Neste terceiro e último artigo a respeito do que venho denominando de “fórmula matemática” do tráfico de drogas (vide os dois primeiros aqui e aqui), a questão que ora se destaca recai sobre a ilegalidade da prova e da prisão em flagrante por tráfico de drogas dentro de residência sem mandado judicial. Neste campo, o cotidiano dos processos tem revelado uma praxe da Polícia Militar de diligenciar em endereço indicado anonimamente através do “disque denúncia” como sendo ponto de venda de drogas, ocasião em que acaba tendo o acesso à residência “franqueado pelo suspeito” (é este o termo que costuma ser usado no registro do flagrante). Ao ingressar na residência como “visita” a polícia lá acaba encontrando pequena quantidade de droga. De consequência prende o sujeito em flagrante delito por tráfico de drogas, ainda que ele alegue ser apenas usuário da droga e a quantidade apreendida seja compatível com esta alegação.
Vale de início o registro que esse papel de investigar notícias anônimas de crime e diligenciar nos endereços indicados como possíveis pontos de venda de drogas, deveria ser realizado primordialmente pela Polícia Civil e não pela Polícia Militar. Mas este é tema para outro artigo. Aqui interessa o modo de agir da Polícia Militar que rotineiramente vem sendo evidenciado na grande maioria dos processos criminais por tráfico de drogas no Paraná e em outros Estados da Federação nos quais o sujeito é autuado em flagrante dentro de sua própria casa na posse de pequena quantidade de droga. Ainda que se compreenda que a Polícia Militar age, a seu aviso, com a maior das boas intenções no intuito de diminuir a criminalidade, no Estado Democrático de Direito é preciso respeitar alguns limites e preservar garantias dos cidadãos constitucionalmente asseguradas. Assim, para além do que já se disse a respeito da “fórmula matemática” do tráfico nos dois artigos anteriores – particularmente que ela acaba encurtando a compreensão do quadro probatório para tratar o suspeito desde sempre como traficante –, quando a diligência investigatória da notícia anônima olvida de prévio mandado de busca e apreensão há que se considerar a ilegalidade tanto do flagrante quanto da prova produzida.
Vejamos porquê.
Como se destacou, via de regra o que se vê dos autos que chegam em grau recursal nos Tribunais é que os policiais militares costumam comparecer ao local indicado na notícia anônima sem qualquer prévia diligência alusiva a esta notícia e sem estarem munidos de mandado de busca e apreensão. Ou seja: no momento em que os policiais chegam à porta da residência do noticiado normalmente não estão diante de constatação prévia de flagrante por tráfico ou porte de drogas para consumo pessoal que lhes permitiria legitimar o ingresso na residência.
Mesmo assim, o que se tem visto é que os policiais normalmente se dirigem ao local, chamam pelo suspeito, conversam com ele e, depois são “convidados a entrar”, fazendo-o sem qualquer mandado judicial prévio, iniciando de imediato as diligências de busca da droga para confirmar a notícia anônima que os impulsionou a agir. O curioso é que sempre dão “sorte” nesta diligência, pois o registro que se tem nos autos é que foi localizada pequena quantidade de droga lá dentro. Prendem, então, em flagrante o morador, no interior de sua residência, pela conduta aparente de tráfico de drogas. Opera aqui a já referida “fórmula matemática” do tráfico: notícia anônima + pequena quantidade de droga = tráfico. E, decorrência da heurística da representação do tráfico, bem trabalhada na Psicologia Cognitiva conforme explorado em nosso primeiro artigo desta trilogia, deixa-se de lado a verificação da legalidade da diligência operada pela polícia sem prévio mandado judicial de busca e apreensão.
Num juízo apressado, poder-se-ia argumentar que a diligência seria lícita, pois o crime de tráfico de drogas, na modalidade “guardar” ou “ter em depósito” é crime permanente, isto é, enquanto o sujeito está guardando a droga ou tendo-a em depósito o crime está ocorrendo, prolongando sua execução no tempo e, assim, tudo se legitimaria pelo flagrante constatado, autorizado pelo inciso XI do art. 5º, da Constituição da República, que diz: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Sucede que não é possível legitimar esse comportamento no plano probatório, pois somente se considera válido o ingresso na residência diante da constatação prévia de flagrante em curso. No caso, o flagrante mesmo – não interessa se por tráfico ou por porte para consumo pessoal – só é identificado depois do ingresso na residência e não antes dele. Antes de ingressar na residência os policiais normalmente não sabem – com margem mínima de probabilidade – o que vão encontrar lá dentro. Agem pelo modelo “matemático” de atuação, quase por instinto, seguindo uma lógica agostiniana como quem diz: se tem notícia anônima é porque deve ser verdade [1]. No entanto, o resultado do “flagrante” decorre mais da “sorte” do que propriamente de uma investigação adequada.
O que deveria legitimamente ocorrer na hipótese é o seguinte: quando a polícia tem uma informação anônima de que em determinada residência possa estar ocorrendo comércio ilegal de drogas, ao invés de, pela simples informação, despojada de qualquer autorização judicial, nela ingressar na esperança de ser legitimado “ex post” ao encontrar a droga, deve primeiro diligenciar para verificar se a informação anônima tem um mínimo de verossimilhança, nos termos do que determina, desde 1941, o §3º do art. 5º do Código de Processo Penal brasileiro. Pode, por exemplo, identificar o suspeito; levantar sua atividade cotidiana; se possui emprego ou não; acompanhar a movimentação do suspeito; registrar a movimentação do local; identificar possíveis compradores da droga; filmar as ações externas, enfim, verificar previamente a possível procedência da notícia, permitindo sair do juízo de absoluta incerteza que a mera notícia anônima lhe traz e alcançar juízo de valor de probabilidade. Assim, depois de registrar em autos próprios os elementos de convicção preliminar do possível tráfico de drogas deve levá-los ao Estado-Juiz para informar-lhe os dados que possui e pleitear um mandado de busca e apreensão. É o juiz, então, nos termos dos artigos 240 e seguintes do Código de Processo Penal, quem avaliará se o conjunto de dados até àquele momento coletados pela polícia apresenta as “fundadas razões” exigidas pelo art. 240 do CPP para justificar – ou não – que os direitos fundamentais à privacidade e à inviolabilidade do domicílio, garantidos a todos os cidadãos brasileiros na Constituição da República, sejam relativizados em nome do interesse público de apuração do delito.
Do contrário, caso ingresse sem mandado e não encontre a droga (caso “dê azar...”), a conduta da polícia pode facilmente descambar para a ilegalidade, configurando, em tese e à luz de verificação do dolo exigido pelo tipo, até mesmo o delito de abuso de autoridade.
Ou seja: a diligência não pode se revestir de um jogo de sorte ou azar. A diferença entre um e outro resultado acaba de certa forma também traçando a fina linha divisória entre o flagrante legal e o abuso de autoridade.
Daí o risco de, em determinados casos, o policial poder ser tentado a “plantar” droga junto ao suspeito para legitimar sua ação, como refere, por exemplo, Nilo Bairros de Brum [2] (não que isso seja constatado nos autos com frequência, mas não há como descartar a hipótese). Assim, o simples risco de que o policial possa cogitar em agir ilegalmente com pretensão de dar ar de legitimidade ao seu comportamento quando não localiza droga alguma na residência é que coloca em xeque o modus operandi da polícia, que merece ser imediatamente repensado e reorientado.
A prova da materialidade e da autoria, portanto, obtida nas condições acima relatadas, deve ser reconhecida como uma prova ilegítima – violação de regras processuais exigidas para a hipótese (arts. 240 e ss. do Código de Processo Penal) – e, portanto, ilícita lato sensu (art. 157, caput, do Código de Processo Penal).
Ainda que se diga que o suspeito autorizou o ingresso da polícia em sua residência, há que se ponderar não ser mais possível tolerar-se, no Estado Democrático de Direito, que a polícia aborde uma pessoa na porta de sua residência e, mesmo não encontrando nada que justifique o ingresso a não ser uma notícia anônima, indague-a a respeito de ter drogas em sua residência e admita-se que esta resolva simplesmente confessar como quem diz: “sim, aproveitando que vocês resolveram me visitar, gostaria de dizer que sou traficante e tenho drogas dentro de minha casa; querem entrar para conferir?”, como de certa forma resta implicitamente documentado nos casos em que tem o flagrante a posteriori. Ora, ninguém que saiba ter drogas em sua casa sai “confessando” esse fato para os policiais que o procurem em casa. Ainda que o sujeito possa ter, pelo receio da presença policial, autorizado a entrada em sua residência, o fez mediante evidente coação presumida. Se soubesse da possibilidade de negar este ingresso, teria feito uso desse direito. Os policiais, no mínimo, deveriam encontrar uma forma de documentar expressa e formalmente a autorização de ingresso, depois de esclarecer ao proprietário que ele poderia se recusar a liberar-lhes o ingresso, destacando a eventual autorização, portanto, como livre e não coagida.
Enfim, é preciso mudar a cultura policial de não investigar as notícias e as suspeitas de crime, e de não buscar a legalidade na autorização judicial prévia em casos como o aqui ilustrado. E cabe ao Ministério Público e ao Poder Judiciário fiscalizar e coibir essa prática. Infelizmente não tem sido frequente a compreensão desta problemática por parte das duas Instituições. E o reflexo está presente no dia a dia das periferias das cidades e nas condenações recorrentes a partir desse modelo de atuação. Enquanto se tolerar essa prática da polícia, em nome de discutível eficácia utilitarista de “combate ao crime” ou de “guerra às drogas”, não se alterará a cultura de violação sistemática de direitos fundamentais. Talvez muitos não enxerguem a gravidade do problema pela dificuldade de se imaginarem no lugar do outro, como potenciais vítimas de abusos por parte do Estado. Afinal, as diligências policiais nestes moldes não costumam acontecer em condomínios de luxo de bairros de classe mais abastada... Para que o Estado de Democrático de Direito, aqui lido sob uma de suas importantes balizas que é a proibição de excesso, se materialize, urge mudar a cultura neste campo e acabar de vez com a aceitação irrefletida da tal “fórmula matemática” do tráfico.
[1] AGOSTINHO, Santo. A Doutrina Cristã: Manual de Exegese e Formação Cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira, São Paulo: Paulinas, 1991, p. 85: “(...) por exemplo, quando vemos uma pegada, pensamos que foi impressa por animal. Ao ver fumaça, percebemos que embaixo deve haver fogo”.
[2] BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos Retóricos da Sentença Penal. RT: São Paulo, 1980, p. 76.
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*Rodrigo Régnier Chemim Guimarães: Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.
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