Nas décadas de 1970 e 1980 do século passado a discussão doutrinária relacionada à legitimidade recursal do Ministério Público no processo penal estava orientada a demonstrar a possibilidade de ele interpor recurso em favor do acusado/condenado. Afrânio Silva Jardim chegou a escrever importante artigo discutindo essa questão, publicado em 1985 na Revista Justitia [1]. Hoje, o tema é pacificado e ninguém discute mais a legitimidade recursal do Ministério Público em favor do acusado condenado em primeiro grau. O mesmo se diga da possibilidade do Ministério Público interpor Habeas Corpus em favor de quem é cerceado – ou ameaçado – ilegalmente em seu direito de ir e vir.
A novidade, agora, no Brasil, inverte a discussão e pretende construir a ideia de que o Ministério Público não teria legitimidade para recorrer contra o réu absolvido em primeiro grau. Esta tem sido a tese que, desde 2014, começa a aparecer com relativa frequência nas contrarrazões da Defensoria Pública em face de recursos interpostos pelo Ministério Público nos processos criminais e que também passou a ser defendida por alguns importantes doutrinadores.
Pelo que se lê das petições da Defensoria Pública do Paraná, a tese parece ter se originado na Defensoria Pública Paulista e de lá aparenta ter sido difundida entre as demais unidades das Defensorias estaduais, pois é evidente a argumentação padronizada das contrarrazões.
Os argumentos são construídos com base nas seguintes premissas: (1) a garantia do duplo grau de jurisdição seria “garantia do cidadão contra o Estado, e não o reverso”; (2) não haveria na Constituição da República garantia de “ampla acusação”, do que se deduziria que “não é permissivo à acusação levar a persecução penal para além da primeira instância, sob pena de malbaratar os imperativos da presunção de inocência e da celeridade processual”; (3) reconhecer que há possibilidade jurídica do recurso da acusação ante decisão absolutória proferida em 1º grau seria vislumbrar “a Constituição como mera carta de intenções”; e (4) a reforma da decisão absolutória em segundo grau para o fim de condenar o apelante lhe prejudicaria sobremaneira, haja vista que ele não poderia recorrer da decisão do colegiado, no que toca à matéria fática, pois os recursos extraordinários não permitem o reexame da prova.
A inspiração para a tese de que o Ministério Público não teria legitimidade recursal contra decisões absolutórias de primeiro grau também é dada por alguns importantes e renomados doutrinadores, como fundada tanto no Pacto de San José da Costa Rica, quanto no modelo processual penal norte-americano, particularmente na interpretação da cláusula inserida na 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, conhecida como “double jeopardy” e externada nos seguintes termos: “ninguém será sujeitado, pelo mesmo crime, a ter sua vida ou saúde colocada em risco uma segunda vez” [2] .
Como os argumentos são de diversas ordens – seja no que se refere às fontes fundantes do discurso, seja no que diz respeito à interpretação jurisprudencial respectiva – para fins de contribuição ao debate e para verificar se a proposta é compatível com a realidade brasileira, bem como se, em algum ponto, é necessário realizar ajustes ao sistema recursal e de coisa julgada no processo penal do Brasil, será promovida análise individualizada dos argumentos, aqui dividida em pequena série de quatro artigos [3], ora inaugurada neste importante espaço da Gazeta do Povo.
Neste primeiro artigo a abordagem será focada na questão de como opera o modelo norte-americano de proibição de double jeopardy (doutrina de proibição de risco duplo) e se importá-lo representará algo de positivo ou negativo para a pretensão de melhorar o sistema de garantias do processo penal brasileiro.
Para tanto, vale o alerta de que se deve ter muito cuidado ao analisar qualquer tema jurídico sob o prisma do direito comparado, a fim de não descontextualizar a abordagem à luz de realidades legislativa, cultural e jurisprudencial absolutamente diversas. Como alerta o jurista italiano Ennio Amodio: “para o comparatista que não se dê conta de caminhar para além do dado normativo, para alcançar o direito vivo, o risco de projetar falsas representações da realidade é muito grande” . No caso específico da tese de que o Ministério Público não teria legitimidade recursal de decisões absolutórias em primeiro grau, fica facilmente constatável que algumas importantes ponderações que deixaram de ser avaliadas e sopesadas quando seus defensores buscaram inspiração no processo penal dos Estados Unidos, acabaram influenciando a conclusão, de toda questionável, no sentido que o modelo norte-americano deva ser seguido.
Já de início, bastaria compreender que a Constituição da República brasileira não possui cláusula correlata àquela prevista na Constituição norte-americana, limitando-se a dizer, no inciso XXXVI do art. 5º, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. E, como se sabe, na consagrada lição de Enrico Tullio Liebman [5], “coisa julgada” é a qualidade de imutabilidade dos efeitos da sentença que, em caso de absolvição em processo criminal, somente opera, materialmente, após o esgotamento de todas as vias recursais, nos termos das possibilidades previstas na Constituição e na legislação ordinária. De resto, contra o réu, a lei brasileira apenas veda a ação rescisória da sentença transitada em julgado, denominada “Revisão Criminal” (arts. 621 e ss. do CPP). Mas, voltando os olhos para a realidade norte-americana, a complexidade é ainda maior quando se avalia como eles interpretam sua própria Constituição. Vejamos, então, como o tema se desenvolveu naquele país e quais as demais particularidades que não podem ser desconsideradas na comparação com o direito brasileiro.
Ainda que se possa retomar a ideia de coisa julgada como originalmente presente em regramentos romanos antigos e no direito canônico [6], ou, ainda, na forma trabalhada na disputa ocorrida no século XII, entre o Rei Henrique II e Thomas Becket, é com o renomado jurista inglês do século XVIII, Sir William Blackstone, em seus famosos Commentaries on the Laws of England, que o princípio de não submissão a duplo risco de julgamento se estruturou na Common Law.
No entanto, até mesmo na “transposição” da doutrina inglesa dos setecentos para o direito norte-americano contemporâneo há que se ter cuidado nas comparações. Com efeito, o doutrinador norte-americano George C. Thomas III tece importante crítica às apressadas referências que alguns doutrinadores daquele país fazem quando recorrem à base doutrinária de Blackstone para tratar da proibição de double jeopardy. O autor destaca que a construção teórica de Blackstone encontra problemas de adaptação à realidade norte-americana contemporânea, pois, quando foi pensada no século XVIII, havia poucos comportamentos definidos como delitos – algo em torno de seis ou sete tipos penais –, ao passo que hoje, nos Estados Unidos, as condutas selecionadas como tipos penais ultrapassam a casa dos 7.000 (sete mil) [8]. A complexidade é aumentada porque na Inglaterra do século XVIII, Blackstone não tinha que lidar com múltiplas soberanias operando simultaneamente, como ocorre nos Estados Unidos, com a “disputa jurisdicional” entre Estados-membros e a União.
Assim, nos Estados Unidos há uma enorme dificuldade de interpretação do alcance da cláusula inserida na 5ª Emenda à Constituição daquele país, conhecida como “double jeopardy”. Num primeiro momento, não é possível olvidar que os norte-americanos tomam essa regra como um modelo de julgamento perante um órgão colegiado, leigo e soberano como é o Tribunal do Júri . Para o Júri, interpretam-na como um misto de garantia do juiz natural e da coisa julgada. Os norte-americanos compreendem, assim, que a proibição de “double jeopardy” decorre do direito ao “first jury right” (direito ao primeiro júri), isto é, uma garantia de que o acusado será julgado apenas pelo colegiado popular previamente constituído , evitando-se que se possa dissolver o Júri e convocar outro ou que se possa tentar uma nova condenação com um novo Conselho de Sentença. Se o Júri é soberano para decidir, decorre daí a proibição de recurso do Ministério Público em caso de absolvição do acusado: evitar um novo Júri, uma nova composição, novas pessoas, novos juízos de valor, novo risco de ser condenado.
Mas, como destacado, a complexidade da realidade norte-americana promoveu inúmeras disputas de interpretação a respeito do alcance dessa regra, muitas delas ainda não solucionadas e a postura da Suprema Corte daquele país segue sendo objeto de severas críticas de parte da doutrina estadunidense.
Aliás, se essa “garantia” for analisada em termos práticos e efetivos, é possível dizer que a interpretação consolidada na Suprema Corte norte-americana, a respeito da cláusula de double jeopardy, neutraliza a regra de proibição de duplo julgamento, pois é interpretada à luz da “teoria da dupla soberania” (“dual sovereignty doctrine”), segundo a qual é possível submeter o acusado a um julgamento pelas leis estaduais e outro julgamento pelas leis federais. De fato, a Suprema Corte norte-americana compreende que as leis de dois diferentes governos (estadual e federal) não podem, por definição, descrever o “mesmo delito” (“same offence”). Segundo Akhil Reed Amar a teoria começou a ser construída ainda no século XIX, no julgamento do caso Barron v. Baltimore, 32, US (7 Pet) 243 (1833). Seguiu sendo aplicada ao longo do século XX e foi mais bem elaborada no julgamento do caso United States v. Lanza, 260, US 377 (1922), repetida no caso Heath v. Alabama, 474 US 82, 93 (1985), e nos casos Grady v. Corbin, 495 US 508 (1990) e United States v. Dixon, 113 S. Ct. 2849 (1993) [10].
Portanto, essa interpretação dada pela Suprema Corte norte-americana permite uma “burla” à regra de proibição de recurso contra absolvição, pois admite a possibilidade de múltiplos julgamentos do mesmo caso em diferentes esferas, tanto no âmbito estadual, quanto federal. Ou seja: neste ponto é possível dizer que o modelo norte-americano é, em termos de garantias do cidadão acusado de crimes, menos protetor que o brasileiro (que permite apenas o recurso do Ministério Público da decisão absolutória).
Aliás, a leitura norte-americana de que há proibição de recurso do Ministério Público da decisão absolutória também acabou sendo fortemente questionada após o famoso julgamento do caso Rodney King em 1992, resultando em reforço à manutenção da teoria da dupla soberania.
Em 03 de março de 1991, Rodney King, um cidadão negro, acabou sendo brutalmente espancado em Los Angeles por policiais brancos por ocasião de uma abordagem policial. Rodney era taxista e foi abordado sob a acusação de dirigir em alta velocidade. Em 29 de abril de 1992, quatro policiais foram julgados e absolvidos por um Júri composto majoritariamente por pessoas brancas. O resultado gerou ampla revolta da população, pois a prova de culpa dos policiais era patente, já que a ação deles havia sido filmada e levada ao ar nas televisões do mundo inteiro. Nesta filmagem é visível que mesmo com Rodney já dominado e no chão, os policiais seguiram espancando-o com cassetetes, violentamente, diante de inúmeras outras testemunhas [11]. O resultado da evidente impunidade promovida pela absolvição dos policiais acusados perante o Júri gerou uma série de amplas revoltas populares naquele país, conhecidas como L.A. Riots (“Revoltas de Los Angeles”), e resultou na morte de 55 (cinquenta e cinco) pessoas; outras 2.300 (duas mil e trezentas) pessoas feridas; mais de 1.100 (mil e cem) prédios depredados; tendo sido acionados 13.000 (treze mil) policiais para conter os distúrbios; resultando em 10.000 (dez) mil pessoas presas, a maioria negros e latinos, como recorda João Gualberto Garcez Ramos [12].
O caso Rodney King não foi nem o primeiro [13], nem o último caso de revolta da população contra absolvições irrecorríveis em júris. Em 2013, temia-se pelo anúncio de que haveria revoltas populares em todo o país, caso George Zimmerman fosse absolvido pelo Júri em razão da morte do estudante Trayvon Martin, em Sanford, Florida, porém a absolvição gerou protestos que, em sua maioria, ocorreram de forma pacífica [15]. O mesmo não sucedeu em 09 de agosto de 2014, quando outro caso gerou revoltas populares significativas em Ferguson, Missouri, com a morte do jovem Michael Brown em razão de ter recebido seis tiros disparados pelo policial Darren Wilson. Em 24 de novembro do mesmo ano ocorreram vários distúrbios de rua, com o incêndio de doze prédios e a prisão de 29 pessoas, em razão do resultado de absolvição do policial pelo Júri. A revolta mais recente ocorreu em 24 de maio de 2015, em Cleveland, decorrência da absolvição do policial Michael Brelo, acusado de matar, com 137 (cento e trinta e sete) disparos de arma de fogo em direção ao veículo no qual se encontravam duas pessoas negras, Malissa Williams e Timothy Russell, em novembro de 2012 [16].
O certo é que o caso de Rodney King reforçou a interpretação que a Suprema Corte dos Estados Unidos já vinha dando a respeito do alcance prático limitado da cláusula de double jeopardy, consolidando a referida “doutrina da dupla soberania”. Com base nesta doutrina, os policiais do caso Rodney King acabaram submetidos a um segundo júri, em 17 de abril de 1993, no qual foram condenados dois policiais e absolvidos outros dois.
Assim, ainda que não tenha havido um “recurso” contra a absolvição, houve, na prática, algo mais abrangente e mais prejudicial ao réu, ou seja, um novo processo, desde o começo. Uma nova chance de acordo de plea bargaining, ou uma nova chance de condenação, desde o começo. O modelo norte-americano, portanto, não é exatamente um grande norte a ser seguido.
Não bastasse, só pelo fato de ser um modelo orientado para julgamentos pelo Tribunal do Júri, já se revela a diferença de essência entre a construção da regra no modelo anglo-saxão, do modelo brasileiro de julgamento por juiz singular e togado (de matriz europeia-continental). A chance de doze pessoas errarem juntas, ou serem todas corrompidas juntas, ou resolverem abusar do poder em conjunto é significativamente menor que a chance de uma única pessoa errar, ser corrompida ou querer abusar do poder sozinha. Então, já de largada, não é possível simplesmente copiar um modelo de limitação recursal cuja fórmula de julgamento em nada se assemelha à brasileira.
Mas há dados adicionais que devem igualmente servir de norte nessa apreciação de direito comparado. Como se sabe, nos Estados Unidos 95% (noventa e cinco por cento) dos casos criminais não são julgados, pois resolvem-se por acordo do suspeito com o Prosecutor (Promotor), com a assunção de culpa negociada com imputação de crime com pena mais branda, na fórmula de plea bargaining. E não é de hoje que esse modelo se impõe como a regra de solução dos casos penais nos Estados Unidos. Michel Finkelstein apresenta quadro estatístico de solução de casos via plea bargaining indicando que em 1908 era em torno de 50% dos casos; chegando a 72% em 1916 e a 90% em 1925 [16]. Essa situação se consolidou ainda mais depois que o sistema norte-americano passou a usar critérios norteadores para a fixação das penas. Com a Sentencing Reform Act, de 1984, instituiu-se a United States Sentencing Comission que, em 1987, elaborou, pela primeira vez, critérios norteadores de fixação das penas, chamados de Federal Sentencing Guidelines [17], os quais foram incorporados pelos Prosecutors norte-americanos como critérios também para o plea bargain. Na prática se afastou ainda mais o controle jurisdicional sobre fatos em tese delituosos e, para os padrões da doutrina de origem europeia continental, tem-se aqui uma violação ao princípio da necessidade (inafastabilidade) da jurisdição penal. A concentração de poder nas mãos do Chefe do Executivo (nos EUA os Prosecutors são cargos políticos, por vezes eleitos pelo povo, por vezes nomeados pelo Governador em confiança e sequer têm a independência em relação ao Poder Executivo) foi tão exageradamente ampla que mesmo havendo recomendações para evitar o plea bargaining, como se deu com o Thornburgh Memorandum , de 1989 [18] , a partir dos anos 2000, em 95% dos casos os Prosecutors norte-americanos afastam a discussão judicial por acordos com os suspeitos . E, como destaca Richard Vogler, nos países de common law, “o guilty plea é o método principal na gestão e disposição de um caso” [20]. Ou seja: o modelo de plea bargaining norte-americano, que se pode considerar, pela disponibilidade do processo, como inerente ao denominado sistema acusatório , acaba, paradoxalmente, ajustando-se muito mais ao rótulo de inquisitório, notadamente quando se leva em conta o critério de junção das funções de acusar e julgar numa única pessoa, a tal ponto de Pietro Costa considerá-lo como equivalente a um “new medievalism processual penal” .
Portanto, quando se fala em proibir o Promotor norte-americano de recorrer de sentenças absolutórias, deve-se contextualizar essa fala. Se apenas 05% (cinco por cento) dos casos penais vão a Júri, a percentagem de absolvições naquele país é muito próxima do zero, oscilando entre 01% (um por cento), quando atua um defensor público e 1,6% (um vírgula seis por cento) quando atua um defensor contratado pelo acusado [23]. Ainda mais se for levado em conta que julgamentos populares são orientados por sensos comuns e se revestem, não raras vezes, de modelos que premiam o ultrapassado discurso do “direito penal de autor”. Julga-se mais o histórico de vida do réu do que propriamente o fato a ele imputado. Acrescente-se aqui uma mídia fortemente engajada e o resultado será uma população inclinada para permanecer “revoltada” diante das notícias e clamando por condenação. Júri é povo, e do povo “revoltado”, não é fácil “escapar” ileso. Tudo sem desconsiderar as questionáveis decisões de absolvição que decorrem de preconceitos e racismos próprios de parcela da população que serve de jurado, como se deu nos casos acima relatados. E neste ponto vale repisar que quando a absolvição vem, sempre há a possibilidade de bisar o julgamento noutra esfera de Estado, como igualmente visto no caso Rodney King. Não é “de graça” que os Estados Unidos tem a maior população carcerária do mundo.
Um rápido olhar para a Inglaterra e se percebe que o berço da regra de proibição de double jeopardy também já não é o mesmo. Desde o documento denominado Criminal Justice White Paper, Justice For All, de 2002, a política criminal inglesa está orientada para “reequilibrar o sistema em favor das vítimas”. A mudança ocorre depois do relatório relacionado aos problemas decorrentes do crime de homicídio que vitimou Stephen Lawrence, intitulado The Stephen Lawrence Inquiry, elaborado pelo Juiz da Suprema Corte, Sir William Macpherson of Cluny , e apresentado perante o Parlamento inglês em fevereiro de 1999 [26]. Este documento apontava falhas na investigação do Caso Stephen Lawrence, que era um jovem negro morto em 22 de abril de 1993, por cinco ou seis jovens brancos, motivados por racismo . Os acusados foram absolvidos em abril de 1996. Anos depois, em 2002, dois deles foram condenados por outro crime, também motivado por questão racial. Em 2007, novas provas que poderiam demonstrar suas culpas no caso Stephen Lawrence apareceram em razão de novas tecnologias de investigação, que permitiram encontrar DNA da vítima nas roupas dos dois principais suspeitos. Novo julgamento foi realizado e eles foram condenados em 2012 .
O que permitiu esse novo julgamento na Justiça inglesa foi o Criminal Justice Act 2003, resultado dos já referidos documentos levados à discussão no Parlamento, e que veio, também ele, “para balancear o direito da defesa recorrer” [27] , permitindo renovar julgamentos de absolvição em diversos casos denominados “qualifying offences”: crimes contra a pessoa; crimes contra a liberdade sexual; tráfico de drogas; crimes de dano pelo fogo ou explosão; crimes de guerra e terrorismo; e crimes de conspiração [28]. O modelo inglês acaba sendo mais amplo que o simples recurso, admitindo novo julgamento quando novas provas surgirem, operando, assim, como uma espécie de Revisão Criminal pro societate.
Enfim, antes de pensar em importar modelos estrangeiros é preciso compreender o todo do processo do país “inspirador” para reformas do processo brasileiro. Copiar uma parte, sem levar em conta o todo pode servir mais para atrapalhar um modelo processual ideal para o Brasil, abrindo porteiras para outras áreas que possam provocar, ao final, indesejados modelos autoritários.
No próximo artigo prosseguiremos abordando esse tema, traçando a necessidade de melhor compreendê-lo à luz da dupla face dos direitos fundamentais: de proibição de excesso e de proibição de proteção insuficiente.
*Rodrigo Chemim Guimarães: Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.
[1] JARDIM, Afrânio Silva. O Ministério Público e o Interesse em Recorrer no Processo Penal. In: Revista Justitia. São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo, 47 (131), 1985, pp. 405-412.
[2] Tradução nossa. No original, em inglês: “nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb”.
[3] O primeiro tratando da interpretação norte-americana da cláusula double jeopardy; o segundo enfrentando a necessidade de compreender a questão à luz da dupla face de proteção dos direitos fundamentais; o terceiro analisando o tratamento dado pela Constituição da República Brasileira e pelo Pacto de San José da Costa Rica; e o quarto verificando a necessidade de reformulação pontual da legislação brasileira.
[4] AMODIO, Ennio. Processo Penale, Diritto Europeo e Common Law: dal rito inquisitorio al giusto processo. Milano: Giuffrè, 2003, p. 188. Tradução nossa. No original, em italiano: “Per il comparatista che non abbia l’accortezza di andare al di là del dato normativo per attingere al diritto vivente, il rischio di prospettare false rappresentazioni della realtà è veramente grande.
[5] LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada. 4ª ed. Tradução de Alfredo Buzaide e Benevindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 de Ada Pellegrini Grinover. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, pp. 54 e ss.
[6] RUDSTEIN, David Stewart. Double Jeopardy: A Reference Guide to the United States Constitution. London/Westport: Praeger Publishers, 2004, pp. 02 e ss.
[7] THOMAS III, George C.. Double Jeopardy: The History, the law. New York/London: New York University Press, 1998, pp. 07 e ss..
[8] AMAR, Akhil Reed. The Bill of Rights: Creation and Reconstruction. New Haven & London: Yale University Press, 1998, p. 96.
[9] UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Wade v. Hunter, 336, U.S., 684, 689 (1949). Disponível em https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/336/684, acesso em 04 de novembro de 2015. O caso envolvia crimes de estupro de duas mulheres alemãs, praticados por dois soldados norte-americanos durante a 2ª Guerra, na cidade de Krov, Alemanha, em 13 de março de 1945. Duas semanas após o fato, ainda na Alemanha, porém já noutro local - Pfalzfeld, foi instalada uma Corte Marcial que acabou não concluindo seu julgamento diante da dificuldade de ouvir as duas testemunhas presenciais do delito e a impossibilidade de deslocamento seja da Corte, seja das testemunhas. Assim, as necessidades táticas no curso da guerra, provocaram a instituição de uma segunda Corte, próxima do local dos fatos e das testemunhas. A tese levantada foi de que a segunda Corte violou a regra do double jeopardy, lida à luz do juiz natural.
[10] AMAR, Akhil Reed. Double Jeopardy Law After Rodney King. In: Columbia Law Review. Vol. 95, nº 01, january 1995, pp. 01-59.
[11] O vídeo, na íntegra, está disponível no canal You Tube, em https://www.youtube.com/watch?v=sb1WywIpUtY. Sobre o tema também vale assistir ao documentário produzido pela rede de televisão norte-americana CNN, disponível no canal You Tube na internet: https://www.youtube.com/watch?v=tWhYmb1sANM, acesso em 04 de novembro de 2015.
[12] RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal Norte-Americano. São Paulo: RT, 2006, pp. 134-135.
[13] Vide, por exemplo, o Miami Riots ocorrido em 1980 em razão do Júri ter absolvido policiais acusados de matar a pessoa de McDuffie, de pele negra.
[14] Vide, por exemplo, a reportagem do The Washington Times, disponível em http://www.washingtontimes.com/news/2013/jul/14/violence-riots-dont-materialize-after-zimmerman-ve/?page=all, acesso em 20 de novembro de 2015.
[15] Vide, por exemplo, a reportagem da rede jornalísticas norte-americana CNN, disponível em http://edition.cnn.com/2015/05/23/us/cleveland-police-verdict-reaction/. Vide, também, reportagem do The Guardian, disponível em http://www.theguardian.com/us-news/2015/may/23/cleveland-protesters-michael-brelo-police-officer, acesso em 20 de novembro de 2015.
[16] FINKELSTEIN, Michel. A Statistical Analysis of Guilty Plea Practices in the Federal Courts. In: Harvard Law Review, Harvard Law Review Association, volume 89, nº 2, 1975, pp. 293-315.
[17] Sobre o tema, vide, dentre outros: SECUNDA, Paul M. Cleaning up the Chicken Coop of Sentencing Uniformity: Guiding the Discretion of Federal Prosecutors Through the Use of the Model Rules of Professional Conduct. In: American Criminal Law Review, Georgetown, vol. 34, nº 3, pp. 1267-1292, 1997, disponível em file:///C:/Users/rrchemim/Downloads/SSRN-id855508.pdf, acesso em 13 de abril de 2014; ROBINSON JR., David. The Decline and Potential Collapse of Federal Guideline Sentencing. In: Washington University Law Review, St. Louis, vol.74, nº 4, pp. 881-912, 1996, disponível em http://digitalcommons.law.wustl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1627&context=lawreview, acesso em 13 de abril de 2014; LYNCH, Gerard. Panel Discussion: The expanding prosecutorial role from trial counsel to investigator and administrator. In: Fordham Urban Law Journal, New York, vol. 66, nº 3, pp. 679-704, 1998, disponível em http://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1744&context=ulj, acesso em 13 de abril de 2014; LYNCH, Gerard E. Our Adminitrative System of Criminal Justice. In: Fordham Law Review, New York, v. 66, nº 6, pp. 2117-2151, 1998, disponível em http://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3485&context=flr, acesso em 13 de abril de 2014; e GALIN, Ross. Above The Law: The Prosecutor’s Duty to Seek Justice and The Performance of Substantial Assistance Agreements. In: Fordham Law Review, New York, vol. 68, nº 4, p. 1245-1284, 2000, disponível em http://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3627&context=flr, acesso em 13 de abril de 2014.
[18] O Thornburgh Memorandum de 1989 foi uma iniciativa do então Attorney General Richard Thornburgh, de fazer com que os Prosecutors somente se valessem do plea bargaining como ultima ratio. Sobre o tema vide, dentre outros: VINEGRAD, Alan. Justice Department’s New Charging, Plea Bargaining and Sentencing Policy. In: New York Law Journal. Vol. 243, nº 110, junho de 2010, disponível em http://www.cov.com/files/Publication/9989edae-7ef1-42a5-a57a-fb3019d76b4b/Presentation/PublicationAttachment/4f97a03d-65a8-4e4a-8c91-a94bb3f8a3e0/Justice%20Department’s%20New%20Charging,%20Plea%20Bargaining%20and%20Sentencing%20Policy.pdf, acesso em 14 de abril de 2014.
[19] WATSON, Duncan. The Attorney General’s Guidelines on Plea Bargaining in Serious Fraud: Obtaining Guilty Pleas Fairly? In: The Journal of Criminal Law. Vol. 74, Edição 1, p. 77-90, fevereiro de 2010, p. 78. Vide, também, a crítica de BARKOW, Rachel E. Separation of Powers and the Criminal Law. In: Stanford Law Review, Stanford, v. 58, n. 4, p. 989-1054, fev. 2006, p. 1033, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=805984, acesso em 12 de abril de 2014. Também é relevante a análise estatística progressiva apresentada por STITH, Kate. The Arc of Pendulum: Judges, Prosecutors, and the Exercise of Discretion. In: Yale Law School Legal Scholarship Repository, New Haven, nº 117, p. 1420-1497, 2008, pp. 1453-1454, disponível em http://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2264&context=fss_papers, acesso em 12 de abril de 2014, verbis: As Guidelines e a concomitantemente imposição de sentenças mínimas, teve outros efeitos significantes. Um dos mais notados foi a redução na frequência dos julgamentos federais. Antes das Guidelines, mais de 12% dos acusados por crimes federais eram condenados mediante julgamento; até 1996, esta percentagem chegou a 8%; e desde 2000 tem sido inferior a 5%. De fato, durante o período ‘compulsório’ das Guidelines, declarações de culpa acabaram substituindo os julgamentos no sistema federal. Aqueles que estudaram esse fenômeno com razão dizem que isso decorre da ‘adoção de novas leis a respeito de sentenças, que acabaram aumentando a influência do plea bargaining, em proveito dos prosecutors’. Tradução nossa. No original, em inglês: The Guidelines and the concomitant enactment of mandatory minimum sentences had other significant effects. One that has been widely noted is the reduction in the frequency of federal criminal trials. Before the Guidelines, more than 12% of federal offenders were convicted by trial; by 1996, the percentage was just over 8%; and since 2000 it has been less than 5%. Indeed, throughout the period of ‘mandatory’ Guidelines, guilty pleas steadily displaces trials in the federal system. Those who have studied this phenomenon quite reasonably attribute it to the ‘adoption of new sentencing laws that have greatly enhanced the plea-bargaining leverage enjoyed by prosecutors’.
[20] VOGLER, Richard. Justiça Consensual e Processo Penal. In: Processo Penal e Estado de Direito. (Coordenadores: CHOUKR, Fauzi Hassan e AMBOS, Kai). Tradução de Fauzi Hassan Choukr. Campinas: Edicamp, 2002, p. 283.
[21] Nesse sentido, de forma expressa, dentre outros: LYNCH, Gerard. Ob. cit., p. 2121, verbis: Nesse sentido o plea bargaining decorre da noção adversarial, em que as partes se encontram como litigantes iguais e autônomos perante a Côrte, [...]. Assim como as partes durante o julgamento controlam a maneira como as provas são apresentadas, cada um informando somente fatos que julgam relevantes para o caso, seja antes do julgamento, seja fora da presença da Côrte, as partes são livres para se compromissarem ou resolver suas controvérsias, da melhor maneira que entenderem. Mas se o plea bargaining emana de uma ideologia adversarial, a sua prática extremamente difundida resultou no desenvolvimento de um sistema de justiça que em verdade aparenta, para a maioria dos acusados, muito mais com aquilo que os Advogados americanos chamariam de sistema inquisitório do que aquele modelo de justiça adversarial idealizada nos livros de doutrina. Tradução nossa. No original, em inglês: Plea bargaining, in this sense, grows directly out of the adversarial notion that parties stand as equal autonomous disputants before the court, […]. Just as at trial parties will control the way in which evidence is presented, each putting forth only such information as it thinks relevant to the case it wants to make, so in advance of the trial, or outside the presence of the court, the parties are free to compromise or settle their dispute in any way they see fit. But if plea bargaining grows out of an adversarial ideology, its widespread practice has resulted in the development of a system of justice that actually looks, to most defendants, far more like what American lawyers would call an inquisitorial system than like the idealized model of adversary justice described in the textbooks.
[22] COSTA, Pietro. Il Modello Accusatorio in Italia: fra ‘attuazione della costituzione’ e mutamenti di paradigma. In: Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: matteriali dall’incontro di studio, Ferrara, 12-13 novembre 2010. Per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 93, Milano: Giuffrè, 2011, pp. 151-160, p. 159. Em sentido similar, traçando paralelos entre o “sistema judicial de tortura” da Europa medieval e o plea bargaining, vide LANGBEIN, John H.. Torture and Plea Bargaining. In: The University of Chicago Law Review, vol. 46, nº 01, 1978, pp. 3-22, disponível em http://www.judicialstudies.unr.edu/JS_Summer09/JSP_Week_4/JS710Wk4.LangbeinTorandPleaBargtxt.pdf, acesso em 21 de abril de 2014.
[23] Estatística do ano de 2000. U.S. Department of Justice. Office of Justice Programs. Bureau of Justice Statistics. Special Report. Disponível em http://www.bjs.gov/content/pub/ascii/dccc.txt, acesso em 06 de novembro de 2015.
[24] Justice For All. Disponível em https://www.cps.gov.uk/publications/docs/jfawhitepaper.pdf, acesso em 20 de novembro de 2015. Tradução nossa. No original, em inglês: “rebalancing the criminal justice system in favour of the victim”.
[25] CLUNY, William Macpherson of. The Inquiry into the Matters Arising From The Death of Stephen Lawrence. London, 1999. Disponível em https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/277111/4262.pdf, acesso em 20 de novembro de 2015.
[26] Sobre o tema, vide a justificativa do Justice For All, p. No original, em inglês: The Stephen Lawrence Inquiry Report recognised that the rule is capable of causing grave injustice to victims and the community in certain cases where compelling fresh evidence has come to light after an acquittal. It called for a change in the law to be considered, and we have accepted that such a change is appropriate. The European Convention on Human Rights (Article 4(2) of Protocol 7) explicitly recognises the importance of being able to re-open cases where new evidence comes to light.
[27] Conforme http://www.bbc.com/news/uk-26465916. Vide também o Relatório a respeito da investigação do caso, apresentado em 1999.
[28] Conforme GIBSON, Bryan. WATKINS, Michael. Criminal Justice Act 2003: A Guide to the New Procedures and Sentencing. Winchester: Waterside Press, 2004, p. 22. Tradução nossa. No original, em inglês: “to balance the defendant’s existing right of appeal against conviction and sentence”.
[29] UNITED KINGDOM. Criminal Justice Act 2003. Disponível em http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2003/44/schedule/5, acesso em 20 de novembro de 2015.
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