Se você perguntar a um jurista inglês o que acontece se um juiz de primeiro grau desrespeitar um precedente da Suprema Corte britânica, ele te responderá com outra pergunta: como assim, desrespeitar? Detalhe: não está escrito em lugar algum que precedentes de tribunais superiores devem ser respeitados e não há um remédio, na lei, para corrigir eventual desrespeito.
Então, por que se respeitam precedentes? Fácil: há um princípio que recomenda que os homens sejam tratados igualmente. Todos são iguais perante o direito. Nada mais justo e normal do que se decidir do mesmo modo os casos de John contra Mary e de Peter contra Alfred, se são casos iguais. Sendo iguais, devem ser decididos do mesmo modo.
Já no Brasil, acha-se natural que os casos entre José e Maria e entre João e Roberto, mesmo idênticos, sejam decididos de formas diferentes. Por que juízes pensam diferentemente, há várias interpretações possíveis de um mesmo texto legal, todas elas “válidas”.
Essa prática, à qual estamos acostumados e que às vezes pode até favorecer nosso cliente, aniquila a igualdade, compromete a previsibilidade, aumenta a litigiosidade e o número de recursos. Sempre é possível encontrar-se um juiz que decida em conformidade com o que interessa ao meu cliente. Não recorrer, por quê?
Nós estamos acostumados a muitas coisas absurdas. Ou conformados. Talvez tenhamos perdido um pouco a capacidade de nos indignarmos. Alguém discorda?
Esse quadro, evidentemente deformado, é mais uma delas. Nenhuma sociedade pode viver em permanente suspense, na eterna aflição de não saber qual vai ser a decisão, sem confiança na coerência das autoridades.
A função do Estado é proporcionar tranquilidade aos cidadãos.
Acreditando nisso, incluíram-se no Novo Código de Processo Civil (CPC) algumas hipóteses em que precedentes, proferidos em determinadas condições especialíssimas, têm força obrigatória, devendo ser respeitados em outros processos em que se discutem questões idênticas. Não é a obrigatoriedade inglesa: é a obrigatoriedade brasileira, ou seja, se houver desrespeito, cabe reclamação.
Já há vozes no sentido de que essa previsão seria inconstitucional.
Na verdade, a nova lei nada mais fez do que reconduzir as coisas a um lugar de onde elas nunca deveriam ter saído: a normalidade.
Inconstitucional, sim, é o esvaziamento da garantia de isonomia, o desparecimento da previsibilidade e da confiança do Jurisdicionado nos Poderes Constituídos. Esses são valores talvez mais relevantes do que a absoluta independência entre os poderes, que, como se sabe, têm versões diferentes, em vários países.
Aqui, o que deveria ser normal, como dar o lugar a uma grávida ou a uma pessoa idosa, numa fila ou num ônibus, é lei expressa. Precisaria disso? Esse respeito não deveria ser espontâneo? Natural?
Dizer que o precedente obtido pela via do regime dos recursos repetitivos e obrigatório nas causas iguais subsequentes deveria ser desnecessário. Por que é natural. E é obvio! O regime dos repetitivos foi concebido para dar mais rendimento ao trabalho do Judiciário e para proporcionar condições de que o princípio constitucional da isonomia seja concretizado de modo mais pleno. Mas aqui, nada é óbvio. Tudo se discute. Às vezes aquele que quer questionar tudo tem com a única motivação a de ver prevalecer sua própria opinião.
Os órgãos de primeiro e de segundo grau muitas vezes não se curvam a posições dos Tribunais Superiores, o que é negativo. Mas, por outro lado, muitas vezes, o modo como se alteram as posições nesses Tribunais Superiores também não é saudável: são mudanças bruscas e que restam muitas vezes sem explicação suficiente. Esse fenômeno é uma das causas do número excessivo de recursos a que esses tribunais estão submetidos. Um movimento no sentido de que os Tribunais respeitem sua própria jurisprudência e que esta seja realmente paradigmática em relação aos demais órgãos do Judiciário é algo que o NCPC pretende estimular.
Todos deveriam apoiar essas medidas. Mesmo aqueles que temem o excesso de reclamações: o que se espera é que a existência desta possibilidade desestimule a desobediência, e não avalanches de reclamações!
A quem pode interessar jurisprudência permanentemente oscilante? Não ao país, certamente. Mas quem é mesmo que se interessa pelo nosso país?