O crescimento das bancadas religiosas em assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados tem levado cada vez mais a Justiça Eleitoral a ter que avaliar se há abuso por parte dos candidatos que se utilizam das denominações religiosas para conseguir votos. Para a advogada especialista em direito eleitoral Maria Cláudia Pinheiro, se não houver coação dos fiéis, os religiosos têm direito a pedir apoio político defendendo suas bandeiras, assim como os integrantes de outros movimentos sociais.
Maria Cláudia ressalta que a participação política é um direito fundamental, que deve ser garantido independentemente da corrente ideológica que o candidato segue, seja um pastor evangélico ou um líder do movimento LGBT. A advogada concedeu entrevista ao Justiça & Direito quando esteve em Curitiba durante o V Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral.
Como é possível definir o abuso do poder religioso?
O tema é novo, até porque não há legislação sobre isso. A nossa legislação fala de abuso de poder econômico, abuso de poder político, uso indevido dos meios de comunicação, mas nunca o legislador se ateve, se deu conta da ascensão espiritual desempenhada pelos líderes religiosos. Então, esse debate é muito contemporâneo com o crescimento das bancadas evangélicas nas Assembleias Legislativas e na própria Câmara dos Deputados. Na medida em que esses grupos foram ganhando importância, deslocou-se uma atenção maior à forma como as igrejas estavam conseguindo eleger tantos representantes. A verdade é essa. Definindo em poucas palavras a questão do abuso do poder religioso: seria o uso das igrejas, ou dos movimentos religiosos, como uma forma de desequilibrar o processo eleitoral em favor dos candidatos que essas igrejas apoiam.
Há uma pré-compreensão pejorativa, digamos assim, no que se refere às igrejas. A partir do momento em que nós colocamos a igreja como um grupo de interesse como outro qualquer, esse mito cai
Na prática, como esse tipo de abuso é configurado?
Os holofotes se voltaram para a questão dos cultos, dos encontros religiosos, porque, de fato, as igrejas têm uma capacidade de mobilização de pessoas muito importante, muito expressiva. Nesse momento, considerada essa capacidade de aglomeração e de aglutinação de pessoas e o vínculo que se estabelece entre os fiéis e os líderes – pastores ou padres –, é que se começou a discutir se essas autoridades estariam ou não conduzindo de uma forma coercitiva ou impositiva a votação dos fiéis.
A senhora faz uma comparação com movimentos sociais que apoiam candidatos financeiramente e não sofrem essa “perseguição”...
Esse é o grande ponto que defendo, e que as entidades de defesa da liberdade religiosa defendem também. Não se pode privar um grupo – porque no fundo é um grupo, e as igrejas são entidades de direito civil – de participarem politicamente unicamente porque eles têm uma vinculação religiosa. O direito de participação política é direito fundamental.
É interessante mas essa tentativa de blindar o processo político da religião existe em vários países. Portugal,
por exemplo, tem um artigo na Constituição que veda partidos políticos a utilizarem símbolos, expressões ou bandeiras que remetam a movimentos religiosos. Então, por exemplo, lá em Portugal não pode ter o Partido Social Cristão (PSC), ou o Partido da Democracia Cristã, que nós temos aqui... Partidos com bandeiras religiosas. Quer dizer, até porque a nomenclatura expressamente diz assim. Mas eu entendo que não, não é possível você privar esses movimentos da possibilidade de desejarem ser representados.
E por que não podem ser privados?
O que é o processo eleitoral e a representação política, em última instância? São as parcelas da sociedade buscando serem representadas nas Casas Legislativas e no Poder Executivo. É isso que é a democracia representativa. E por que os movimentos religiosos não podem? Por que um líder religioso que defende pautas políticas e morais – contra o aborto, por exemplo – não pode defender a bandeira dele? Uma entidade de defesa do agronegócio pode apoiar e defender candidatos que defendam as pautas do agro business, e por que a igreja não pode?
Há resistência especificamente com as igrejas?
Há uma pré-compreensão pejorativa, digamos assim, no que se refere às igrejas. A partir do momento em que nós colocamos a igreja como um grupo de interesse como outro qualquer, esse mito cai. É claro que existe
uma ascensão inequívoca do líder religioso. Se ele se valer dessa ascensão pra aniquilar a vontade dos fiéis, de alguma forma intimidar, ameaçar, com sanções espirituais, com expulsão da igreja, com excomunhão... Se isso acontecer, aí sim há uma deturpação daquela autoridade espiritual. Mas, por exemplo, eu nunca vi...
Estamos, no limite, tolhendo determinadas pessoas de um direito fundamental, de participação política, unicamente porque ele é uma liderança religiosa
E já há casos de abuso do poder religioso na Justiça Eleitoral?
Já há vários casos na Justiça Eleitoral de parlamentares cassados. Nunca vi uma ameaça de um pastor, num confessionário, uma intimidação. Vejo pastores pedindo voto, pastores defendendo uma candidatura. Isso pode. O abuso extremo é que seria a deturpação dessa autoridade espiritual.
Então, influenciar, diretamente pedir, não seria o problema. O problema seria a coação?
No meu entendimento, sim. Se eu posso criar uma entidade de defesa dos direitos da mulher, posso reunir pessoas em torno da minha causa, posso pedir votos pra um parlamentar, um candidato que defenda essa agenda, por que um pastor não pode? Estamos, no limite, tolhendo determinadas pessoas de um direito fundamental, de participação política, unicamente porque ele é uma liderança religiosa. E isso é uma discriminação religiosa, inequivocamente.
E a jurisprudência tem isso nesse sentido?
Não. O TSE ainda não tem jurisprudência na matéria, na verdade. Mas há decisões de Tribunais Regionais Eleitorais. Poderia citar o de Alagoas; poderia citar o do Paraná, reconhecendo, que um pastor não pode pedir voto. Que em uma missa campestre, aberta, o pastor não pode pedir apoio. É um entendimento que o TSE não se posicionou definitivamente, mas é um entendimento perigoso, entendo eu. Mas a questão, como é nova, ainda é muito indefinida na jurisprudência.
Você arriscaria um palpite no rumo que o TSE vai tomar?
É difícil palpitar. Até porque a composição da Justiça Eleitoral é variável, por conta da temporariedade do mandato dos seus integrantes. Mas o TSE, se eu pudesse chutar, pela sua composição mais rigorosa – hoje, inequivocamente, nós temos uma composição muito rigorosa –, eu acho que a tendência é não dar muita margem pros líderes religiosos, não.
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