Os desafios do Brasil relacionados ao sistema carcerário se repetem em outros países da América Latina, como aponta a juíza uruguaia Gabriela Merialdo. A magistrada, que tem experiência na área penal, esteve em Curitiba para participar do I Congresso de Direito Processual, realizado em outubro de 2015. Em entrevista ao Justiça & Direito, a juíza falou sobre as mudanças que o novo Código de Processo Penal uruguaio está trazendo com mudanças no modo de investigação de acusados por crimes, que vai de um sistema inquisitivo-acusatório para um sistema acusatório. Ela frisa que o juiz deve se restringir ao papel de julgar e não se envolver na investigação.
A senhora participou de um debate sobre as perspectivas da Justiça Restaurativa. Há este tipo de medida no Uruguai?
Desde 2014, se está tentando em matéria de infrações à lei cometidas por adolescentes. E, em 2015, pela primeira vez, em uma seção policial, se procurou fazer uma mediação em um problema entre vizinhos e se teve êxito. Desde 1994, funcionam em Montevidéo os centros pilotos de mediação de bairro, que são para situações de problemas de caráter civil, como os de vizinhança. No penal, em 2015, se começou um plano piloto com adolescentes que comentes infrações.
Aqui no Brasil há um movimento para reduzir a idade penal de 18 para 16. E no Uruguai há um movimento semelhante?
Em 2014, junto com as eleições, foi feito um plebiscito para decidir se seria reduzida a idade de imputabilidade de 18 para 16 anos. Mas se manteve 18 anos. Os menores de 18 não vão à prisão, mas participam de medidas educativas, algumas com privação de liberdade, mas o sistema é completamente diferente.
E conseguem no Uruguai conseguem mesmo fazer os centros educativos diferentes das prisões? Aqui no Brasil, o ambiente é muito semelhantes ao das prisões...
Tenta-se, nas situações de privação de liberdade, ao invés de policiais, são educadores. Mas os problemas são muito mais comuns do que a gente imagina. Quando [os adolescentes] estão em privação de liberdade, nem sempre se faz todo o trabalho que se deveria fazer com eles. É um déficit que acho que temos em todos os países.
As legislações penais dos países do Mercosul precisam ser mais harmonizadas?
As normas penais não têm muita diferença. O que é furto aqui também é na Argentina, no Uruguai. O que é lavagem de dinheiro aqui também é lavagem de dinheiro no Chile. Há muita diferença, sim, nos processos, em como são conduzidos. Nisso sim seria necessária uma harmonização. O Uruguai já tem aprovado o Novo Código de Processo Penal, em que introduz variantes qualitativas muito importantes, que acompanham a evolução que está havendo na América Latina de todo o Processo Penal, do processo clássico, inquisitivo ou misto, como temos no Uruguai, em que o início do processo é inquisitivo, porque só o juiz intervém e depois começa a intervir o Ministério Público. Com o novo sistema, que entra em vigor em 2017, se passa do sistema misto, inquisitivo-acusatório, para um sistema acusatório pleno, no qual a investigação fica a cargo do Ministério Público. A um juiz não lhe corresponde investigar. O processo inquisitivo tem essa defasagem, como o juiz que vai decidir sobre liberdade de uma pessoa vai investigar? Se vai passar por um sistema clássico de acusação, em que o Ministério Público investiga, acusa; a defesa defende; e o juiz, imparcial, resolve. É um modelo parecido com o que há no Chile, acompanhando os novos tempos da América Latina. E o mais importante: com papéis bem definidos para cada parte. Agora, neste procedimento que existe, o papel do juiz que investiga e resolve não é claro. Outra coisa importante é dar participação à vítima. Falta se legislar sobre justiça restaurativa, dando possibilidade à vítima, junto com seu agressor, de se chegar a um acordo.
Não há isso no novo código ainda?
Não, não há. E isso é interessante. Mas se pode criar uma lei. Há toda uma tendência em nível mundial, não só na América Latina, mas também na Europa, de que a vista do que vem sendo o fracasso do sistema penitenciário e diante de sua crise. É preciso buscar alternativas que respeitem mais os direitos humanos. Como pode ser que tendo o investigado o direito à presunção de inocência e ao devido processo legal em tempo adequado, antes tenha que cumprir prisão preventiva? Como antes de se definir que é inocente ou culpado, sejam preso em um estabelecimento de detenção, onde são desrespeitados seus direitos humanos. Diante da crise desse sistema penitenciário, todos sabemos que as prisões não reabilitam, não reeducam. Então, o que ocorre se dermos à vítima seu papel e a escutamos?
E como poderia ser feito esse acordo?
Faz muitos anos, viajei ao Chile e o processo acusatório já havia chegado a Santiago – pois foi sendo estabelecido por etapas. Vi uma resolução de litígio muito interessante: uma mulher havia sido vítima de uma agressão pelo marido. Então, ela não queria que ele fosse preso, porque perderia o emprego. Mas ela queria uma compensação moral, porque já se sentia mal. O que ela queria era que o marido lhe convidasse para jantar em um lugar elegante e levasse um buquê de flores. E com isso ela já estaria satisfeita como vítima. Mas nós, como juízes, vemos as coisas de modo diferente. Por isso, é tão importante a Justiça restaurativa escutar a vítima. Uma desculpa pode já ser suficiente. . Não é em todos os casos que a vítima quer que o agressor seja preso. É claro que uma situação de agressão não se resolve só com um jantar, é preciso que uma equipe multidisciplinar faça um acompanhamento. E, naquele caso, o agressor se comprometeu a fazer acompanhamento com uma equipe pelo tempo que fosse necessário. E o acordo é uma alternativa para casos limitados. Não é para todas as situações, como ameaças, agressões e delitos leves. Essa alternativa pode ser aplicada e descongestionar as prisões. Para que a prisão seja realmente um local para pessoas que cometeram delitos graves, como homicídios, extorsões, atos de corrupção graves. Que possam cumprir seu objetivo principal que é a reabilitação e consigam baixar os índices de reincidência.
Então é preciso se levar o contexto muito em conta...
Ontem, na mesa, eu contava sobre um assunto de justiça originária. Um indígena agride fisicamente o outro. Eles vão ao conselho local da tribo que resolve que a pessoa que tinha agredido teria que trabalhar para manter sua família e a família do agredido, enquanto ele se recupera. As duas partes envolvidas haviam concordado com isso. Quando o caso chega ao Judiciário, se diz: “não, aqui há uma pessoa machucada e o agressor tem que ser preso”. Então, ficaram duas famílias em situação de indigência. Cada caso tem sua particularidade e seu mundo. Existem casos em que se pode fazer justiça restaurativa e autocompossição e casos em que não. Não se pode generalizar. E é para delitos leves. Essa é a experiência que se está fazendo no Uruguai, com adolescentes. A partir desse ano, também se está se fazendo nos distritos policiais, com delitos muito leves, como incidentes entre vizinhos. Se resolve a questão sem ter que mobilizar todo um aparato jurisdicional.
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