Atualizada em 20 de outubro de 2017, às 9 horas.
O plenário da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) se transformou em campo de futebol. Os ministros da Corte consagraram o Sport Clube do Recife campeão do campeonato brasileiro de futebol de 1987, em detrimento do Flamengo, que já entrou com embargos de declaração para tentar impedir o tapetão. Em tempos de Lava Jato, em que caminham morosamente centenas de inquéritos contra a cúpula da vida política brasileira, causa estranheza que a mais alta corte do país seja chamada a atuar como árbitro de futebol. Esse caso, porém, é só mais um dentre muitos que chamam a atenção para o dispêndio exagerado de tempo e recursos do Poder Judiciário.
Entenda a briga entre o Flamengo e o Sport Clube de Recife.
O Supremo julga inúmeros casos pitorescos todos os anos, desde ladrões de galinha, de chicletes e de desodorantes, até consumidores profundamente abalados porque o pão de queijo comprado no mercado estava mofado. Um caso como este último foi julgado pelo ministro Teori Zavascki no Recurso Extraordinário com Agravo número 729.870, proveniente do Rio de Janeiro. Além de negar provimento ao agravo, o ministro não pôde deixar de registrar seu desalento. “Não se compreende como, em nosso país, não haja a solução por mecanismos extrajudiciais, e que, depois de judicializadas, não possam ser definitivamente resolvidas no âmbito dos juizados especiais”, escreveu em 2013 o ministro, que faleceu sem ver as soluções que almejava.
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Por que tanta bola dividida no STF
Dois fatores explicam essa realidade no STF: a multiplicidade de suas competências e o exercício tímido de filtros que a corte poderia colocar na avalanche de processos. Para Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP, o problema do excesso de casos tramitando na corte não se resume à lei brasileira, mas à própria postura pouco criativa e arrojada do Supremo. O professor destaca que o tribunal tratou o instituto da repercussão geral, novidade colocada à disposição da corte pela Emenda Constitucional 45/2004, apenas como um “redutor quantitativo de recursos repetidos”. Por meio desse mecanismo, o STF tem escolhido um recurso extraordinário paradigma para ser julgado, enquanto todos os demais recursos semelhantes permanecem paralisados. Uma única decisão traz assim um ganho de escala, decidindo de uma vez milhares de casos idênticos.
Segundo Conrado, entretanto, o Supremo poderia usar a repercussão geral como um mecanismo de escolha substancial de temas que o tribunal simplesmente não julgaria mais. “Ninguém tem o direito constitucional a chegar ao STF”, resume Hübner. A timidez do tribunal em fazer uso do filtro da repercussão geral e a sanha recursória dos advogados e promotores são questões culturais. “O duplo grau de jurisdição, o direito de ampla defesa e de contraditório foram concebidos numa cultura advocatícia de maximização dos recursos, como se isso significasse chegar sempre ao STF, como se isso minimizasse o risco de erro judicial. Isso é uma enorme distorção”, afirma Hübner.
Heloísa Machado, professora de Direito Constitucional da FGV-SP, reconhece que o STF tem culpa na quantidade de recursos que lotam seus arquivos, mas ressalta o papel dos tribunais inferiores na sobrecarga dos ministros. “Grande parte desses casos pitorescos, como o furto de galinhas, chega ao STF justamente porque os tribunais inferiores decidem não cumprir as súmulas vinculantes do Supremo”, destaca Heloísa. As súmulas vinculantes são entendimentos do STF que obrigam todo o poder judiciário e a administração pública federal, estadual e municipal. Esse mecanismo, introduzido também pela Emenda 45/2004, foi pensado como um meio de reduzir a quantidade de causas julgadas pelo Supremo. Desde 2005, já foram aprovadas 55 dessas súmulas.
O dono da bola no STF
Há processos que estão esperando julgamento no Supremo desde a década de 1980. Alguns casos bastante complexos, por outro lado, já chegaram a ser julgados em apenas duas semanas. Isso ocorre porque o poder de pauta do Supremo é quase arbitrário. Há várias instâncias nos trâmites internos do tribunal em que um ministro pode “sentar em cima” de um processo. “Os processos têm a duração que a conveniência política do STF determinar: eles decidem o que quiserem, quando quiserem”, resume Hübner.
Depois de designado o relator de um caso, ele pode apresentar o relatório e o voto quando quiser. Em seguida, cabe ao presidente do Tribunal ou de uma das turmas escolher quando colocar o processo em pauta. “Há uma grande discricionariedade do presidente do Supremo sobre o que é julgado ou não. Não há nenhum procedimento no regimento interno ou na legislação que determine grau de relevância ou tempo para o julgamento”, afirma Heloísa. “O presidente tem de compor com os relatores que liberam os casos e também seu perfil acaba determinando essas escolhas”, diz ainda.
Mesmo tendo entrado em pauta, um processo é chamado ou não a julgamento por decisão do presidente. Se não for julgado, o processo pode sair da pauta e voltar para o limbo. A qualquer momento, um ministro pode pedir vista e jogar o julgamento definitivo para as calendas. “Esse poder é criado de fato, não de direito, porque o regimento interno do STF diz que quem pede vista deve voltar com o processo duas sessões depois”, afirma Hübner. “Entre as cortes mais influentes no direito comparado, desconheço alguma que seja uma total libertina. É uma excentricidade do STF que ele tenha esse poder”, completa.
Flamengo x Sport Clube Recife: entenda o caso
Em 1987, os 13 principais clubes de futebol do país decidiram organizar,independentemente da CBF, que passava por uma crise financeira, um campeonato próprio, a Copa União, que seria disputada pelos clubes e mais três convidados. O Clube dos 13 e a CBF acabaram resolvendo as pendengas e firmaram uma parceria para criar dois módulos do campeonato: o módulo verde, disputado pelo Clube dos 13 e seus três convidados originais, e o módulo amarelo, disputado por 16 outros times. No final dos dois módulos, a CBF patrocinou uma rodada olímpica: o Flamengo, campeão do módulo verde, disputaria uma partida com o Guarani, vice do módulo amarelo, e o Sport do Recife, campeão do módulo amarelo, disputaria com o Inter, vice do módulo verde. O Flamengo e o Inter, porém, recusaram-se a disputar as partidas e perderam por W.O. Na disputa final entre Sport e Guarani, o primeiro levou vantagem.
A disputa judicial começou já em 1988. O Sport conseguiu na Justiça o direito de ser reconhecido campeão do campeonato de 1987, embora o Flamengo se afirmasse como tal, e, depois da apreciação dos vários recursos, em 1999 não havia mais possibilidade de recorrer. Em 2011, porém, a CBF declarou o Flamengo também campeão de 1987, mas o Sport ingressou na Justiça, alegando justamente a existência de coisa julgada sobre o assunto. O Flamengo, por sua vez, argumenta que a decisão judicial ter reconhecido o Sport campeão não impede que a CBF reconheça a existência de outros campeões. A Justiça acolheu o pleito do Sport sucessivas vezes, mas o Flamengo conseguiu levar o caso ao Superior de Tribunal de Justiça (STJ). Em 2014, a Terceira Turma do STJ deu razão ao Sport e entendeu que uma resolução da CBF não poderia contrariar coisa julgada. O Flamengo conseguiu então chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de um Recurso Extraordinário. A repercussão geral do recurso foi reconhecida pela “relevância social da controvérsia”.
No julgamento realizado pela primeira turma do STF, em abril deste ano, os magistrados confirmaram o Sport como campeão brasileiro em 1987, com um placar de três contra um. O ministro Marco Aurélio, torcedor do Flamengo e relator do Recurso Extraordinário interposto pelo Flamengo, votou a favor do Sport, defendendo que a declaração tardia da CBF não tinha validade. Alexandre de Moraes e Rosa Weber acompanharam o voto, enquanto que Luís Roberto Barroso, também flamenguista, votou pelo compartilhamento do título.
Os advogados do Flamengo entraram com embargos de declaração, na quarta-feira, 18 de outubro de 2017, para tentar esclarecer pontos obscuros do acórdão, mas dificilmente conseguirão reverter a decisão .
Princípio da insignificância: é crime furtar chicletes?
O princípio da insignificância, também chamado de princípio da bagatela, é aquele de acordo com o qual se afasta a tipicidade de condutas com baixíssimo potencial ofensivo, ou seja, elas não são consideradas crimes. A jurisprudência do STF prevê quatro requisitos para a aplicação da insignificância a um caso: mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada. É com base no princípio da insignificância que os pequenos furtadores são absolvidos, embora, muitas vezes, ainda precisem recorrer aos tribunais superiores para garantir o reconhecimento da bagatela.
Em 2014, Afanásio Rodrigues teve de recorrer ao STF contra a condenação pelo furto de duas galinhas do vizinho. Em entrevista ao Fantástico, Afanásio afirmou: “as galinhas dele ficavam soltas, iam no meu quintal, ficavam ciscando lá. Matei para comer mesmo”. O juiz de primeira instância que julgou ao caso contestou a insignificância do caso. “Permitir isso em uma cidade do interior seria permitir o caos. Daqui a pouco todo mundo vai querer furtar galinha porque a Justiça aqui não condena quem furta galinha, quem furta chocolate’”, afirmou o juiz também ao Fantástico.
Em fevereiro deste ano, o STF arquivou uma ação penal contra uma mulher que colocou na bolsa cinco frascos de chiclete e dois desodorantes de um supermercado. A decisão não foi unânime, porque ela já tinha histórico criminal. Esse é um dos casos em que os ministros do STF costumam divergir se devem aplicar ou não o princípio da bagatela. Durante o julgamento, o ministro Celso de Melo disparou: “Eu examino este caso, onde houve mera tentativa de furto simples, tendo por objeto rés furtiva [coisa furtada] cujo valor não ultrapassou a cifra de R$ 42, e comparo esse fato com o noticiário em torno de condenações penais já decretadas contra empresários e ex-governantes deste país envolvidos em delitos gravíssimos de que resultou desvio ou a ilegítima apropriação de centenas de milhões de reais ou até mesmo de dólares”.
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