O conhecimento do Direito requer o diálogo com outras áreas do conhecimento e, na História do Direito, esse diálogo se dá de forma mais natural e, ao mesmo tempo, muito necessária. É o que defende o cientista político Christian Lynch, um dos convidados do VIII Congresso Brasileiro de História do Direito, realizado em Curitiba em setembro. O acadêmico, que alia formação em direito aos estudos da área políticos, faz uma análise articulada da realidade brasileira.
Sem apontar vilões ou mocinhos, ele ressalta a necessidade de alternância no poder. Durante a conversa com o Justiça & Direito, ele também fez uma análise dos papéis que estatistas e liberais têm na sociedade brasileira e como isso tem influência na formação política do país.
- Naturalidade: Rio de Janeiro-RJ
- Currículo: graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; mestre em Direito pela PUC-RJ; doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; professor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ ); coordenador da Área Temática de Pensamento Político Brasileiro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e membro da diretoria do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD)
- Autores que o inspiram: Xavier Sebastian, Wanderley Guilherme dos Santos, José Munis de Carvalho
- Nas horas vagas: gosta de ficar com a esposa e com o filho
Qual é a importância de estudar a História do Direito?
Essa é uma pergunta que demanda várias respostas alternativas. Eu acho que o aprendizado da História do Direito, em primeiro lugar, tem um efeito profilático na área jurídica, porque o ensino jurídico é muito voltado para a área prática e carece muito de uma atenção reflexiva. A História do Direito fornece àquele que a estuda uma dimensão sobre o Direito, assim como outras disciplinas: Direito Dogmático, Sociologia Jurídica e Filosofia do Direito. Você consegue ver o fenômeno não isolado, mas no seu contexto social e econômico, sobretudo no caso específico da História do Direito, no tempo. Acho que a história tem um segundo efeito profilático na área, que combate certa normativa do direito – não da estrutura jurídica em si, que é normativa porque se estudam normas – mas da ideia de que o Direito é sempre pensado como um instrumento de modificação da realidade. Nisso o estudo da História do Direito mostra que aquilo que pensam, que o direito serve apenas para fazer justiça, aquilo que devia ser feito ou não devia mudou muito com o tempo. O estudo serve para mostrar que continuará mudando. Então é possível ter uma compreensão muito maior do que aquela que se tem numa perspectiva ahistórica do direito.
Quais traços políticos de outros momentos históricos do nosso país podemos apontar como de grande influência sobre o nosso momento?
É uma resposta difícil. Do ponto de vista da luta política eu acho que uma das dimensões que marcam a atualidade brasileira é o acirramento das disputas político-partidárias e a criação de uma dicotomia marcada por uma popularização muito forte do campo político. O que há, na verdade, nesse sentido que a história no Brasil ajuda a explicar essa popularização é, de um lado, uma estruturação dicotômica do campo político, que vem da própria formação do país. Há uma oposição entre o pensamento que vou chamar de “nacional-estatista” – que ao contrário do que se pensa não data da era Vargas –, mas sim do despotismo ilustrado do século 18, que foi a primeira ideologia de modernização pelo alto e teve uma grande penetração nas áreas periféricas e atrasadas da Europa daquela época. Parte da Itália, Rússia, que preconiza, na verdade, uma ação do próprio Estado sobre a sociedade a fim de modernizá-lo, uma coisa incompreensível no mundo anglo-saxão.
E qual o papel do Estado nesse contexto?
O Estado é visto como sendo uma espécie de motor da mudança social, isso fica claro no caso português, no estudo de uma personalidade como Marquês do Pombal. De alguma maneira, o Brasil herdou a maneira de pensar sua própria sociedade, até mesmo o liberalismo, esse pensamento nacional-estatista se mistura com o nacionalismo, que preconiza o papel do Estado como motor dessa mudança social, e quanto mais atrasado o país é, mais força tem essa ideologia. Esse pensamento foi responsável por uma das melhores mudanças que aconteceram na história brasileira, nós podemos pensar a construção do Estado Nacional no começo do segundo reinado, na era Vargas e a industrialização. Acho que estamos em um momento de desbotamento da verdade tal como ela foi inventada no começo do segundo governo Lula. Pode-se dizer que o atual governo desmoralizou o nacional desenvolvimentismo e o nacionalismo na eleição do ano passado, na completa transformação da sua pauta de um ano para o outro depois da eleição.
E o que há do outro lado dessa estruturação dicotômica?
Do outro lado, há essa ideologia que podemos chamar de liberal, que reivindica os direitos da sociedade, a sua autonomia, a necessidade de tornar o Estado dependente da sociedade. Os dois lados, na verdade, têm prós e contras na maneira de pensar. O excesso de nacional-estatismo leva eventualmente ao regime autoritário. E o excesso de visão liberal, que muitas vezes é bom, porque é indispensável no mundo de participação política e democracia, no caso brasileiro muitas vezes tende para o lado oligárquico. Quando olhamos essa formação, conseguimos entender melhor essa polarização que existe hoje. Isso decorre do fato de que pela primeira vez a gente tem um governo de esquerda no poder e que está no poder há tempo demais. Seu próprio projeto político se esgotou, se deteriorou, se erodiu. O que fica na verdade é a ideia de que os representantes históricos das duas tendências devem se alternar no poder. Mas isso é apenas uma dialética, não tem uma que está certa e uma que está errada, depende do andamento da cena política brasileira.
Como você vê hoje as liberdades dentro da nossa sociedade, em comparação com outros momentos históricos e com os ideais de liberdade. A gente pode dizer que é uma sociedade avançada?
As sociedades periféricas que saíram da colonização, como o Brasil, têm um andamento diferente das sociedades antigas europeias. A respeito especificamente dessa questão, o que se pode dizer é que é uma característica dessas sociedades em que o aparato jurídico-político, as declarações de direito e as constituições encontram uma sociedade muito diferente, mas elas são trazidas para cá como indutoras do processo de modernização também. O que há de mais comum e natural é o contraste entre o aparato jurídico-político moderno com uma sociedade que é muito atrasada, e a ideia de que existe um descompasso muito grande entre as duas coisas. Entre aquilo que podemos chamar de país real e aquilo que chamamos de país legal. Quantas vezes você não se deparou com a ideia de que a Constituição determina alguma medida que não encontra nenhum respaldo na realidade? É isso a que eu me refiro, esse ato de que o país legal é o país real, sendo uma característica de todos os países periféricos, sobretudo aqueles que saíram de uma colonização. O que acontece é que com o tempo isso vai mudando, a todo tempo você tem uma elevação paulatina desse país real à altura do país legal, toda história desses países é de progressiva efetivação dos direitos de efetivação da liberdade. O mesmo direito que já existia há 200 anos, 100 anos no ordenamento constitucional vai recaindo cada vez mais sob o conjunto da população.
É como se Constituição fosse uma meta e não um fato?
Exatamente. Mas isso foi dito por um intelectual brasileiro famoso, que é o Euclides da Cunha, quando ele se refere à nossa primeira constituição, ele o faz assim: “Puseram o marco lá na frente, estamos ainda agora penando para conseguir alcançá-lo”. As formas chegam antes das substâncias. O que a gente pode dizer hoje é que, quando olhamos a história constitucional brasileira de uma perspectiva de longa duração, o que vemos na verdade é cada vez mais essa sociedade se apoderando do aparato jurídico estatal. Na verdade a sociedade vai elevando ao nível dessas liberdades. Certamente o Brasil nunca esteve numa situação tão privilegiada do ponto de vista do gozo das liberdades, das garantias e do acesso à justiça. Mas é claro que ainda há esse setor dos menos favorecidos, onde esse acesso a esses direitos ainda é muito precário. Nós vemos na onda de violência, precariedade do direito à vida, das garantias trabalhistas e do direito à educação. Mas se espera que esse “progresso” continue, e isso vai continuar existindo. É o processo natural de equalização das condições de vida.
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