Agora que o novo Código de Processo Civil já foi sancionado e aguarda o período de vacatio legis para entrar em vigor, está em tempo de o Congresso Nacional retomar a discussão em torno do novo Código de Processo Penal, cujo projeto (PLS nº 156) por lá tramita desde 2009. E a este propósito vem à lembrança dois episódios marcantes da história da humanidade ocidental que não podem ser esquecidos, pois contribuíram para gerar modos distintos de compreender a relação do processo penal com o exercício do poder.
Neste ano de 2015, se registra o aniversário de oitocentos anos do que restou documentado de dois atos políticos, geradores de duas culturas opostas e marcantes que, em certa medida, ainda refletem na forma do processo penal ser estruturado hoje em dia: o regramento decorrente das discussões travadas no Quarto Concílio da Igreja Católica realizado na Basílica de Latrão, em Roma, entre os dias 11 e 30 de novembro de 1215 e a Magna Charta Libertatum, assinada a contragosto pelo Rei João Sem Terra, na localidade de Runnymede on The Thames, nos arredores de Londres, na Inglaterra, no dia 15 de junho de 1215.
Enquanto no documento do Quarto Concílio de Latrão se utilizou, majoritariamente, das regras de processo penal para manter o predomínio e a ideologia de quem estava no poder; na Magna Carta se usaram as regras de processo para evitar o exercício abusivo de quem estava no poder. Para compreender essa disparidade e entender sua atual importância, é relevante analisar o que sucedeu no século XIII, tanto na Europa continental, quanto na Inglaterra.
Naquele tempo, a Igreja Católica ampliava e consolidava seu poder na Europa continental, buscando eliminar seus inimigos. De início, as atenções eram voltadas para as seitas dissidentes da Igreja, a exemplo dos Cátaros, dos Patarinos, dos Pobres de Lyon, dos Valdenses, dos Passaginos, dos Josefinos e dos Arnaldistas[1], mas ao longo dos anos foram também se voltando para as mulheres [2] , para os judeus [3] e, finalmente, para todos que pensassem diferente da doutrina oficial da Igreja [4].
Com esta preocupação em mente [5], no ano de 1215, o Papa Inocêncio III convocou o IV Concílio de Latrão da Igreja Católica e, inspirado na filosofia de Santo Agostinho [6], regrou a confissão dos pecados (delitos [7]) como obrigatória a todos os homens acima de quatorze anos e a todas as mulheres acima dos doze [8], além de regulamentar as quatro diferentes formas de como se daria o processo penal canônico: per accusationem, per denuntiationem, per inquisitionem e quando crimen est notorium. Não obstante o IV Concílio de Latrão trouxesse regras que também podem ser consideradas garantidoras de direitos do acusado – a exemplo, para determinado modelo de processo, da publicidade interna do processo, do direito de defesa e até mesmo a separação das funções de acusar e julgar [9], foi neste mesmo momento histórico que se reforçou o modelo processual preferencial [10] de inquisitio, construído, em grande medida, a partir da ideia de uma busca da verdade divina, muito pregada por Inocêncio III (aliás, quando este referia a inquisitio, referia à inquisitio veritas, isto é, à “busca da verdade” [11]) através do aproveitamento da confissão como tradição judaico-cristã e da elevação da confissão a cânone que deveria ser rigorosamente seguido pelos cristãos. Com o tempo, a confissão passou a ser considerada a “regina probationum” (a rainha das provas) no processo penal, orientado pelo modelo de provas tarifadas, com valores pré-estabelecidos em lei. O réu confesso, inclusive, não tinha direito a recurso, pois este era destinado apenas aos “inocentes” [12] . E mesmo aquele “apenas suspeito” de heresia, tinha o ônus de provar sua inocência, isto é, invertia-se a presunção de inocência para uma presunção de culpa [13]. Posteriormente, a confissão, para ser aceita e gerar uma penitência mais branda, deveria vir acompanhada da delação de pecados praticados por terceiros [14]. Este também pode ser considerado o embrião daquilo que hoje se denomina “colaboração premiada” no direito brasileiro. Não bastasse, ainda no século XIII, em 1252, além de constituir e oficializar um Tribunal, o Papa Inocêncio IV legitimou o uso da tortura como mecanismo de busca da confissão no processo penal canônico, com a edição da Bula Ad Extirpanda[15] . Assim, a partir do regramento do IV Concilio de Latrão foram lançadas as bases processuais penais das inquisições que permitiram à Igreja e ao monarca soberano se manterem hegemônicos no exercício do poder por mais de cinco séculos. Mas o dado marcante é que ao longo deste tempo se construiu uma cultura de repressão aos delitos que premiava desmandos, baseada no – hoje se sabe: falacioso – discurso de “busca da verdade real”, pois a busca da “verdade divina”, séculos mais tarde, foi reforçada pela arenga positivista de busca da “verdade científica”, que influencia boa parte da doutrina e da jurisprudência brasileira ainda hoje.
Sucede que na mesma época, há exatos oitocentos anos, por circunstâncias históricas próprias, os ingleses procuravam caminhar em sentido oposto e se mostravam mais preocupados com as garantias do cidadão frente ao exercício do poder do Rei.
Em 1215 o Rei João Sem Terra [16] se revelava um tirano no exercício do poder, externando traços típicos de um sujeito mimado pelos pais e invejoso do irmão mais velho, o Rei Ricardo Coração de Leão, que havia deixado o trono para seguir numa das Cruzadas em direção a Jerusalém. Aliás, justamente por conta de seu irmão ter conduzido o exército inglês para a retomada de Jerusalém, é que o Rei João ficou incumbido de prosseguir no incremento de cobrança de impostos, iniciado por Ricardo, que fosse capaz de bancar a aventura [17]. Com este propósito e com aquela personalidade, o Rei João chegou a romper relações com o Clero, expulsando todos os padres da Inglaterra e confiscando todas as suas propriedades, bem como as rendas eclesiásticas, a ponto de ser excomungado pelo Papa Inocêncio III, no ano de 1209. Esta situação o impulsionou a impor ainda mais elevados tributos aos súditos, extorquindo o dinheiro dos judeus ingleses, prendendo-os e os torturando, tudo visando recompor e bancar seus exércitos [18]. Toda essa insurgência provocou a reação dos Barões ingleses e do próprio Clero, que acenaram com a possibilidade de depô-lo do reinado. A insatisfação encontrou seu momento crucial no dia 24 de maio de 1215 quando os Barões ingleses, reunidos em exército, marcharam sobre Londres, conseguindo grande adesão popular. Dias depois, no dia 15 de junho do mesmo ano, o Rei João Sem Terra, após relutar por algumas vezes, cedeu aos interesses dos Barões e consentiu em assinar o documento que ficou denominado Articles of the Barons, o qual serviu de base para a redação da Magna Charta Libertatum [19].
Assim, a Magna Carta não foi um documento que nasceu exatamente do povo contra o soberano. Ao contrário, vinha redigido pelas mãos dos Barões ingleses, e era escrito propositadamente em latim, o quanto vinha a dificultar sua compreensão pelo povo, procurando preservar, primordialmente, os interesses dos próprios Barões. Como sintetiza Brenda Ralph Lewis: “Esta não era uma declaração de liberdades democráticas, como por vezes é referida, mas um tratado dos direitos e privilégios dos Barões” [20] . No mesmo sentido é a percepção de Geoffrey Hindley [21] , para quem a Magna Carta seria muito mais uma questão de dinheiro do que a ideia de liberdade que anos mais tarde lhe foi atribuída.
A Carta era originalmente composta de 63 artigos, muitos dos quais tratando de aspectos da vida medieval de então, regulando a cobrança de impostos, direitos sucessórios relacionados a dívidas com judeus, proibição de pesca, padronização de pesos e medidas, direitos de viúvas de não se casar novamente, dentre outros [22].
Mesmo assim, é relevante anotar que a preocupação dos Barões em impor limites ao poder do Rei, e garantir-lhes privilégios, acabou enveredando para igualmente assegurar algumas garantias ao cidadão inglês e é neste campo que ela ganhou importância histórica. Já de início é relevante considerar que ela serviu de base para se pensar na formação do Parlamento e de se estabelecer um sistema recursal, o que veio delineado ao final da Magna Carta, em seu artigo 61, quando se instituiu um Conselho de vinte e cinco Barões para controlar o Rei e fazê-lo obedecer e cumprir com o estabelecido no referido documento.
Neste Conselho também se estabeleceu a possibilidade de quatro dos 25 barões formularem acusações perante o Rei ou, na sua falta, ao Chefe da Justiça, sempre com a possibilidade de haver um grau recursal aos demais barões. Há, portanto, na Magna Carta, a documentação de um arremedo de duplo grau de jurisdição. No mesmo sentido foi assegurado o direito de qualquer cidadão inglês se insurgir contra arbítrios do Rei ou contra a violação de seus direitos por qualquer outra pessoa, peticionando ao próprio Rei, ao Chefe de Justiça ou mesmo ao referido Conselho.
No que concerne aos aspectos processuais penais, além de assegurar o direito de ir e vir (artigos 41 e 42); o acesso à Justiça a todos (artigo 40); estabelecer o princípio da proporcionalidade entre crime e sanção (artigos 20 e 21); indicar como condição da ação aquilo que, hoje, Afrânio Silva Jardim sintetizou como “justa causa”, ou seja, exigir elementos probatórios preliminares à acusação (artigo 38), e também proibir que alguém fosse preso pela prática de homicídio quando acusado por mulher (exceto quando o morto fosse seu marido), revelando que por outros motivos era possível a prisão cautelar (artigo 54), destaca-se o artigo 39, que regrou o julgamento popular e pode ser considerado o registro inaugural da ideia do devido processo legal, cujo texto veio assim produzido:
“Nenhum homem livre será detido ou preso ou tirado de seus direitos ou sua terra, ou posto fora da lei ou exilado, ou de qualquer modo destruído, nem lhe será imposta força ou enviado outros para fazê-lo, exceto pelo julgamento legal de seus pares ou pela lei da terra.” [24]
O texto original, em latim, “per legem terrae”, depois foi traduzido para o inglês como due process of law, ou seja: devido processo legal.
O Rei João, no entanto, nunca cumpriu efetivamente o quanto contido na Magna Carta, rebelando-se e iniciando nova guerra civil logo em seguida [25].
Com a morte do Rei João (em 19 de outubro de 1216), assumiu o trono seu filho de apenas nove anos de idade, Henrique III [26]e, no ano de 1225, a Magna Carta passou por revisão, editando-se um novo texto, com a redução dos artigos de 63 para 37. A cada novo Rei que assumia o trono na Inglaterra se apresentava a Magna Carta como um documento que deveria nortear seu reinado. Como sintetiza Churchill, “nos cem anos seguintes”, a Magna Carta “foi revigorada trinta e oito vezes, a princípio com algumas alterações substanciais, mas conservando suas características originais” [27], destacando-se, ao seu lado, o Statute of Westminster II [28], em 1285 .
É claro que no direito inglês as coisas não se deram numa consolidação linear e progressiva dos direitos e garantias do cidadão e foram vários os revezes [29] ao longo destes oitocentos anos, mas está lá na Magna Carta o nascimento do devido processo legal e, assim, da construção de uma cultura que premia, sempre que possível, as garantias do cidadão frente ao exercício do poder, até porque a tradição do direito inglês em contraposição ao direito europeu-continental da época dava preferência às regras de processo, consagrada na parêmia remedies precede rights [30].
Quanto ao atual processo penal brasileiro ele não escapa de ser o espelho dos embates destes dois mundos ideologicamente opostos e muito do que se discute em torno do Projeto de Lei que está no Congresso Nacional é, em grande parte, resultado das duas linhas de orientação que se originaram naquele ano de 1215.
A disparidade de compreensão do processo penal é mesmo bastante atual e também se apresenta na legislação hoje vigente, que se resume a dois diplomas legislativos de orientação ideológica absolutamente distinta: o Código de Processo Penal de 1941 e a Constituição da República de 1988.
E o dado marcante que exige a reforma global do atual Código de Processo Penal brasileiro é que, se ainda estamos ligados à base legislativa do Código de 1941, estamos igualmente vinculados à cultura da repressão que se construiu a partir do IV Concílio de Latrão. Com efeito, nosso atual Código de Processo Penal, datado de 1941, é de linha ideológica autoritária, elaborado no curso do Estado Novo de Getúlio Vargas e, assim, caminha ombreado com o espírito do modelo lateranense. Não é demais relembrar que Getúlio era ditador e tinha o italiano Benito Mussolini como figura inspiradora de seu jeito de governar. Não à toa, portanto, nosso Código de Processo Penal de 1941 foi inspirado no chamado Codice Rocco italiano de 1930, encomendado por Mussolini aos irmãos Arturo e Alfredo Rocco, auxiliados por Vincenzo Manzini [31] (este, além de influente criminalista da época, era advogado pessoal de Mussolini) [32] . Por sua vez, o Codice Rocco foi inspirado no Códe d’Instruction Criminelle de Napoleão (1808). Três ditadores, cada um a seu modo, produziram três conjuntos de regras que pretenderam “vender” ao povo como se fossem textos equivalentes a diplomas com “ares de democracia”. Todos, porém, eram de marcante índole totalitária. O mais interessante, no entanto, é que a base discursiva que permite classificá-los como tal, remonta à cultura desenvolvida na Europa continental a partir do IV Concílio de Latrão, de 1215.
Se olharmos para a redação originária dos três Códigos referidos (de Napoleão, de Mussolini e de Getúlio), veremos, por exemplo, que o interrogatório do réu era orientado para a busca da confissão em moldes muito similares ao pregado oitocentos anos atrás no documento resultante do IV Concílio de Latrão. De fato, num primeiro momento se o réu não fosse localizado para ser citado e interrogado, decretava-se sua revelia [33]e o processo seguia sem que o acusado dele tivesse conhecimento. O interrogatório ainda era considerado o primeiro ato de instrução do processo, e nele era dispensada a presença de advogado, sendo um ato exclusivo do juiz, que não tolerava intervenções de ninguém. Pior: o silêncio do acusado neste ato poderia ser valorado contra ele na sentença, nos moldes do ditado popular “quem cala, consente”. O modelo legislativo, portanto, impulsionava o juiz a buscar uma “verdade absoluta”, espelhada na confissão do acusado, já na largada do processo, pois uma confissão no início do processo facilita a “solução” do caso penal.
No Brasil, mesmo após o advento da Constituição da República de 1988, com ampla inspiração do modelo processual penal inglês de garantias do cidadão, assegurando a presunção de inocência, o direito ao silêncio, a ampla defesa e o contraditório, a cultura e o regramento do Código de Processo Penal de 1941 continuaram prevalecendo na jurisprudência dos Tribunais pátrios. Para espanto de parte da doutrina mais moderna, em diversas situações os Tribunais conseguiram promover uma espécie de adaptação da Constituição ao Código e não o inverso. Como já disse Jacinto Coutinho, “mudam as leis mas elas dizem pouco se não muda a mentalidade dos intérpretes” . A questão, portanto, é cultural.
Seja como for, mudar a lei, por evidente, é um passo importante. No caso brasileiro, como a cultura da repressão é muito forte (basta ver que ao longo da República já tivemos dois longos períodos de ditadura) e o intérprete não obedecia ao comando da Constituição, foi necessário alterar a lei infraconstitucional. O modelo de regramento do interrogatório do acusado, por exemplo, somente foi pontualmente alterado pelas reformas parciais do Código de Processo Penal de 1996 (Lei 9271), de 2003 (Lei 10.792) e de 2008 (Lei 11.719). Com estas reformas o processo não pode mais prosseguir enquanto não se localizar o acusado para ser informado de sua existência e para que ele, querendo, possa exercitar a autodefesa. Além disso, o interrogatório passa a ser o último ato de instrução, com a obrigatória presença de advogado, permitido o contraditório e assegurado o direito ao silêncio sem possibilidade de sua valoração pelo juiz como fundamento para condenar na sentença. Ou seja: até o advento das reformas ocorridas entre 1996 e 2008 no direito brasileiro pouca coisa havia sido alterada no modo de se conduzir o processo penal orientado pela busca da confissão. Ainda estávamos reproduzindo, quase que literalmente, o quanto o modelo medieval de 1215 do IV Concílio de Latrão havia consolidado.
Melhor, então, trilhar o caminho das reformas mais amplas que reorientem todo o processo penal brasileiro para o espírito democrático desenvolvido a partir da Magna Carta. Ainda que as paulatinas e parciais mudanças que vêm ocorrendo no direito processual penal brasileiro também possam ser lidas como resultado da contribuição dada pela Magna Carta, elas promoveram esse redirecionamento apenas em parte . O processo penal brasileiro ainda se ressente em vários temas da influência do quanto resultou do IV Concílio de Latrão e do modelo inquisitorial europeu continental (a exemplo das iniciativas de introdução probatória e de medidas cautelares ex officio do juiz).
Deve-se, então, aproveitar a celebração do oitavo centenário do aniversário da Magna Carta para repetir o gesto dos próprios ingleses, não apenas aquele de 1215, mas também sua repristinação verificada no Século XVII, quando o Rei Carlos I vinha tendo comportamento tirânico similar ao de João Sem Terra. Naquela ocasião, no ano de 1628, o Parlamento inglês acabou elaborando outro documento, chamado Petition of Rights, cuja redação literalmente “lembrava” ao Rei o quanto a Magna Carta havia estabelecido de direitos aos cidadãos. Este documento, posteriormente, foi a pedra fundamental da declaração dos direitos civis, e veio mais uma vez reafirmado por ocasião da Glorious Revolution inglesa com a consequente redação da Bill of Rights, em 1689 , que influenciou, inclusive, a independência norte-americana . Seguindo, portanto, o exemplo desta árdua construção de uma cultura de garantias, chegou o momento de também nós brasileiros “lembrarmos ao Parlamento” que o processo penal democrático da Constituição da República de 1988 exige um olhar para o futuro inspirado preferencialmente pela base de direitos e garantias que decorre da Magna Carta, iluminando sua compreensão pela luz da proibição de excessos por parte de quem detém o poder, que caminhe ao lado da necessidade de uma proteção suficiente ao cidadão vítima (direitos e garantias fundamentais em sua dupla dimensão).
E, para além da mudança da lei o que se espera da discussão a ser travada no Congresso Nacional no Projeto de Lei 156/2009, que propõe um novo Código de Processo Penal para o país, é que o novo texto consiga colaborar para igual mudança de cultura do intérprete. Oitocentos anos depois do advento da Magna Carta e quase vinte e sete anos depois da Carta Magna brasileira de 1988, já passou da hora de se consolidar um modelo de processo penal que contribua para consolidar as mudanças culturais capazes de não desconsiderar o quanto a história já nos mostrou.
*Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutorando em Direito de Estado pela UFPR. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.
[1] Um dos primeiros documentos que registraram a perseguição às dissidências religiosas dessa época, foi a Bula Ad Bolendam de 1184, do Papa Lúcio III. Os textos integrais desta e de outra bula importante da época – Vergentis in Senium, de 1199, podem ser encontrados tanto no original em latim, quanto traduzido para o português, em RUST, Leandro Duarte. Bulas Inquisitoriais: Ad Bolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). In: Revista de História, São Paulo, nº 166, pp. 129-161, janeiro/junho de 2012, disponível em http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/48532/52451, acesso em 26 de maio de 2015, pp. 150 e ss..
[2] O exemplo mais marcante dessa perseguição às mulheres está documentado no Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), escrito em 1484 pelos inquisidores alemães Heinrich Kramer e James Sprenger. (KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras, 16ª ed., tradução de Paulo Fróes, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002).
[3] Vide, por exemplo, o texto original das Instruções de Valdés, de 1561, na Inquisição espanhola. Disponível em ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição Espanhola e seu Processo Criminal. As Instruções de Torquemada e Valdés, Curitiba: Juruá, 2006, pp. 101 e ss..
[4] Além de ter usado do processo penal, a Igreja também se valeu de outras estratégias de dominação: fez uso da força – patrocinando a Cruzada Albigense contra os Cátaros –, promoveu a expropriação das culturas pagãs e o controle sobre o conhecimento da humanidade, chegando, inclusive, a editar um Rol de Livros Proibidos, que somente parou de ser publicado em 1966.
[5] A respeito da vida, da influência e das preocupações de Inocêncio III neste crucial momento da história, vide, dentre outros, o excelente romance biográfico de LAVEAGA, Gerardo. O Sonho de Inocêncio. Tradução para o português de Sandra Martha Dalinecy, São Paulo: Planeta, 2007.
[6] Santo Agostinho construiu seu pensamento filosófico, em boa medida, a partir de uma releitura de Platão (partindo da radical divisão entre o certo e o errado, entre “o que é” e “o que deve ser”) e, assim, praticamente “refundou” o catolicismo ao “divinizar” o discurso platônico e estabelecer a necessidade de aproximação da “cidade dos homens” (civitas terrena) com a “cidade de Deus” (civitas Dei), externada em sua famosa obra “A Cidade de Deus”. Em suas “Confissões” o discurso ideológico da verdade divina frente à fragilidade humana também é facilmente identificável. Enfim, de tudo quanto se extrai da obra de Santo Agostinho é possível compreender que ele repartiu a humanidade entre dois mundos concomitantes e, também, entre “eleitos” de Deus e “condenados” ao inferno. Partindo dessa premissa Santo Agostinho dizia – como visto em diversos trechos das “Confissões” – que a única verdade admitida é a verdade de Deus. Dizia, ainda, que Deus está em tudo, inclusive no homem. Assim, construiu a ideia de que o homem trazendo Deus dentro de si trazia também a verdade, não obstante muitas vezes ele não soubesse disso, não tivesse essa consciência. Era preciso, pois, “arrancar” dele essa verdade através da confissão... “para sua salvação...”. (AGOSTINHO. Santo. Confissões. Tradução de Alex Martins, São Paulo: Martin Claret, 2007, pp. 89, 211, 215 e 291).
[7] Até formalmente, no Corpus Iuris canonici, a idéia de pecado é tida como similar ao crime: crimen est grave peccatum accusatione et damnatione dignissimum. Conforme PRODI, Paolo. Uma História da Justiça. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 28. Sobre o tema também vale consultar RIBEIRO JR., João. Pequena História das Heresias. Campinas, S.P.: Papirus, 1989, p. 14.
[8] Diz o texto do IV Concílio de Latrão, no Cânone XXI: “Todo fiel, de ambos os sexos, após ter atingido a idade da razão, deve confessar fielmente, sozinho, todos os seus pecados ao próprio Pároco, ao menos uma vez por ano, e cumpra a penitência que lhe for imposta segundo as suas possibilidades; e receba, também com reverência, ao menos na Páscoa, o sacramento da eucaristia (...). Se alguém, por uma justa causa, quiser confessar os seus pecados a um sacerdote estranho, deve antes pedir e obter a licença do próprio Pároco, sem a qual o outro não teria o poder nem de absolvê-lo, nem de ligá-lo”. Tradução nossa. No original, em italiano: Qualsiasi fedele dell’uno o dell’altro sesso, giunto all’età di ragione, confessi fedelmente, da solo, tutti i suoi peccati al proprio parroco almeno una volta l’anno, ed esegua la penitenza che gli è stata imposta secondo le sue possibilità; riceva anche con riverenza, almeno a Pasqua, il sacramento dell’Eucarestia, a meno che per consiglio del proprio parroco non creda opportuno per un motivo ragionevole di doversene astenere per un certo tempo. Altrimenti finché vive gli sia proibito l’ingresso in chiesa, e - alla sua morte - la sepoltura cristiana. Questa salutare disposizione sia pubblicata frequentemente nelle chiese, perché nessuno nasconda la propria cecità con la scusa dell’ignoranza. Se poi qualcuno per un giusto motivo volesse confessare i suoi peccati ad un altro sacerdote, prima chieda e ottenga la licenza dal proprio parroco, poiché diversamente l’altro non avrebbe il potere di assolverlo o di legarlo. Disponível em http://www.intratext.com/IXT/ITA0138/_P3.HTM, acesso em 12 de junho de 2015. Vide, também, dentre outros: PRODI, Paolo. Uma História da Justiça. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 79; e.O’SHEA, Stephen. A Heresia Perfeita: a vida e a morte revolucionária dos Cátaros na Idade Média. Tradução de André Luiz Barros, Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 228 e ss.
[9] Conforme se vê do Cânone VIII, Da investigação, (IV Concilio Lateranense. Texto na íntegra disponível em www.intratext.com, acesso em 24.08.2006).
[10] A preferência recaiu no modelo de inquisitio, notadamente nos crimes mais graves ao domínio religioso. É também relevante anotar que o processo “inquisitorial” não se desenvolveu de forma única ou mesmo esteve presente em todos os lugares e em todos os casos. A forma “oficial” pelo qual foi transmitido pela doutrina de processo penal do Século XIX, com pretensão de pureza, e numa visão contraposta a outro pretenso “sistema puro”, o acusatório, pode-se dizer exagerada, decorrente das pretensões oitocentistas de pureza científica e não corresponde ao quanto sucedeu ao longo dos séculos anteriores.
[11] VALLERANI, Massimo. Modeli di Verità. Le Prove nei Processi Inquisitori. In: GAUVARD, Claude (Organizador). L’enquête au Moyen Âge. Etudes. Roma: Collection de l’Ecole Française de Rome, 2008, pp. 123-142, p. 124.
[12] Cânone XLVIII do IV Concílio de Latrão.
[13] “Cânone III. Dos Hereges (...) Aqueles que sejam apenas suspeitos, ao menos que tenham demonstrado a própria inocência com provas que venham a justifica-la, sejam punidos com a excomunhão”. Tradução nossa. No original, em italiano: III. Degli eritici (...) Quelli che fossero solo sospetti, a meno che non abbiano dimostrato la propria innocenza con prove che valgono a giustificarli, siano colpiti con la scomunica, Disponível em http://www.intratext.com/IXT/ITA0138/_P3.HTM, acesso em 12 de junho de 2015.
[14] BAIGENT, Michael e LEIGHT, Richard. A Inquisição. Tradução de Marcos Santarrita, Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 48.
[15] O texto integral da Bula Ad Extirpanda pode ser localizado em tradução para o inglês na página www.userwww.sfsu.edu/~draker/history/Ad_Extirpanda.html, acesso em 03.10.2010.
[16] O Rei João ainda foi jocosamente apelidado de “Sem Terra”, justamente por ser o filho caçula e, assim, não ter direito à herança.
[17] Geoffrey. A Brief History of the Magna Carta. The Story of the Origins of Liberty.London: Constable & Robinson, 2008, pp. 11 e ss..
[18] TWISS, Miranda. Os Mais Perversos da História. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo, São Paulo: Planeta do Brasil, 2004, p. 74 e ss..
[19] Segundo informa LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 22-26; CHURCHILL, Winston S. História dos Povos de Língua Inglesa – Berço da Inglaterra, vol. 1, tradução de Aydano Arruda, São Paulo: IBRASA, 2005, p. 240; e também TWISS, Miranda. Ob. cit., p. 72 e ss..
[20] LEWIS, Brenda Ralph. A Dark History: The Kings & Queens of England. 1066 to the presente day. New York: Metro Books, 2005, pp. 43 e 44. Tradução nossa. No original, em inglês: This was not a declaration of democratic liberties, as is often thought, but a statement of de barons’ rights and privileges.
[21] HINDLEY, Geoffrey. Ob. cit., p. 55.
[22]Conforme texto original referido por COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 81 e ss.
[23] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 9ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.166 e 167.
[24] Texto original da Magna Carta extraído do site “The British Library”, acesso em 28.01.04. htpp://www.bl.uk/collections/treasures/magnatranslation.html. No original, em inglês: No free men shall be seized or imprisioned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor will proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgement of his equals or by the law of the land.
[25] HINDLEY, Geoffrey. Ob. cit., pp. 245 e ss..
[26] HINDLEY, Geoffrey. Ob. cit., p. 249.
[27] CHURCHILL, Winston S. Ob. cit., p. 240. No mesmo sentido, LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Ob. cit., p. 36.
[28] Sobre sua importância histórica vide GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito, 4ª ed., tradução de A.M. Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 219.
[29] A peste negra (black death), por exemplo, que infestou a Inglaterra nos anos 1348 e 1349 e provocou a morte de boa parte da população, acabou tendo um papel decisivo para a não solidificação do modelo de júri, haja vista que com falta de pessoas capazes, dispostas e em número suficiente de servirem como jurados, a realização dos júris ficou bastante prejudicada. Com a referida dificuldade de formação dos júris o Rei acabou criando a figura dos Juízes de Paz (Justices of the Peace), num modelo que hoje poderia ser também rotulado de “inquisitório”, já que o Juiz de Paz realizava tudo sozinho, como se vê do texto do Justices of the Peace Act 1361. Também serve de exemplo o quanto sucedeu a partir de 1529, com Henrique VIII como Rei, quando o modelo processual passou a ser denominado equity e era pautado na “jurisdição do Chanceler”, aproximando-se muito do modelo inquisitorial da Igreja Católica, como destaca René David.
[30] DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, 4ª ed., tradução de Hermínio A. Carvalho, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 363 e 364.
[31] Em 06 de outubro de 1926, Vincenzo Manzini recebe, diretamente de Alfredo Rocco, o encargo de compor o texto, no que é auxiliado por Ugo Aloisi, Carlo Saltelli e pelo próprio Ministro Rocco, segundo informa ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto, na nota bibliográfica que fez na tradução para o espanhol da obra de MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I. Tradução para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín, Buenos Aires: Libreria “El Foro”, 1996.
[32] Sobre o Código Rocco, vide também CORDERO, Franco. Procedura Penale. Ottava Edizione. Milano: Giuffrè, 2006, pp. 85 e ss..
[33] Código de Instrução Criminal Francês de 1808. ANDRADE, Mauro Fonseca (Organizador), Curitiba: Juruá, 2008, p. 59, verbis: Art. 186. Si le prévenu ne comparaît pas, il sera jugé par défaut.; Código de Procedimiento Penal Italiano. In: MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo V. Tradução para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín, Buenos Aires: Librería “El Foro”, 1996, p. 390 e 444, verbis: Art. 173. Notificaciones al imputado rebelde, evadido o renitente. Las notificaciones al imputado rebelde o evadido o bien que sin un legítimo impedimento no se há presentado para el interrogatório, se ejecutan mediante depósito en la secretaria (judicial o del ministério publico) a tenor del primer parágrafo del art. 170. El juez o el ministério público nombra un defensor al imputado que carece de él. (...) Art. 441. Interrogatorio del imputado. – El presidente o el pretor procede, bajo pena de nulidad, al interrogatório del imputado si éste se halla presente o, si no está presente, de su procurador especial cuando es admitido.
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