A atual realidade do Brasil requer reflexões sobre o papel do Estado, segundo ponderações do jurista Marçal Justen Filho. Para ele, é uma anomalia que empresas públicas atuem dando prejuízo constantemente. Durante o XII Simpósio da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), o jurista apresentou um panorama de alguns pontos viscerais relacionados à política econômica do Brasil. Para o advogado, o Estado só pode oferecer algo além do mínimo se for capaz de oferecer o mínimo muito bem.
Justen Filho, conversou por telefone com o Justiça & Direito após o evento e comentou alguns dos principais pontos de sua exposição no evento. Para o advogado, a situação da Petrobras precisa ser analisada com muito cuidado diante do peso simbólico que a empresa tem para os brasileiros. Por outro lado, ele considera o modelo da empresa “insuportável” para a atual realidade do Brasil. Ele acredita, que com o tempo a situação se resolva. “A tendência é que os fatos se encarreguem de resolver isso, porque o prejuízo é tão grande e a empresa está numa situação tão difícil que ela vai acabar tendo de diminuir de tamanho”, afirma o advogado, que é uma das referências em direito administrativo no Brasil.
Justen Filho também comentou a revisão de percentuais orçamentários para saúde e educação que, na opinião dele, podem ser revistos em tempos de crise. Sobre privatizações de estatais, o advogado considera que a alternativa deve ser muito bem pensada, e não pode ser decidida no afogadilho em um momento de incertezas.
Durante sua palestra no Simpósio da Academia Brasileira de Direito Constitucional, o senhor criticou uma crença de que as empresas estatais podem dar prejuízo. O senhor poderia citar exemplos de como essa cultura está impregnada no pensamento brasileiro?
Em princípio, a gente precisa restringir ao máximo a atuação de uma empresa estatal que atue com prejuízo- isso é anômalo, temporário e muito maléfico para a sociedade. Mas esse é um tipo muito clássico de pensamento – até eu já fiz parte dele. A Fábrica Nacional de Motores, por exemplo, foi uma empresa estatal que foi constituída para fabricar caminhões no Brasil e atuava com prejuízo porque o benefício obtido – de caminhões – era subsídio para o desenvolvimento econômico. E existe todo um setor de hipóteses, digamos assim, de que é possível imaginar isso: que a empresa estatal é uma forma de desenvolvimento e de atividades que os particulares não querem assumir porque dá prejuízo. Esse é um caso. Mas esse é um caso excepcional. Em outras hipóteses, em que uma empresa estatal pode dar lucro e atua tendo prejuízo, você tem um desvio. Há algo errado.
Por que há desvio?
Porque se ela atuar em um setor competitivo e tiver prejuízo, está praticando concorrência desleal, porque o setor privado não consegue acompanhar os preços. E se ela não atua em um setor competitivo, você tende a encontrar uma justificativa para o prejuízo que ela vai dar. Por exemplo, a Petrobras. Então você tem a Petrobras atuando com o fornecimento de combustível para o Brasil com prejuízo. E o resultado é que, em todos os lugares do mundo, esse tipo de subsídio acaba sendo insuportável.
Mas aí o caminho seria mudar a mentalidade ou mudar o campo de atuação da empresa?
Acho que começa mudando a mentalidade. É necessário que a sociedade brasileira, sob um certo ângulo, tome consciência de que não é possível que os recursos públicos sejam aplicados numa empresa estatal que vai atuar para dar prejuízo e depois a sociedade vai ter de pagar isso.
No caso da Petrobras, privatizar seria um caminho?
A Petrobras é um problema muito sério e difícil porque você tem uma discussão clássica política que é muito grande. A questão “o petróleo é nosso” é uma batalha de quase 100 anos. Mas a tendência é que, no caso da Petrobras, os fatos se encarreguem de resolver isso, porque o prejuízo é tão grande,e a empresa está numa situação tão difícil que ela vai acabar tendo de diminuir de tamanho. Pode ser que a Petrobras sobreviva – todos nós queremos que ela sobreviva –, mas ela vai sobreviver bem menor do que ela era.
Ou se estabelece um modelo de privatização, ou se estabelecem mecanismos de transparência na atuação das estatais que impeçam o prejuízo
E com relação a outras empresas?
Quanto às outras empresas, é algo que também a realidade dos fatos vai se encarregar de resolver. Você não pode viver com uma Eletrobras com um prejuízo gigantesco, com todas as empresas estatais endividadas.
Então, para o senhor, fazer algumas privatizações é uma alternativa?
A gente está numa espécie de situação um pouco complicada para dar uma resposta para essa questão. Porque a gente tem uma situação de transição que é extremamente grave. É muito mais grave o momento atual do que a transição normal [de um governo para outro], digamos assim. Porque com um passivo tão insuportável do Estado, com a inflação nos termos em que se encontra, você tomar uma decisão definitiva não é a hipótese mais adequada.
O modelo de privatização deve ser adotado com mais calma e com mais meditação. Alguma solução tem de ter. Ou se estabelece um modelo de privatização, ou se estabelecem mecanismos de transparência na atuação das estatais que impeçam o prejuízo. Ou seja, você vai ter de ter aquilo do campo das empresas privadas, de compliance, de controle para evitar a corrupção, etc., você tem de ter isso no setor público. Então, você precisa ter esse tipo de controle para impedir o prejuízo insuportável para a sociedade.
Na opinião do senhor, o Estado deveria se retirar de alguns setores e deixar ao encargo da iniciativa privada?
Eu, sob um certo ângulo, sou a favor do Estado máximo. Mas eu acho que o Estado mínimo é o mínimo que a gente pode exigir. E o que é o Estado mínimo? É aquele que assegura saúde, educação e segurança. Se você tem um Estado que não consegue fazer isso, ele não deve fazer outras coisas. Portanto, eu acho que o Estado deve fazer muitas coisas, mas ele não pode começar a fazer outras coisas antes de ele conseguir ser mínimo. Minha ponderação é de que o Estado tem de usar todos os recursos que ele dispõe para garantir isso: educação, saúde e segurança. Antes de ele conseguir fazer isso, eu acho que ele não tem o direito de começar a fazer plataforma de Sete Brasil, por exemplo. É uma espécie de insulto à sociedade sob o ângulo de que se ele não consegue fazer o mínimo que se exige dele, como é que ele pretende se legitimar fazendo outras coisas? Portanto, acho que ele só pode aspirar ser algo além de mínimo depois que conseguir ser mínimo.
No Brasil, o governo impõe obrigações extremamente onerosas para todas as empresas que atuam no setor ou de concessão ou de autorização, fazendo com que elas repassem o preço para os particulares.
Na sua palestra, o senhor também citou um exemplo, que foi bem prático, de uma empresa telefônica norte-americana que fez de tudo para que o senhor ficasse satisfeito. Ao concluir, o senhor usou uma frase que chamou atenção da plateia e disse que, aqui no Brasil, há uma competição para ver quem “esfaqueia” mais o consumidor. A gente pode afirmar de que em alguns setores hoje não há uma livre concorrência real?
Essa é uma situação que eu acabo explicando de um modo que pode ser ideologicamente complicado. Dou-lhe o seguinte exemplo, só para você ter uma ideia da telefonia: no ano retrasado, o governo fez a licitação do 4G de cinco giga-hertz. Uma questão, assim, extremamente complicada, porque esse 4G vai funcionar no espaço de onda de rádio que atualmente é ocupada pela TV analógica. Essa TV analógica tem um espaço que está sendo desocupado lentamente, e deve ser desocupado integralmente até 2019. Em 2020, vai começar a funcionar, talvez, essa telefonia de 4G de cinco giga-hertz. Por que eu estou dando esse exemplo? Porque o governo exigiu o pagamento imediato em 2014 de um valor gigantesco das operadoras para cobrir o déficit fiscal. Como decorrência, as operadoras tiveram de desembolsar todo esse valor em 2014 e começaram a repassar isso para o preço. Qual preço? O do 2G. Ou seja, quem vai usar esse 4G de cinco giga-hertz é uma quantidade de pessoas muito pequena. É um universo extremamente pequeno de pessoas.
O que acontece no Brasil? No Brasil, o governo impõe obrigações extremamente onerosas para todas as empresas que atuam no setor ou de concessão ou de autorização, fazendo com que elas repassem o preço para os particulares. É a mesma coisa do imposto.
O que acontece? Você tem um custo estatal enorme que impede que a empresa privada pratique o menor preço. Aí a empresa privada pratica o maior preço que ela pode. E há uma espécie de grande acordo entre o Estado e as empresas, em que o Estado obtém o maior benefício possível e, em compensação, ele permite que as empresas privadas obtenham o maior benefício possível, à custa do consumidor.
Qual a sua opinião sobre os bancos em relação a essa questão?
Por que é que em banco os juros no Brasil são do tamanho que são? E sempre foi assim. Porque interessa ao governo que os bancos paguem enormes tributos, repassem custos gigantescos para os particulares, com a garantia de ter lucros que eles não têm em lugar nenhum do mundo. Então, você vê os lucros dos bancos brasileiros... Itaú, Bradesco, o CitiBank tem lucro gigantesco... Todos os bancos. Só o HSBC que não conseguiu. Todos os demais bancos têm lucros gigantescos no Brasil. Por quê? Porque existe uma espécie de “acordo oculto” entre o governo e a empresa, em que a empresa faz o que bem entende às custas do consumidor desde que pague para o governo todos os tributos – absurdamente elevados.
Qual é a opinião do senhor sobre as mudanças das previsões constitucionais dos percentuais do orçamento para saúde, educação?
A gente está numa situação de emergência. O Supremo Tribunal – e, aliás, todos os doutrinadores, mas o próprio STF – observa que em situações de emergência, mesmo o núcleo fundamental da Constituição deve ser adaptado para evitar uma ruptura. Isso é uma doutrina pacífica, o STF tem aplicado isso. Então, a gente está nessa situação de emergência que deve ser reconhecida como tal. Portanto, a gente tem de ver o que é necessário mesmo no cenário atual. Se isso for necessário, se isso for indispensável, a gente não tem alternativa, porque é indispensável restabelecer a normalidade, porque a gente não tem uma situação de normalidade.
Ao citar uma conversa com um conhecido norte-americano, o senhor contou que, ao comentar o sistema tributário do Brasil, ele fez a seguinte afirmação: “ah, agora eu entendi porque no Brasil os filhos dos ricos são ricos, e aqui nos Estados Unidos os filhos de ricos trabalham”. O senhor acha que os impostos sobre grandes fortunas aqui no Brasil deveriam ser mais significativos? Deveria haver uma mudança na tabela tributária?
Eu acho que sim. Eu sou a favor disso, só que o que qualquer pessoa de bom senso vai lhe dizer é que “eu me recuso a pagar mais impostos enquanto o Estado não cumprir o mínimo que ele me incumbe”. Ou seja, como é que o Estado pretende aumentar a carga de imposto sobre grandes fortunas de herança quando ele não dá o retorno mínimo para a sociedade? Nos EUA, os 50% de imposto sobre herança se traduzem em educação gratuita, de boa qualidade, num sistema de saúde básico – pelo menos – e segurança. Podem dizer que a gente está numa certa situação de o que veio antes, e o que vai vir antes... Mas, de modo genérico, a sociedade brasileira não vai aceitar a elevação ou a alteração da carga tributária se não vier acompanhada de um comprometimento do Estado de cumprir o que lhe incumbe. Se você tem estupro coletivo, tem gente invadindo escola... Você vai dizer pras pessoas “olha, você não vai ter aula, não vai ter segurança e, além disso, você vai pagar 50% da sua herança para o Estado?”. Ou seja, a mudança tem de vir acompanhada de uma capacidade do Estado de atender e satisfazer as necessidades da população.
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