A ação ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) para que o aborto até 12 semanas de gestação deixe de ser crime apresenta como argumentos violações de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal como a inviolabilidade da vida, o direito à igualdade e a proibição da tortura. Esses direitos fundamentais são abordados com foco nas mulheres que fazem o aborto, mas não no bebê, que não terá o direito à vida. Esse tipo de interpretação é apontada como contraditória por juristas consultados pelo Justiça & Direito.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ajuizada pelo PSOL, questiona a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal que prevê, respectivamente, penas de detenção de um a três anos para quem provocar aborto em si mesma; e detenção de um a quatro anos para quem provocar aborto em uma gestante com consentimento.
“A tese desta Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas”, diz a ação.
A advogada e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares da Silva, considera contraditória a adoção de argumentos como a inviolabilidade da vida já que ao se praticar o aborto se estaria fazendo um atentado contra a vida. “É um absurdo. A inviolabilidade significa que é para todo o tipo de vida”, analisa a advogada.
A ADPF aponta que as mulheres “jovens, negras e indígenas, pobres e nordestinas” são as mais afetadas pela proibição do aborto, pois acabam se submetendo a procedimentos que não são seguros. Desta forma, o PSOL sustenta que “a criminalização do aborto viola ainda o direito à saúde (CF, art. 6º) em leitura combinada com a inviolabilidade do direito à vida e à segurança (CF, art. 5º, caput) por relegar mulheres à clandestinidade de procedimentos ilegais e inseguros”.
Diante deste tipo de argumento, Regina Beatriz observa que “não se pode corrigir um erro com outro”. E, para garantir a proteção das vidas mulheres, caberia ao Estado proporcionar meios educacionais para orientá-las, e “não somente distribuir preservativos”.
A ação também sustenta que a negação de serviços de saúde reprodutiva constituiria tortura. Regina Beatriz rebate observando que também ocorreria a tortura do bebê no ato do aborto: “Há uma sucção de um ser humano do corpo da mulher e ele vai sofrendo no caminho”, lamenta a advogada.
Debate social
O advogado André Brandalise considera que, para definir a aplicação desses princípios constitucionais, o Supremo terá que entrar no debate sobre quando começa a vida. “O STF vai ter que abrir audiência pública. Para tentarem ser convencidos a partir de que momento começa a vida humana”. Apesar de não haver unanimidade na definição de marcos científicos, se entre os ministros houver a compreensão de que a vida começa apenas após 12 semanas, será mais provável que os direitos sejam garantidos apenas para a mulher e não para o bebê.
André ressalta que a atual legislação brasileira garante os direitos dos bebês antes mesmo do nascimento. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que a criança tem direito à vida e à saúde “mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso”.
A própria Constituição Federal determina que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde [...] à dignidade, ao respeito”.
Além disso, o Brasil é signatário da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos - o Pacto de San José da Costa Rica, que define que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Mas a ADPF traz esse artigo da Convenção com ênfase no termo “em geral” e aponta decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos que relativizaram esse direito, como o caso em que a Costa Rica foi condenada por proibir a fertilização in vitro – que envolve o risco de perda embrionária.
Brandalise observa que, se o STF modificar a interpretação sobre o assunto, não só o Código Penal, mas a legislação vigente que garante direitos dos bebês perderia a validade. Para ele, isso seria um erro e “feriria a igualdade entre todos, inclusive das crianças”. “Bebê não é peso para família e para a sociedade”, ressalta o advogado.
Sobreposição de direitos
A advogada Tatiana Viola de Queiroz, especialista em direito do consumidor na área da saúde, defende que os direitos da mulher se sobreponham aos do bebê. “Quando se trata do direito à saúde, o que predomina é autonomia do paciente”, aponta Tatiana. Na opinião da advogada, a mulher tem que decidir o que é melhor para ela e o que pode acontecer com seu corpo “independentemente de trazer risco à saúde do feto e dos problemas que possam acontecer com ele”.
Tatiana explica que, se houver a interpretação do STF que legalize o aborto até doze semanas, os “fetos” deixarão de ter a garantia ao direito à vida desde a concepção. Segundo ela, no direito, há momentos em que é necessário se fazer uma avaliação entre direitos que são proporcionalmente iguais e que um acabará se sobrepondo sobre o outro. “ Nesse caso, salva-se [a mulher] alguém que já está aí com todos os seus direitos e deveres, em detrimento do feto que não nasceu e não tem todos os direitos garantidos”, defende a advogada.
A professora de direito civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Maria Cândida do Amaral Kroetz discorda dessa tese de sobreposição de direitos: “Não se pode invocar a mais-valia de uma vida em detrimento da outra. Sobretudo a vida dos nascituros que não têm possibilidade de definir seus destinos”.
Maria Cândida também aponta que uma ADPF não é o mecanismo adequado para se deliberar sobre uma questão de grande controvérsia social, como é o caso do aborto e o caminho correto seria o Congresso Nacional. “Representantes legislativos são responsáveis por mudanças no Código Penal. Qualquer transformação deve ocorrer através das instâncias legitimamente constituídas”, afirma a professora da UFPR.
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