Até o mês de julho de 2011 o juiz criminal que analisava uma prisão em flagrante delito não tinha muitas opções: ou mantinha o sujeito preso pelo próprio flagrante, “homologando-o” (o que já era questionável, mas ainda era admitido pela jurisprudência); ou considerava o flagrante ilegal e relaxava a prisão (restabelecendo a liberdade plena do sujeito); ou concedia a liberdade provisória na qual o sujeito assumia o compromisso de comparecer a todos os atos do processo; ou, por fim, “convertia” o flagrante em prisão preventiva.
Com o advento da Lei 12.403/2011, o Título IX do Código de Processo Penal, que trata das medidas cautelares pessoais, foi alterado significativamente. As grandes novidades vieram representadas pela não possibilidade de se manter alguém preso apenas em razão do flagrante; e a criação de nove medidas cautelares diversas da prisão no rol do novo art. 319, a saber: (1) comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; (2) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; (3) proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (4) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; (5) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (6) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; (7) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; (8) fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; (9) monitoração eletrônica.
Com a mudança legislativa se esperava igual mudança de mentalidade do julgador. Não é o que se tem verificado nas decisões em primeiro grau, reprisadas no cotidiano dos Habeas Corpus que chegam ao Tribunal de Justiça do Paraná.
A começar pela insistência de boa parte dos juízes de primeiro grau em continuar dizendo que “homologam” o flagrante. Sucede que depois da reforma do Código de Processo Penal de 2011, não se deve mais falar em “homologação” de flagrante. A prisão em flagrante deixou de ser medida cautelar. É, agora, uma medida pré-cautelar. Ou seja: nos termos da nova redação do art. 310, do C.P.P. ou se relaxa a prisão em flagrante, por ilegalidade; ou se concede a liberdade provisória, com ou sem alguma medida cautelar diversa da prisão; ou se decreta a prisão preventiva. Não existe mais razão em “homologar” o flagrante, pois esta era medida adotada para manter o sujeito preso em razão do próprio flagrante, o que não é mais possível com a nova lei.
Mas essa é uma questão formal. No tema das medidas cautelares pessoais no processo penal brasileiro, há outro modo de enfrentar a questão que vem se revelando como um problema e que precisa ser reavaliado: diante da prisão em flagrante de alguém, mesmo com a nova lei apresentando ao juiz um leque de nove opções de medidas cautelares diversas da prisão, muitos magistrados continuam pensando e optando, antes de tudo, pela manutenção do sujeito preso cautelarmente. Com isso, na prática, o que se vê é que neste tema muito pouco mudou com a nova lei.
O problema é reforçado nas decisões dominantes dos Tribunais. Nestes quatro anos de vigência da nova lei das cautelares pessoais no processo penal brasileiro foi-se consolidando na jurisprudência, quase que velada e silenciosamente, a mesma interpretação dos juízes de primeiro grau no sentido de que se o magistrado entender que os requisitos da prisão preventiva estão presentes é porque implicitamente afastou a possibilidade de uma medida cautelar menos gravosa. Com efeito, a compreensão de desnecessidade de enfrentamento das medidas cautelares diversas da prisão vem sendo reproduzida em inúmeros acórdãos que validam as decisões de prisão preventiva. E a argumentação por vezes usada nestes acórdãos tem invertido o texto da nova lei, sustentando que “as medidas previstas no art. 319 do CPP só poderão ser aplicadas quando ausentes os requisitos para a prisão preventiva” [2] . Como se vê do trecho destacado, o Tribunal está fazendo uma leitura às avessas da lei, pois o §6º do artigo 282 do Código de Processo Penal diz literalmente o contrário do que ficou registrado no acórdão. Diz a nova lei: “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”. Portanto, basta ler a nova lei para perceber que a lógica do Tribunal segue o inverso do que ela determina, pois tem afirmado que o juiz deve pensar primeiro na prisão preventiva e, só se esta não for cabível, é que poderia avaliar as demais medidas cautelares menos graves.
Assim, o que se tem visto no cotidiano dos julgamentos de Habeas Corpus é que, mesmo quando o magistrado de primeiro grau apenas tangencia a questão atinente às medidas cautelares diversas da prisão elencadas no artigo 319 do Código de Processo Penal, concluindo pela decretação da prisão preventiva do sujeito ao argumento da garantia da ordem pública, o Tribunal tende a manter a decisão monocrática. E tem sido bastante comum que as decisões de prisão cautelar se limitem a avaliar os requisitos da preventiva e, ao final, acabem apenas registrando algo como “considerando que as medidas cautelares trazidas pela Lei nº 12.403/2011 não são suficientes para o resguardo do direito no presente caso, converto a prisão em flagrante em preventiva”. E nada mais.
Este tipo de decisão deveria ser declarada nula, por evidente ausência de fundamentação relativa ao cabimento das medidas cautelares diversas da prisão. Mas, como dito, não é isso que vem ocorrendo. Ou seja: mesmo sem dizer por que entende que as medidas cautelares diversas da prisão não servem ao caso concreto, a grande maioria dos magistrados parte direto para a decretação da prisão preventiva. E esta que deveria ser a última hipótese, nos termos da nova legislação, continua sendo a primeira a ser pensada. Mudou a lei, não mudou a prática.
Assim, como no Brasil muitas vezes é necessário dizer o óbvio, neste ponto é preciso recordar que tanto a Constituição Federal, em seu inciso IX do art. 93, quanto o art. 310 do Código de Processo Penal, exigem fundamentação da decisão do magistrado, sob pena de nulidade. Fundamentar não é um favor que o juiz faz às partes, mas um dever expresso na legislação processual penal e constitucional.
Portanto, se o §6º do art. 282 do C.P.P. determina que a prisão preventiva seja decretada somente quando não for cabível a sua substituição pelas demais medidas cautelares diversas da prisão, faz-se necessário explicitar porque as demais medidas cautelares diversas da prisão não seriam suficientes ou adequadas ao caso concreto, tendo em vista a sua natureza de ultima ratio.
Logo, é preciso dizer, no fundamento do decreto de prisão preventiva, por que as nove medidas cautelares diversas da prisão são inadequadas à situação concreta. Analisar uma a uma das nove medidas cautelares diversas. Assim, ou o juiz fundamenta sua decisão analisando detalhadamente as medidas cautelares diversas da prisão, explicando porque elas não são adequadas e/ou suficientes à luz do caso que tem em mãos, antes de pensar na prisão cautelar, ou seu decreto prisional deve declarado nulo por ausência de fundamentação idônea à segregação cautelar do preso. Dá trabalho, é certo, mas é de controle e limitação do poder que se trata.
Nesse ponto, é preciso dizer que a motivação das decisões é garantia do cidadão no Estado Democrático de Direito e, assim, o Poder Judiciário deve dar satisfação de suas razões de decidir. Ao dizer que adota uma medida cautelar ou determinada posição e silenciar sobre a outra, que seria em tese igualmente aplicável, o magistrado acaba decidindo subjetivamente, não se permitindo conhecer sua ratio decidendi.
E aqui reside um problema sério em termos de garantias do cidadão e de proibição de excesso no exercício do poder jurisdicional. Se a decisão que converte a prisão em flagrante em preventiva retira – cautelarmente – a liberdade de alguém, o faz mitigando a presunção de inocência, pois a prisão ocorre ainda na fase de investigação, muito antes do processo e de eventual sentença condenatória. Assim, prender alguém preventivamente somente é possível em hipóteses extremas, como exceção, e desde que o magistrado aja nos limites constitucionais e legais, com explicitação plena dos motivos que o levaram a adotar tal medida. Trata-se de exigência do Estado Democrático de Direito.
Não é por outra razão que a doutrina condena a “motivação aparente”, em que o julgador não revela o raciocínio lógico desenvolvido para chegar à conclusão. O problema é relacionado diretamente à má recepção hermenêutica da ideia de “livre convencimento”, bem identificada na lição do consagrado jurista alemão Claus Roxin [2]:
“ ... Portanto, o juiz não é tão “livre” na formação de sua convicção como parece enunciar o texto do § 261 (sobre este ponto, fundamentalmente, JEROUSCHEK, 1992).
O juiz também deve compreender suficientemente os fatos. Isto também se aplica, em especial, quando existem declarações contraditórias, por isso, por ex., uma declaração testemunhal que incrimine não pode ser crível somente porque a testemunha está sob a ameaça penal dos §§153 e ss. do Código de Processo Penal alemão. Ao contrário, um eventual motivo para uma imputação deve ser controlado cuidadosamente. O juiz também não pode fundamentar seu convencimento somente numa interpretação possível e deixar de lado outras possibilidades, sem nenhum comentário. (grifo nosso)
Sobre o tema, aliás, vem a calhar o novo Código de Processo Civil – CPC (Lei 13.105/2015) que entrará em vigor em março de 2016. Como se sabe, naquele novel diploma legislativo foi expurgado do texto legal a referência ao “livre convencimento” e à “livre apreciação da prova” como nortes exegéticos. Ainda que estes “standards” de interpretação tenham origem histórica no contraponto à ideia de prova tarifada, eles acabaram sendo mal recepcionados no Brasil, e passaram a ser sinônimo de liberdade para o juiz dizer o que quiser, sem ser obrigado a enfrentar todos os aspectos do caso concreto, bastando estar “convencido” de outro caminho.
É claro que retirar esta regra da lei não basta, e se poderia dizer que os juízes continuarão a se pautar pelo seu “livre convencimento”, como alguns, aliás, já vêm anunciando até mesmo em artigos [3], mas ao menos não há mais a indicação expressa que comunicava e premiava a possibilidade do juiz acreditar ser “livre” para formar seu convencimento sem ser obrigado a enfrentar todos os temas jurídicos e probatórios envolvidos no caso concreto. Afasta-se, aqui, a comunicação legal que continuava aproximando o Direito brasileiro da vetusta e perigosa Filosofia da Consciência cartesiana que premiava o intérprete solipsista.
Destaca-se também outra importante preocupação do legislador no novo CPC com a necessidade de exigir dos juízes adequada fundamentação de suas decisões. O legislador chegou ao ponto de enumerar as hipóteses nas quais não se considerará fundamentada a decisão (art. 489, §1º do NCPC).
Nesta altura alguém poderia estar se perguntando: sim, mas o que a prisão cautelar no processo penal tem a ver com o novo Código de Processo Civil? Ainda mais quando se sabe que o simples “empréstimo” de categorias civilistas para o processo penal não é o melhor caminho a ser seguido, dado o abandono da chamada “Teoria Geral Unitária do Processo” pelo seu próprio criador (Carnelutti), somado à necessidade de se construir categorias próprias do processo penal à luz de sua especificidade? Sucede que neste ponto da exigência de fundamentação das decisões a questão transcende o aspecto meramente civilista, até porque, como visto, o tema decorre mais diretamente da Constituição da República. Assim, neste ponto é possível admitir a aplicação analógica deste regramento do novo CPC ao processo penal, com base no art. 3º do Código de Processo Penal brasileiro, procurando dar um novo norte de interpretação e fundamentação na questão das medidas cautelares pessoais.
A entrada em vigor do novo CPC, portanto, “poderá” representar uma nova postura da magistratura brasileira e permitir uma revisitação do modo de fundamentar as medidas cautelares no processo penal. “Poderá”? Mas então não é certeza que isso ocorrerá com o novo CPC? Este antecipado desânimo não é com o texto no novo CPC, mas com o seu intérprete, pois ele já vem dando novas mostras de sua dificuldade de lidar com o novo. Para ilustrar, basta analisar que a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) divulgou recentemente 62 enunciados a respeito de como eles compreendem deve ser interpretado o novo Código de Processo Civil. No ponto que interessa, destaca-se o enunciado nº 10, que diz: “A fundamentação sucinta não se confunde com a ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa”. Ou seja: o novo Código de Processo Civil sequer entrou em vigor e a exigência de fundamentação adequada já pretende ser considerada natimorta pela via de enunciados da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.
Enfim, aquela que poderia ser a saída para uma revisitação jurisprudencial do quanto hoje vem sendo tolerado em termos de fundamentação das decisões monocráticas relacionadas às medidas cautelares pessoais no processo penal brasileiro, já dá mostras de perder seu fôlego antes mesmo de começar pra valer.
Realmente não é fácil fazer valer a Constituição e as leis no Brasil e a máxima lembrada por Jacinto Coutinho segue tendo razão: “mudam as leis, mas elas dizem pouco se não muda a mentalidade dos intérpretes” [4].
[1] BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. 3ª Câmara Criminal. Habeas Corpus nº 1.410.120-9, pulicado em 26 de agosto de 2015. Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/consulta-processual/publico/b2grau/consultaPublica.do?tjpr.url.crypto=8a6c53f8698c7ff72d6c5e2eb4a83ec9874ed35602bf9d38ad8c92be0e499a42.
[2] ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. 1ª ed., 2ª reimpressão. Tradução do alemão para o espanhol de Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor, revisado por Julio B. Maier, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003, p. 104. Tradução nossa. No original, em espanhol: Por tanto, el juez no es tan “libre” en la formación de su convicción como parece enunciar el texto del § 261 (sobre esto, fundamentalmente, JEROUSCHEK, 1992). El juez también debe comprender suficientemente los hechos. Esto rige además, en especial, cuando existen declaraciones contradictorias, por ello, p. ej., una declaración testimonial de cargo no puede ser considerada creíble solamente porque el testigo se encuentra bajo la amenaza penal de los §§153 y.ss.,StGB. Antes bien, un eventual motivo para una imputación debe ser controlado cuidadosamente. El juez tampoco puede fundamentar su convencimiento sólo en una interpretación posible y dejar de lado las otras posibilidades, sin ningún comentario.”
[3] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC. In: JOTA, publicado em 06 de abril de 2013. Disponível em http://jota.info/o-livre-convencimento-motivado-nao-acabou-no-novo-cpc, acesso em 21 de outubro de 2015.
[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Nº 30, Curitiba: UFPR. 1998, pp. 163-198.
* Rodrigo Régnier Chemim Guimarães: Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.