A Constituição Federal brasileira é bastante criticada pela quantidade de emendas que recebeu desde sua edição, em 1988. Já Constituição dos Estados Unidos, que é do século 18 e passou por muito menos alterações, é frequentemente citada em comparações como exemplo positivo de prudência nas emendas. Contudo, juristas norte-americanos têm críticas às dificuldades para modificar o texto constitucional de seu país, como os professores Frank Michelman e Sanford Levinson, que estiveram em Curitiba no final de 2014. Eles vieram para participar da mesa-redonda “Instituições, Constituição e População”, organizada pelo Programa de Pós-Gradução em Direito da Unibrasil. Os dois professores concederam uma entrevista conjunta ao Justiça & Direito em que falaram sobre seus campos de estudo e sobre a Constituição de seu país.
Professor Michelman, o senhor é um pesquisador do constitucionalismo sul-africano. Como surgiu o interesse por ese tema?
Michelman: Quando eu fui convidado para ir à África do Sul, eles tinham acabado de começar a transição para uma nova ordem constitucional. Fui convidado para organizar algumas discussões lá, que envolveram juízes, advogados, professores de direito, que tinham pouca experiência anterior na lida com uma constituição que contivesse direitos fundamentais e limitação dos poderes estatais. O antigo sistema dava total supremacia ao governo. As cortes tentavam dar interpretações diferentes para a lei, mas não havia uma constituição com princípios, direitos e limites a serem respeitados. Eles queriam trocar impressões com professores dos Estados Unidos que têm essa experiência. Consequentemente, eu me interessei muito pelo constitucionalismo do país e me considero um “kibitzer”
(expressão em inglês que define a pessoa que em jogos de cartas apenas observa os movimentos dos jogadores e faz comentários). Desde 1995, eu escrevi sobre o assunto, participei de conferências e creio ter feito contribuições acadêmicas para o constitucionalismo local.
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Frank Michelman
- Professor da Universidade de Harvard
- Integrante da Academia Americana de Artes e Ciências
- Foi presidente da Sociedade Americana de Filosofia Política e do Direito (1994-1995)
- Recebeu o prêmio Brigham-Kanner de direitos de propriedade (2004)
- Recebeu o prêmio de direito da Sociedade Americana de Filosofia (2005)
- Foi co-organizador de conferencias para estudo de direito constitucional da África do Sul, organizado pela Universidade de Witwatersrand.
A Constituição de lá conseguiu unir um país dividido durante anos pelo apartheid?
Michelman: Acho que não sabemos a resposta ainda. Havia uma divisão entre os comandantes do partido antes da reforma constitucional e as vozes democráticas que eram contrárias ao apartheid. Acho que, se houver falhas, não será porque os ideais de uma democracia constitucional não são compartilhados pelos setores intelectualmente avançados da África do Sul. Os meios e estilos do agir judicial trazidos pela constituição se misturam com o conhecimento tradicional sul-africano da população. Ainda que o texto constitucional seja muito especial em alguns pontos, como a atenção para direitos sociais, distribuição de renda e equidade, ela é uma constituição ocidental, com instituições e categorias típicas do ocidente. Não está tudo resolvido ainda, se eu tenho alguma preocupação sobre o sucesso da Constituição sul-africana, não seria a disputa entre democratas e igualitários de um lado e conservadores do outro. Isso não é um problema. A questão entre o estilo moderno e ocidental de direito e algo diferente que não consigo fingir entender, mas parece confortável para a população, é que intriga.
Professor Sanford Levinson, o senhor escreveu um livro sobre a constituição não democrática. Quais são os aspectos da Constituição norte-americana que o senhor classifica desse modo?
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Sanford Levinson
- Professor da Universidado Texas
- Integrou o departamento de política da Universidade de Princeton
- Professor visitante nas universidades de Boston, Georgetown, Harvard, New York e Yale
- Filiado ao Instituto de Filosofia Judaica Shalom Hartman, em Jerusalém
- Membro do Instituto Americano de Direito
- Integrante da Academia Americana de Artes e Ciências
- Recebeu o prêmio para a área do direito da Associação Americana de Ciência Política em 2010
Levinson: A pergunta correta deveria ser quais partes não são antidemocráticas. Dois exemplos são muito fáceis. Um é o Senado americano, no qual cada estado tem dois senadores. A população do estado de Wyoming é um 1/70 da população da Califórnia, mas ambos têm a mesma representação no Senado. Se você olhar para a eleição de 2014 nos EUA, a ascensão do partido republicano é causada por um punhado de eleitores. Curitiba é quase três vezes maior que os estados do Alasca e de Dakota do Sul, dois estados nos quais saíram senadores democratas e entraram republicanos. Outro exemplo é o quão difícil é emendar a Constituição.
Que tipo de dificuldades ?
Levinson: Acho que de um ponto de vista prático é basicamente impossível. Você precisa da aprovação de dois terços de cada casa do Congresso. Desse modo, se 14 estados pequenos, nenhum dos quais maior que Curitiba, se opuser à proposta, ela não será aprovada. Mesmo se passar pelo Congresso, ainda é preciso apoio de três quartos dos estados da federação para qualquer emenda. As consequências não são apenas que a Constituição não foi alterada em temas relevantes desde 1952, mas também mostram que as pessoas não pensam em mudanças constitucionais. Elas reconhecem que é quase impossível, então elas não vão gastar tempo, dinheiro e energia trabalhando para emendar a Constituição. Alguns políticos, de maneira demagógica, vão apoiar emendas que tornem crime queimar a bandeira nacional ou algo inconstitucional como a proibição dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Está muito claro que não há possibilidade de três quartos dos estados ou dois terços dos congressistas apoiarem algo assim. É só para jogar para a plateia. Um pensamento constitucional sério, que trate das estruturas, não está ocorrendo. Os mandatos vitalícios são antidemocráticos, porque permitem um controle sem fim da formação da corte. Defendo mandatos de dezoito anos para a Suprema Corte e acho que o país pensa assim. Mas não há discussão séria sobre isso porque seria muito difícil mudar o texto constitucional.
Aqui no Brasil nossa Constituição é de 1988, e temos a críticas de que as 84 emendas feitas até hoje são demais...
Levinson: Isso é muito interessante nos estados dos EUA e uma crítica que alguns fazem é que eles têm muitas emendas. E as pessoas falam: “olhem as Constituição dos EUA que tem 27 emendas, 10 feitas em 1791”. Então foram 17 emendas nos últimos 225 anos. Eu acho que são muito poucas, porque também tivemos a Guerra Civil, que matou muitas milhares de pessoas, em parte porque não havia outro caminho para resolver a questão da escravidão. Acho que uma constituição que é emendada dezenas de vezes por ano provavelmente está sendo emendada com muita frequência. Mas acho que a Constituição dos EUA tem sido emendada com muito pouca frequência. Voltando à Constituição de 1988 [do Brasil], 84 emendas seriam mais ou menos três por ano. Este é um país de 200 milhões de pessoas, tão grande como os EUA, dominando o continente geograficamente e economicamente. Por que ninguém pensaria que a Constituição feita há 25 anos não precisaria de mudanças? Nós temos que aprender lições das experiências. Você pode descobrir, ainda que depois alguns anos, que essa decisão fez muito sentido. Veja: o modo como elegemos presidente permanece bizarro, mas era ainda pior na constituição original. E a resposta foi o 12º emenda, que foi uma resposta à realidade concreta ao fato de que o modo original com elegíamos presidentes não fazia sentido e alguma coisa precisava ser feita. Eu precisaria saber muito mais sobre a constituição brasileira para poder criticar e dizer se tem muitas emendas ou não. Mas se você me dissesse que editaram a Constituição em 1988 e só a emendaram uma vez eu iria me surpreender: por que tão pouco?
Qual seu ponto de vista sobre o assunto, professor Michelman?
Michelman: Na situação americana há um procedimento que demanda muito, precisa de dois votos das duas casas, de petições dos estados. Do momento em que os estados apresentam as petições até o momento em que a casa devolve a matéria, a constituição está em branco. Mesmo quando há algo errado, mesmo que tenha algo que sabemos como consertar , mesmo que eu possa mostrar isso no texto, dificilmente mexeremos.Isso se refere particularmente quando falamos sobre direitos. Se você tentar mudar a primeira emenda, por exemplo, que é sobre liberdade de expressão, será muito difícil. Nos preocupamos muito em ter liberdade para nos expressar.