUIZ GUILHERME MARINONI, PRECEDENTES obrigatórios, São Paulo: Revista dos Tribunais, para conhecer o caminho das pedras desse profícuo terreno de justiça material.