Considerado o “remédio jurídico para ontem”, qualquer habeas corpus (HC) teria em tese de ser julgado rapidamente para evitar danos a direitos. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem um “estoque” de 3.298 HCs à espera de decisão, alguns dois quais impetrados na primeira década deste século . O mais antigo, que está hoje com o ministro Luís Roberto Barroso, foi solicitado em 2005, dentre outras pessoas, pelo delegado e ex-deputado estadual do Paraná Mário Sérgio Bradock, da cidade Bocaiúva do Sul, na região metropolitana de Curitiba.
A denúncia contra Bradock chegou à Justiça em 2003. Ele já era delegado e também deputado estadual pelo PMDB. Com foro privilegiado, foi denunciado pelo Ministério Público ao Tribunal de Justiça (TJ) pelos crimes de tortura, homicídio e tentativa de homicídio, entre outros. O TJ aceitou a denúncia, decisão confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Na iminência de uma sentença condenatória, seu advogado entrou com o pedido de HC no Supremo. Alegava, grosso modo, ilegalidades no curso do processo, questionando a validade de investigações feitas pelo MP - uma discussão recorrente no STF.
O HC de Bradok passou pelos ministros Carlos Veloso (já aposentado do STF) e Ricardo Lewandowski. Em outubro de 2006, Lewandowski o levou a julgamento na Primeira Turma. Cármen Lúcia pediu vista. Quando o devolveu, dois anos depois, em plenário, Joaquim Barbosa pediu vista. Mais um ano, e novo pedido de vista, de Ayres Britto. O HC Foi herdado por Luís Roberto Barroso. Em 7 de outubro de 2015, dez anos depois, Barroso o liberou para julgamento. Está com a presidente Cármen Lúcia, à espera de entrar na pauta.
Bradock não quis falar com a reportagem sobre o caso.
O campeão de represamento
O ministro Marco Aurélio Mello é o campeão de HCs acumulados em seu gabinete: 47% da fila de 3.298 habeas corpus que aguardam julgamento no STF. São 1.426 habeas corpus sob sua relatoria – o mais antigo é de 2008 (HC 94.189). Mas Marco Aurélio não tem em suas mãos o HC mais antigo ainda não julgado pelo Supremo.
Marco Aurélio tem 4,9 vezes mais habeas corpus à espera de uma decisão do que o segundo colocado, o ministro Luiz Fux, que tem 291 HCs sob sua responsabilidade. Ou 9,3 vezes a mais do que os 152 relatados pelo ministro Edson Fachin, o ministro que menos tem habeas corpus no gabinete, considerando-se a distribuição regular, segundo a estatística oficial da última sexta-feira (25).
Insistentemente questionado sobre o porquê da diferença a muito maior para seus outros dez colegas de toga, Marco Aurélio não respondeu. Há pouco mais de quatro anos, em julho de 2012, quando seu gabinete acumulava 747 habeas corpus, ele disse, referindo-se a si próprio: “A carga de trabalho, para o ministro que pega no pesado, que não transfere processo a assessores e juízes, é desumana”. À época, o ministro Celso de Mello, que também não aceita juiz auxiliar, tinha 868 habeas corpus. Hoje, tem 249. E Marco Aurélio quase que dobrou.
O que é o habeas corpus
Habeas corpus ad subjiciendum – termo do latim que significa “que tenhas o teu corpo” – é considerado o “remédio jurídico para ontem”. Está previsto no artigo 5.º, inciso LXVIII, da Constituição: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Qualquer pessoa pode pedi-lo contra o acusado de ferir o direito, chamado de “coator”. Não se exige nem sequer que a pessoa que o peça seja advogado . E pode ser feito, sem nenhuma formalidade, até em papel de embrulho.
“É um atalho processual para situações emergenciais e graves, que precisam de resposta rápida”, diz o penalista Rafael Mafei, professor do Departamento de Filosofia e Teoria do Direito da Universidade de São Paulo (USP). “No Supremo, como em outros tribunais, essa rapidez é comprometida pelo acúmulo de processos e, também, pela gestão autocrática dos ministros em relação ao tempo e à pauta de julgamentos.”
O que dizem os ministros
Dos dez casos mais antigos de habeas corpus em tramitação no Supremo Tribunal Federal – entre 2005 e 2009 –, quatro estão com o ministro Marco Aurélio Mello e três estão no gabinete do ministro Celso de Mello.
Marco Aurélio não dá explicações específicas nem genéricas sobre a demora. Já o gabinete de Celso de Mello afirmou que os 249 habeas corpus que estão com o ministro “resultam do grande volume de processos que tramitam no próprio Supremo Tribunal Federal, realidade vivida pelos Tribunais superiores”.
O chefe de gabinete do ministro decano, Miguel Ricardo Piazzi, citou como exemplo os habeas corpus impetrados junto ao Superior Tribunal de Justiça, que tem recebido “enorme volume de processos dessa natureza, o que se reflete, por via de consequência, no elevado número de processos de habeas corpus no STF”.
O chefe de gabinete relatou novidades sobre o caso do HC 93.921, de 2008. Naquele ano, o ministro já havia negado a liminar. E o mérito, confirmando a negativa, foi analisado em 4 de novembro último, oito anos depois. Na quarta-feira, o advogado do paciente entrou com um recurso contra a decisão. “Já chegou no gabinete”, disse Piazzi. Ou seja: continuará tramitando.
Daiane Nogueira de Lira, chefe de gabinete do ministro Dias Toffoli, informa que dos 158 habeas corpus sob sua relatoria, 67 estão no gabinete, conclusos ao relator. Os demais podem estar com pedido de vista para outro ministro, para a Procuradoria-Geral da República, ou aguardando alguma providência em setores internos do Tribunal.
O gabinete de Toffoli tem um setor específico para cuidar dos HCs, com a recomendação de prioridade. O ministro recebeu 516 habeas corpus entre janeiro e a quarta-feira, informou o gabinete. O recorde foi em agosto, com 82 processos. Desde que entrou no STF, em 2009, até aqui, o ministro recebeu 2.987 habeas corpus, e julgou 2.823. É a melhor marca do tribunal.
Continua pendente, desde 2011, o HC 109 706. Toffoli proferiu o voto, na primeira turma, em setembro de 2011. A ministra Carmem Lúcia pediu vista. Devolveu para julgamento três anos depois, em 10 de outubro de 2014. Depende, agora, que ela própria, presidente, o inclua na pauta. A ministra-presidente não quis falar sobre a questão dos HCs no Supremo.
No gabinete do ministro Luís Roberto Barroso chegam, em média, 69 processos entre habeas corpus e, também, recursos de habeas corpus (RHC). Segundo o gabinete, a média de prazo para despacho da liminar é de sete dias. “Herdei um estoque antigo de 357 (HCs e RHCs). Boa parte deles já estava prejudicada, ou porque o réu já havia sido solto ou porque já havia sido condenado”, afirmou o ministro em e-mail enviado pelo gabinete. “Alguns poucos desses ainda não foram extintos por não estarem na lista de prioridades. A prioridade vai para os novos casos, com pedido de liminar.” Dos 188 casos registrados até a sexta-feira, 75 já estavam julgados por decisão monocrática, com interposição de recursos, sob análise para inclusão em pauta de julgamento. Dos 188, 17 liminares seguem pendentes.
OAB pede agilidade
Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Claudio Lamachia, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, por 6 a 5, de permitir a prisão já a partir da segunda instância, vai aumentar significativamente o número de habeas corpus. “A sistemática de decisão tem de ser mais objetiva, estabelecer prioridades”, disse.
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