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Conta-se a história de um homem que dormiu por duzentos anos e acordou, é claro, assustado. Foi à “caixa de depósitos” para ver se tinha dinheiro e lá encontrou, em vez de pessoas, caixas automáticos, portas giratórias e se assustou mais ainda. Foi ao mercado, com fome, e lá encontrou jovens de patins, andando de lá para cá, filas intermináveis de caixas registradoras e se apavorou. Então, resolveu ir ao Tribunal, para ver como andavam alguns processos de que se lembrava vagamente e aí...ficou aliviado!... Tudo estava exatamente igual: falava-se latim e havia tapetes vermelhos.

Em vez de sorrir, esta história deveria fazer-nos levar as mãos à cabeça e pensar em quantas coisas na área jurídica cheiram a mofo.

Uma delas, sem dúvida, é a nossa linguagem. Não, não a linguagem técnica: litisconsórcio, enfiteuse ou perempção. Mas a linguagem “comum”: egrégio, sodalício, pretório, homiziar. Esta linguagem “comum” para muitos dos que lidam com o direito.

O pior é que às vezes vem mesclada com erros do tipo duas “jurisprudências” e três “doutrinas”, o que torna tudo ainda mais tragicômico.

Certo que a linguagem jurídica é técnica e não podemos deixar de usar palavras cujo significado só é conhecido de profissionais, como coisa julgada ou devolutividade dos recursos. Também há a linguagem dos corredores dos fóruns, em que se aceita o uso de expressões cujo sentido também não é conhecido por quem não é da área: os autos estão “conclusos”, o juiz “despachou”.

O que a meu ver deveria desaparecer e ser aberta e francamente desestimulado é a linguagem gongórica, “empolada”, hermética em que se usam sinônimos, que já caíram em desuso e que são, portanto, incompreensíveis, de palavras que todos conhecem, como sobejar em vez de sobrar; objurgar, em vez de impugnar; perfunctório em vez de superficial.

E a sinonímia atinge patamares delirantes, sob o pretexto de se estar criando um texto elegante: petições iniciais se transformam em exordiais, peças vestibulares, ou alfas; recurso se transmuda em irresignação... isso, para não falar nas clássicas Carta Magna ou “writ”.

Esta busca desenfreada por sinônimos extravagantes e de gosto duvidoso vem da época em que direito não era ciência e, então, se usava a regra da literatura: não se podem repetir palavras... Esta espécie de linguagem esconde também o desejo de se demonstrar erudição e poder, já que são poucos os que dominam tal vocabulário erudito.

A única função da linguagem deve ser a de comunicar. Não a de mostrar poder ou a de confundir o interlocutor.

Usar este estilo demonstra um desprezo inadmissível pela principal função da linguagem que é a de transmitir ideias. Cultivar o gosto por este estilo de discurso é ser “elitista”, no pior sentido da expressão, e ignorar que o direito tem, sobretudo – senão única e exclusivamente – uma função social. Por que privar parte da sociedade da compreensão do direito? Ou seja: de entender as regras a que todos estão submetidos? Não parece totalmente sem sentido?

De um lado se fala em acesso à Justiça...e de outro se usam termos cujo significado ninguém conhece? O que adianta um posto de saúde em que o médico pergunta ao paciente se tem cefaleia?

Acesso à Justiça também significa compreender o discurso jurídico.

O pretexto de se criar um estilo melhor, mais bonito, mais elegante, usando-se este tipo de vocabulário ou sinônimos inadmissíveis, não convence. A simplicidade é elegante. As funções do direito são a de proporcionar a vida civilizada em sociedade, gerando previsibilidade com respeito à isonomia. Nenhum destes objetivos e os métodos por meio dos quais podem ser atingidos precisam do vocabulário morto e enterrado no final do século XIX.

Mais duas observações: (a) enganou-se quem pensou que o meu tema seria o novo CPC! (b) Esta minicrônica tem inspiração direta em muitos textos de José Carlos Barbosa Moreira, que sempre criticou a linguagem que não sirva exclusivamente à comunicação de ideias.

*Teresa Arruda Alvim Wambier: advogada, mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1990), é professora permanente da PUC-SP e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Foi relatora da comissão de juristas que elaborou o novo CPC.

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