A cearense Maria da Penha Maia Fernandes dormia quando o marido deu um tiro em suas costas. Ficou paraplégica. Ele só foi preso quase 20 anos depois. A tragédia pessoal da biofarmacêutica, um dos mais emblemáticos casos da história brasileira na luta das mulheres por mais direitos e cidadania, teve repercussão mundial e batizou a lei que cria ferramentas que tentam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha. A norma completa nove anos no mês de agosto, entre méritos penais e a urgência em discutir sua efetividade.
Reconhecidamente, a Lei 11.340/06 estabeleceu um novo parâmetro constitucional. Dentre os inúmeros avanços, a violência contra a mulher parou de ser avaliada como um crime de menor potencial ofensivo e deixou-se, por exemplo, de se aplicar penas pecuniárias, quase simbólicas, como o pagamento de cestas básicas e multas. Antes da Lei Maria da Penha, acontecia de muitas mulheres serem obrigadas a entregar a intimação para o agressor comparecer às audiências. Mecanismos inéditos passaram, então, a tipificar a violência em casa e a estabelecer medidas que o Estado deve realizar para uma sociedade mais igualitária. Ou ao menos deveria.
História conhecida ainda precisa ser relembrada
Era 1983, o Brasil vivia os últimos suspiros de uma ditadura a atingir maioridade e surgiam os primeiros conselhos estaduais de discussão dos direitos das mulheres, em resposta à forte pressão dos movimentos feministas. Quando Maria da Penha foi alvejada por um tiro nas costas em sua própria cama, o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros saiu gritando pela cozinha, alegando que a esposa havia sido atacada por assaltantes. Maria ficou paraplégica e ainda viria, pouco tempo depois, em casa, a ser empurrada da cadeira de rodas e sofrer uma tentativa de eletrochoque no chuveiro. O caso chegou até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que acatou pela primeira vez uma denúncia de violência doméstica.
Viveros, após um sombrio inverno judiciário, foi preso em 2002. Cumpriu apenas 16 meses em regime fechado. Sempre alegou que a ex-mulher o transformou num “monstro” perante a sociedade.
Infelizmente, a convivência com agressores é uma tônica relacional. Dados da pesquisa DataSenado, de 2013, realizada com 1.248 mulheres, mostraram que 99% das mulheres conhecem a Lei Maria da Penha. 19% da população feminina com 16 anos ou mais disse já ter sido agredida por um homem. Dessas, 31% ainda convivem com o agressor.
Mesmo com um princípio de igualdade mais esclarecido e a concepção de espaços protetivos, como defensorias públicas, casas-abrigo e delegacias especializadas, há questões sociológicas e estruturais entranhadas – e que ultrapassam o rigor da lei.
O Brasil segue um lugar muito difícil para as mulheres. Uma demonstração disso é o balanço dos atendimentos realizados pela Central de Atendimento à Mulher, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). Foram registradas, em 2014, 52.957 denúncias de violência contra a mulher. 27.369 foram denúncias de violência física (51,68%). “A Lei Maria da Penha não diminuiu a incidência de violência contra nós. Tivemos um avanço legal, mas não uma melhoria social. A Lei é uma conquista, mas as mulheres não deixaram de ser agredidas e de morrer. Seguimos vendo, semana a semana, casos de brutalidade”, afirma a advogada e ativista do movimento feminista Xênia Mello.
O abismo entre a tábua escrita e o cotidiano mais chão fica evidenciado em pesquisas que aferem questões comportamentais. O estudo “Tolerância social à violência contra as mulheres”, também de 2014, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela sérias incoerências. Enquanto 91% dos homens, num recorte de 3.810 entrevistados, concordam que homem que bate em mulher deve ir para a cadeia – não deixa de ser assustador observar que 9% de homens julgam que bater em mulher é normal –, 58% acreditam, total ou parcialmente, que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros.
As contradições numéricas mostram também um panorama mais amplo. De acordo com Jobana Moya, membro do projeto Warmis – Convergência das Culturas, que realiza campanhas de incentivo à não-violência contra a mulher imigrante, os abusos se exercem de modo cultural. “No papel, a Lei Maria da Penha é fantástica. Contudo, o Brasil, e a América Latina como um todo, é muito machista. A educação de valores machistas reforça a discriminação contra a mulher e gera a impunidade. Muitas mulheres têm até medo de denunciar a agressão aos agentes públicos, pois podem ser vitimadas mais uma vez”, avalia.
Mudança educacional precisa ocorrer
Uma pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela aspectos complexos e razoavelmente conhecidos sobre violência doméstica: muitas vezes o agressor está ao lado. Segundo os dados, 2,7% das mulheres maiores de 18 anos foram agredidas por desconhecidos. Quando o agressor é alguém conhecido da vítima, o índice sobe para 3,1%. Em números absolutos, nos 12 meses da pesquisa, 2,4 milhões de mulheres foram atacadas por agressores que conheciam. Já os desconhecidos agrediram 2 milhões de mulheres.
Nesse contexto, é preciso fugir do aspecto penal e repensar o modelo educacional. Além de medidas para penalizar o agressor, são fundamentais ações de conscientização, como destaca a advogada Xênia Mello: “A Maria da Penha prevê medidas educacionais regulares. O que está falhando é a implementação pedagógica, a prática do que já está previsto em lei. A violência contra a mulher deve ser debatida nas escolas para criarmos uma cultura de respeito ao gênero. Se não, os índices de violência seguirão altos”.
Por outro lado, é preciso que os instrumentos legais sejam eficazes e reduzam a sensação de tolerância aos crimes. Para a advogada Priscilla Placha Sá, presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB, houve apenas investimento virtual desde 2006. “Estabelecemos uma lei, mas não se aumentou o número de juízes, promotores e policiais. As condições são precárias e não garantem a segurança da mulher que está em situação de vulnerabilidade. Como garantir a eficácia de uma medida protetora se o Estado não realiza o seu papel básico de investimento em estrutura?”, pergunta.
O sexismo e as representações da mulher como subordinada à autoridade masculina também apontam a necessidade de se pensar não somente os efeitos, mas o modo jurídico de resolver as coisas. Ainda há uma ordem implícita que parece avaliar o “primado” masculino como aceitável, naturalizado, inerente.
Muitas vezes, em última instância moral, o agressor até tem sua responsabilidade amenizada. Para Priscilla, enquanto o foco for o combate à violência, pouco mudará no contexto social. “A questão é necessariamente educacional. Temos que implantar uma cultura da não-violência, desde cedo. É um erro combater primordialmente a consequência e não a causa. Temos de quebrar os padrões de violência na base”, completa.
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