| Foto: Pedro Serapio/Gazeta do Povo

O Brasil é o país em desenvolvimento com mais demanda nos contenciosos na Organização Mundial do Comércio (OMC) e, além disso, é uma voz importante sempre requisitada a se posicionar diante de grandes temas. Esse panorama foi apresentado pelo diplomata Celso de Tarso Pereira, que atua na área de solução de controvérsias na OMC. Durante entrevista ao Justiça & Direito, ele explicou o funcionamento da entidade em que atua, o desenrolar da Rodada de Doha e demonstrou um pouco do que deve ser o clima da Conferência Ministerial da organização, que será realizada de 15 a 18 de dezembro em Nairóbi, Quênia. Enquanto muitos países estão céticos, a diplomacia brasileira mantém o posicionamento de que deve haver a definição de um acordo na Rodada. Pereira, que é paranaense, também contou como escolheu e ingressou na carreira diplomática e a influência de seu pai, o ministro Milton Luiz Pereira, em sua vida.

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Ficha Técnica
  • Naturalidade: Campo Mourão, PR
  • Currículo: graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Direito Internacional pela Christian-Albrechts-Universität zu Kiel (Alemanha), é diplomata do Ministério das Relações Exteriores desde 1996, e atualmente está na Missão do Brasil na OMC
  • Diplomata que o inspira: Roberto Azevedo, embaixador.
  • O que está lendo: O homem que amava os cachorros, Leonardo Padura; The White Tiger, Aravind Adiga; A Capital da Solidão, Roberto Pompeu Toledo
  • Nas horas vagas: gosta de caminhar por Genebra, ler e assistir a séries de TV

Qual a sua avaliação sobre a posição do Brasil no âmbito da OMC? Que tipo de player o país é?

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O Brasil é um sócio fundador desde o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), desde 1947, e um membro original da OMC, que foi criada em 1995. Diferente de China e Rússia, que entraram depois. Na OMC, o Brasil atua na frente negociadora, que é amplíssima, e na área de defesa de seus interesses no Sistema de Solução de Controvérsias.

Quais as principais negociações realizadas no âmbito da OMC?

A OMC tem 13 acordos que entraram em vigor em 1995 e que regem o comércio mundial, como o acordo de agricultura, o de serviços, o de propriedade intelectual e o antidumping. O objetivo, além de aplicar as regras que já existem, é sempre negociar novas regras e concluir a Rodada de Doha, que começou em 2001 e ainda não terminou. Apesar de a OMC ser uma organização muito eficiente, ela ainda não concluiu

novos acordos. Tudo que é decidido na OMC é por consenso. Para fazer os 161 membros chegarem a consenso é difícil. Mas, em Bali, há dois anos, conseguimos aprovar um acordo grande, que é o Acordo de Facilitação de Comércio, cujo objetivo é desburocratizar o Comércio Exterior. Isso é uma coisa muito boa, pois permite destravar a exportações, importações. Mas todos os outros temas da Rodada de Doha estão travados. Quais são eles? Basicamente, reforma do acordo agrícola, barreiras industriais e serviços.

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E qual o papel do Brasil nessas negociações?

O Brasil é um dos membros-chave de qualquer negociação na OMC. Por que? Pela própria extensão, pelo mercado consumidor de 200 milhões [de pessoas], mas, muito mais do que isso, pela atuação do Brasil desde sempre, no GATT e na OMC. É Tanto que temos hoje um diretor geral brasileiro [o diplomata Roberto Azevedo]. Então, os 161 países, não se encontram a todo momento. Há vários órgãos e várias maneiras de negociar, em grupos com todos e em grupos menores. De acordo com o tema, haverá um grupo representando aqueles interesses. Mas todos têm que concordar em alguma coisa. Todos têm que ganhar, mas todos também têm que conceder. O Brasil, pela sua atuação, sempre é visto como um articulador de consenso, que é o que se precisa na OMC. É um país em desenvolvimento muitíssimo importante que sempre tem algo a dizer e os países querem ouvir o Brasil. É visto como uma voz da moderação e um articulador do consenso. É lógico que isso é difícil porque o comércio mundial tem algumas distorções. Na área industrial, tem acordos muito rígidos, muito elaborados e que dificultam a concessão de subsídios para a indústria. Já para área agrícola, é o inverso. União Europeia, Japão, Estados Unidos etc. dão bilhões em subsídios. O Brasil não dá. E no comércio mundial os países em desenvolvimento são mais competitivos onde? Na agricultura. E os desenvolvidos são mais desenvolvidos na indústria. Então, há uma distorção.

E como compensar essa distorção?

O que se teria que fazer é perfeiçoar as regras do comércio agrícola para que os países em desenvolvimento, que têm essa vantagem comparativa na agricultura, como o Brasil, pudessem ocupar mais espaço, vender mais. Só que quando se tenta vender para a União Europeia não se consegue. Tudo que o Brasil produz encontra algum tipo de barreira na União Europeia. Na outra direção, a industrial, em que países como Brasil e Argentina estão tentando se desenvolver, é inevitável que em algum momento se tente ajudar a indústria nacional a crescer ou que se queira dar um subsídio. Aí não pode. Então, há essas distorções. E o grande objetivo da Rodada de Desenvolvimento de Doha é a agricultura. Dentro disso, o Brasil é o principal país que está advogando, contra a resistência dos demais. É um trabalho dificílimo. Nós precisamos regulamentar melhor o comércio agrícola, impedir o apoio distorcivo agrícola. O Brasil é chamado a todas as reuniões e todos querem ouvi-lo. Temos que ser propositivos, criativos e inovadores. Só que se os EUA, ou a China, ou a Índia, ou União Europeia disser não, não tem o que fazer. Enfim, o Brasil tem essa posição tradicional de articulador de consenso, é um forte demandador do setor agrícola. E diz, inclusive, que a Rodada de Doha não pode se concluir sem um resultado substantivo. Todo mundo sabe que o resultado provavelmente será de baixa ambição, mas ele tem que ter alguma substância.

O grande objetivo da Rodada de Desenvolvimento de Doha é a agricultura. Dentro disso, o Brasil é o principal país que está advogando, contra a resistência dos demais

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Há uma perspectiva de conclusão da Rodada de Doha?

A pergunta é simples, a resposta é dificílima. Eu diria que a expectativa é baixa. Desde 2008 se está tentando, foi quando quase chegamos, escorreu pelos dedos. Havia a expectativa de todo um arcabouço, a expectativa de um acordo. E, no finalzinho, por um desentendimento não deu certo. A rodada anterior, que é a do Uruguai, durou 8 anos, de 1986 a 1994. Então, a perspectiva eram 8, 10 anos. Mas já foram 14 anos. A cada ano se tenta. Hoje, os negociadores estão cansados e céticos. Se agora em dezembro, na conferência em Nairóbi, Quênia, não der certo, muitos países prefeririam dizer que acabou. E o Brasil diz: “não será assim, precisamos dar uma resposta”.

Qual a área a que o senhor se dedica mais especificamente na OMC?

Eu acompanho especificamente a área de solução de controvérsias. Eu fui coordenador geral de contenciosos do Itamaraty, ou seja, a área, criada em 2001, para acompanhar as disputas do Brasil na OMC e coordenar esse esforço do governo brasileiro. Agora estou em Genebra também cuidando disso. E, lá atrás, também cuidei das disputas do Brasil no Mercosul.

Com relação aos contenciosos em que o Brasil está envolvido, o país demanda na maioria dos casos...

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Quando um membro da OMC percebe que outro país está descumprindo as regras de um acordo, pode negociar, consultar e, se ao final esse país não corrige, existe um processo, um sistema de solução de controvérsias que pode ser acionado. E isso não pode passar despercebido: é o mais eficaz sistema de solução de controvérsia que existe no mundo e com muitos casos. Por exemplo, a Corte Internacional de Justiça de Haia, desde o pós-Guerra, em 60 anos, julgou cerca de 160 casos. A OMC está chegando no caso 500. O Brasil é o país em desenvolvimento que mais atua no sistema. Ele vem, em número de casos como demandante, logo atrás de Estados Unidos, União Europeia e Canadá. Se considerar também casos como demandado e terceiras partes, o Brasil é o sétimo. Isso tudo começou pela experiência do caso Embraer X Bombardier, caso crítico, em que estava em jogo um símbolo da tecnologia brasileira. O Canadá entrou contra o Brasil e ganhou, nós em seguida empatamos e salvamos a Embraer. Depois disso, o Brasil ganhou experiência, e foi abrindo casos fundamentais para a salvaguarda dos interesses nacionais. E não no abstrato, mas concreto, significa dinheiro, empresas, empregos e abertura de mercados.

A OMC tem o mais eficaz sistema de solução de controvérsias que existe no mundo.

Poderia citar alguns exemplos desses casos?

Por exemplo, o caso contra subsídios agrícolas ao açúcar, da UE e do algodão, contra os EUA. A gente demonstrou que a UE dava subsídios proibidos na produção de açúcar, o que levava a UE a produzir muito e invadir os mercados mundiais e o Brasil tinha dificuldade para vender. Brasil ganhou, o que significou 5 milhões de toneladas anuais a mais para o Brasil. O caso do algodão, demorou oito anos, os EUA perderam e não cumpriram. O Brasil ameaçou com uma retaliação. O sistema tem duas fases: uma de painel de um ano; e, se o país não cumpre, é possível retaliar o outro país e isso é muito pesado. Isso significa que você pode taxar mais os produtos daquele país que estão vindo para o seu.

A retaliação é com produtos do mesmo tipo?

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A retaliação primeiro ocorre no próprio setor. No caso do algodão, o Brasil poderia retaliar em produtos agrícolas americanos. Por exemplo, se você comprar trigo nos EUA, ao invés de cobrar uma tarifa de 10%, cobra de 35%. Isso é um baque para a indústria de trigo dos EUA, que perderia o mercado brasileiro. E o Brasil teve um valor alto de retaliação: US$ 800 milhões. Só que isso é pouco para os EUA. O Brasil, então, ameaçou retaliar os EUA em outro setor,a chamada retaliação cruzada. O que é que realmente afeta os EUA e faz ele se mexer? O setor audiovisual, filmes de Hollywood e patentes farmacêuticas. Não foi uma ameaça retórica. Saiu no diário oficial que os setores de propriedade intelectual seriam retaliados. Isso gerou nos EUA um lobby desse setores, que foram ao congresso americano e fizeram um contrabalanço ao lado agrícola que queria manter os subsídios. Então o governo americano veio ao Brasil querendo encontrar uma solução. E a solução foi uma compensação. Ao invés do Brasil retaliar, os EUA disseram que não poderiam cumprir agora, mas que poderiam pagar durante o período. E os EUA, desde 2010, já pagaram quase R$ 1 bilhão. Isso é muitíssimo, que é para pagar os prejuízos que foram definidos por um painel de arbitragem da OMC que definiu um valor e que varia a cada ano.

E como é administrado esse recurso?

Foi uma solução criativa brasileira. Criou-se o IBA (Instituto Brasileiro de Algodão), que é uma entidade sui generis, em que no seu conselho participam representantes dos produtores e do governo. Desenvolvem cursos para projetos em prol da cultura brasileira. Ou seja, para combater a praga do bicudo, ou para melhorar a condição dos trabalhadores. Há projetos que são elaborados no Brasil inteiro, mediante a ABRAPA (Associação Brasileiro dos Produtores de Algodão). São aprovados pelo conselho e aí se aplica o dinheiro. Mais interessante que isso: 10% desse valor que é pago anualmente está direcionado para a cooperação internacional com países mais pobres, especialmente da África e alguns da América do Sul. Países pobres que dependem muito mais do algodão do que o Brasil e que não tinham condições de entrar na OMC e fazer um caso contra os EUA. Então o Brasil separou 10%, que é um valor muito considerável.

Seu pai é um jurista e pessoa referência pela atuação profissional e pela integridade como pessoa. Poderia contar alguma memória especial sobre ele?

Aquilo que meu pai vivia no âmbito da Justiça – e essa vida tem muitas testemunhas na vida de Curitiba, do Brasil, do STJ – era também em casa. Havia uma continuidade, uma coerência muito grande entre o que ele pensava e vivia, tanto no âmbito privado, quanto no público. Era uma pessoa extremamente justa e correta. Às vezes uns até podiam confundir com severidade, mas era uma imensa disposição de fazer o bem e o que era justo e correto. Ele encarnava muito a Justiça, com tudo de pesado e difícil que possa acarretar. E ele passou muito pros filhos. Desse lado mais severo, ele passou muito a questão do estudo e de se preparar. No colégio e até na Universidade, só podia ir brincar ou sair com os amigos quando tivesse feito todas as tarefas. Isso me marcou, porque aprendi a levar a sério as coisas. E não podia deixar de falar de todo esse lado espiritual, mais transcendente dele, de pedir muito a ajuda de Deus e rezar e tentar viver. E eu noto muito isso todo dia, meu pai ainda está presente na minha vida. Ainda carrego comigo isso, de saber por tudo nas mãos de Deus.

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Como foi a escolha pela carreira diplomática?

Fui para Alemanha para ficar dois meses, com uma bolsa do Instituto Goethe, acabei ficando quatro anos, fiz mestrado lá. A meu pai também eu devo meu ingresso no Itamaraty porque, quando eu voltei depois de estudar direito internacional, eu não sabia o que fazer e um dia ele trouxe de Brasília um manual do candidato do Instituto Rio Branco e me disse para dar uma olhada. Olhei e pensei: isso sou eu, isso que eu quero, fazer: relações internacionais. Comecei a estudar e passei.

Colaborou: Victor Turezo