O primeiro ato do atual Presidente da República, imediatamente depois da posse e, por isso mesmo, carregado de simbolismo, foi a edição da Medida Provisória 727/2016, criadora do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI. Esta MP, posteriormente convertida na Lei 13.334/2016, tem quatro pilares fundamentais, quais sejam: (i) a criação de um programa de investimentos público-privados, cujo escopo é o de (ii) fortalecer a integração entre o Estado e a iniciativa privada, através de (iii) contratos de parceria para empreendimentos públicos de infraestrutura e (iv) outras medidas de desestatização. A palavra-chave que orienta tais vigas de sustentação é investimento: a utilização de capital em determinado negócio, com vistas à obtenção de lucro. Não nos iludamos nem desviemos o foco, portanto.
Bem vistas as coisas, o PPI consubstancia específica tentativa de orientação pública de determinadas ações privadas com importância nacional. O Estado quer organizar certos investimentos prioritários. A competência é privativa da Presidência, que seleciona projetos em setores de interesse público, pretendendo fazer com que os particulares neles invistam. Isso além de outras “medidas de desestatização”: leia-se a transferência de tarefas e responsabilidades, compartilhando-as ou não, do Estado para a iniciativa privada. O Poder Público visa a instalar várias ordens de estímulos econômicos – seja por meio do levantamento de barreiras de acesso a setores públicos, seja através da transferência de bens e serviços hoje de titularidade pública, seja mesmo pela interação em investimentos privados -, a fim de que seja aguçado o apetite animal dos empreendedores em ambientes que hoje lhes são bastante inóspitos.
Na medida em que se auto-intitula de programa, supõe-se ser algo que o governo federal se propõe a executar por meio da sistematização continuada de série de atividades. Não se trata de um só contrato ou de um único projeto, mas sim de sequência organizada e auto-referenciada de investimentos. Por isso, o que se espera é racionalidade sistêmica, com perspectiva macroeconômica. Daí sua centralização na Presidência – que, em tese, tem a visão da floresta.
O programa exige planejamento, portanto: aquela fase mais importante da estruturação de qualquer política pública. O que se imagina é que o PPI não se prestará a contratos circunstanciais, mas sim a empreendimentos estruturais de longo prazo (robustos, de alta complexidade e com significativo volume de investimentos). Importantes o suficiente para serem agraciados com notas distintivas, especialmente em termos de estruturação (arts. 11 a 16) e de liberação/licenciamentos (art. 17). Necessitam, nos termos da Lei 13.334, ser “tratados como prioridade por todos os agentes públicos de execução e controle” (art. 5º), de todas as pessoas políticas. A omissão, a desídia e a ineficiência foram banidas, sob pena de responsabilização dos agentes.
O que demanda o seguinte alerta: o PPI dirige-se não só a negócios públicos de infraestrutura celebrados pela União (bens e serviços federais), mas também a projetos que, por delegação ou com fomento da União, sejam executados por Estados, Distrito Federal e Municípios – além de outras medidas especificamente previstas no Programa Nacional de Desestatização. Por conseguinte, há três possibilidades de sua aplicação: a primeira, relativa a assuntos primariamente federais relativos a contratos de parceria e/ou de desestatização (negócios celebrados diretamente com a Administração Pública federal, direta e indireta); a segunda, vinculada a delegações de bens e serviços federais a outras pessoas políticas (por exemplo, rodovias e portos, nos termos da Lei 9.277/1996); a terceira, mais interessante e desafiadora, pertinente a empreendimentos implementados também por outras pessoas políticas “com o fomento da União” (ações de estímulo e incentivos implementadas pela Administração estadual, distrital ou municipal, mas apoiadas – financeira ou tecnicamente – pelo governo federal).
Digo que de todos o fomento é o mais provocador porque pode dar asas à criatividade e envolver não só as tradicionais técnicas premiais a investimentos privados em bens e serviços de titularidade do beneficiado (ou em ativos do setor público), mas também – por que não? – em bens e serviços de titularidade de terceiros. O Estado a fomentar que pessoas privadas façam investimentos pertinentes à infraestrutura que não ocupem – física ou juridicamente – o espaço público. Dois exemplos: portos privados e redes de tubulação para o transporte de minerais e/ou produtos agrícolas (álcool, sementes, etc.). Aqui, o fomento pode consubstanciar justamente as medidas modeladoras da propriedade privada de terceiros.
Todos estes empreendimentos públicos (ou privados de relevante interesse público), a ser executados por particulares, são genericamente denominados pela Lei 13.334, em seu art. 1º, § 2º, de “parcerias” (“a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante.”), a abranger negócios jurídico-administrativos típicos e atípicos. Isto é, tanto aqueles com descrição minuciosa em leis anteriores como os que lhes sejam analógicos. Foi criada categoria genérica, abrangente e autorizadora da constituição, via decreto e/ou editais, de novas formas negociais que não as tipificadas em leis.
De igual modo, o PPI exige medidas proativas de controle – tanto as internas aos atos e contratos administrativos, que disciplinam o exercício do poder-dever administrativo (sobretudo os Tribunais de Contas) como as externas à Administração, mas pertinentes ao exercício do poder econômico dos agentes privados (aqui entra em cena, com papel de destaque, o CADE). O mesmo se diga do reforço às autoridades reguladoras (em especial as agências). A ampla, prévia e transparente convivência com tais órgãos não é opcional, mas decorre de previsões legais expressas (Lei 13.334, art. 2º, inc. V, e art.6º, incs. I, III e IV).
De qualquer modo, importa dizer que o PPI não se destina a todo e qualquer contrato administrativo, mas sim se limita àqueles que sejam estratégicos (que se prestem a determinados objetivos, os quais não se exaurem na parceria em si mesma, mas na aplicação eficaz de recursos e na ampliação de condições favoráveis) e que digam respeito à infraestrutura nacional (os bens e serviços que constituem o suporte de toda a economia: água, transportes, energia, telecomunicações, minerais, alimentos, defesa, etc.). O que assume especial destaque em vista das competências centralizadas na Presidência – como será visto ao final deste artigo.
Dentre os objetivos e princípios do PPI (arts. 2º e 3º), dois se destacam, pois incorporam preocupações advindas da experiência pretérita: o primeiro, trata das “tarifas adequadas” para a remuneração do serviço prestado (art. 2º, inc. II). Isto é, não mais se prescreve a “modicidade tarifária” (Lei 8.987/1995, art. 6º), mas sim a “adequação tarifária”. Isso não significa dizer “tarifas abusivas”, mas sim que elas precisam existir em perfeita conformidade com os bens e serviços colocados à disposição do usuário. Existe a garantia de que as tarifas devam ser proporcionais ao investimento, a fim de se amoldar às características do empreendimento e, assim, inibe-se arroubos populistas/intervencionistas, que muitas vezes pretendem transformar tarifas em indenizações via precatórios.
Em conjugação a essa característica, o inc. IV do art. 2º assegura “a estabilidade e a segurança jurídica, com a garantia da mínima intervenção nos negócios e investimentos”, qualificada pela “garantia da segurança jurídica aos agentes públicos, às entidades estatais e aos particulares envolvidos” (art. 3º, inc. III). O que significa prescrever a segurança – objetiva e subjetiva – do pacto, reforçando sua estabilidade, tranquilidade e firmeza (mas sabedor de que a intervenção é algo ínsito aos contratos administrativos). A intervenção nas parcerias precisa ser, acima de tudo, sensata – com o escopo de preservar a continuidade do empreendimento. Tal estabilidade também é forte no art. 6º, inc. I, que exige “planos, regulamentos e atos que formalizem e tornem estáveis as políticas de Estado”.
Ao que se infere, essa concepção programática já começou a tomar corpo em 1º de novembro deste ano, por meio da edição do Decreto 8.893. O artigo 1º deste decreto constitui (“qualifica”) 18 (dezoito) empreendimentos públicos dos setores de energia e mineração como de “prioridade nacional”. Vejam bem a relevância disso: outrora empreendimentos de interesse público ordinário, passaram a ser prioritários e precisam ser assim tratados em decorrência do princípio da legalidade e da eficiência. Assim reza a Constituição; assim determina a Lei 13.334/2016.
Isto torna tais 18 empreendimentos aptos a integrar o PPI e a se submeter à respectiva regulamentação. Estamos falando de blocos e campos de petróleo e gás natural (regime de concessão e de partilha); de concessão de distribuição e geração de energia elétrica (inclusive com a desestatização – leia-se privatização material, com a transferência da titularidade de bens e serviços -; e de ativos de projetos de exploração de minerais (fosfato; cobre; chumbo; zinco e carvão). O que importa dizer que a primeira fase do PPI está instalada: cabe ao governo federal transformá-la em realidade (apesar de circunscrita a projetos hoje de titularidade pública, exclusivos dos setores de energia e mineração).
Porém, a pergunta lançada no título deste artigo ainda inquieta alguns setores da economia nacional. Afinal, se o PPI é tão espetacular assim, por que o circunscrever a determinados projetos escolhidos a dedo pelo Presidente da República? Isso não representaria excessiva centralização estatal, na pessoa do chefe do Executivo, outorgando-lhe ainda maiores poderes econômicos? Em parte, essas inquietações são verdadeiras: num primeiro momento, esse é o diagnóstico. Porém, fato é que o País carece de planejamento econômico e coerência nas ações estatais de longo prazo. Talvez seja uma boa oportunidade para se testar este novo modelo de contratação pública a número limitados de empreendimentos – a gerar uma experiência que, se exitosa, poderá desdobrar-se em outros setores. É o que se espera.
*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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