A decisão sobre a concessão de habeas corpus para acusados pelo crime de aborto da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) na terça-feira (29) acabou indo além do que estava sendo questionado na ação com a manifestação da maioria dos ministros da turma de que o ato não é criminoso até o terceiro mês de gestação. Apesar de não ter força vinculante, o posicionamento dos magistrados abre precedente para julgamentos em instâncias inferiores, e juristas questionam se caberia aos ministros da corte suprema se posicionar sobre essa questão agora, já que ela não havia sido levantada.
No caso em questão, funcionários e médicos de uma clínica de aborto em Duque de Caxias no Rio de Janeiro, que foram presos preventivamente pelo crime de aborto com consentimento da gestante e pelo de formação de quadrilha, haviam ajuizado o HC. Em agosto deste ano, o relator do caso, ministro Marco Aurélio, se posicionou a favor da liberdade dos acusados (que estavam soltos desde 2014 em virtude de uma liminar concedida pelo próprio Marco Aurélio) porque eles não ofereceriam riscos ao processo, ou seja, não se enquadravam nos casos previstos no Código de Processo Penal (CPP) para o cabimento de prisão preventiva. Na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso pediu vista.
Ao apresentar seu voto na sessão desta terça-feira, Barroso não só se posicionou a favor do HC, mas acabou avançando sobre o tema e afirmou que a parte do Código Penal que trata sobre o crime de aborto deve ser considerada como não recepcionada pela Constituição Federal. O ministro defendeu ainda que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime. Os ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber acompanharam o voto de Barroso.
Foram além
Juristas questionam se nesta ação caberia aos membros da primeira turma fazer essa análise que nem sequer fazia parte do processo. O papel dos ministros seria o de interpretar a lei e não de modificá-la. A partir desse ponto de vista, o voto de Barroso seria ultra petita, ou seja, foi além do que era pedido no processo.
Para a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, o Supremo “violou flagrantemente a divisão de poderes” e acabou tentando legislar. “O Estado tem uma organização de poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso está na Constituição, que não pode ser violada nem pelo Supremo, muito menos pelo Supremo.”
O advogado André Brandalise avalia que o voto do ministro Marco Aurélio fez sentido, por não haver ameaça que justifique a prisão preventiva, e aponta dois pontos que considera equívocos de Barroso: por se tratar de um HC, não se deveria entrar no mérito da tipicidade penal; e o caso ainda está tramitando no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), nem chegou ao Supremo – e não se sabe se chegará – para ser analisado.
“Quando Barroso entra em esfera que não foi questionada no processo, entra em uma avaliação puramente ideológica”, observa Brandalise.
Para a professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza, cabe ao Supremo fazer um papel contramajoritário e o caso se trataria de um ativismo judicial no bom sentido, para a proteção de direitos. “Cabe ao STF enfrentar questões políticas ou de direitos fundamentais que não têm uma previsão expressa na Constituição.”
Estefânia não vê problemas no fato de Barroso ter analisado o mérito agora. A leitura dela é que essa foi uma opção política para começar o enfrentamento da questão do aborto, que deverá ser aprofundada no julgamento de um caso relacionado ao zika vírus, no dia 7 de dezembro. A professora considera também que ao analisar o HC coube a análise se os atos que levaram à prisão preventiva seriam mesmo crime.
Consequências práticas
Brandalise afirma que o posicionamento predominante na 1.ª Turma do STF não tem força erga omines, o que significa que não precisa ser utilizada como fundamento para todas as outras decisões judiciais.
A professora Estefânia explica que juízes de primeiro grau já podem citar esse entendimento, mas o magistrado que não for favorável à tese também pode se recusar a segui-la e justificar que foi apenas uma decisão de uma turma e não do plenário da corte.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, já anunciou que vai instalar uma comissão especial para revisar a decisão tomada pelo STF.
A professora da UFPR diz que o Legislativo pode até criar uma lei em reação ao que o Supremo decidir sobre o tema. Do mesmo modo, o STF poderá julgar a lei inconstitucional posteriormente. “Ninguém tem a última palavra. A democracia tem o custo alto de se divergir.”
Para Regina Beatriz, a solução para as controvérsias geradas pela descriminalização do aborto seria uma consulta popular, cujo resultado teria de ser respeitado por todos os poderes independentemente de posicionamentos políticos ou ideológicos.
Por outro lado, Estefânia não acredita que levar a população às urnas para opinar sobre o tema seja uma boa alternativa, pois não seria um debate racional, mas movido por princípios religiosos. “Não acho que seria o caso. Se entendo que as mulheres são minoria, que não têm voz, é preciso o papel contramajoritário da corte mesmo”, pondera.
Constitucionalidade
Em seu voto, Barroso considera que os seguintes direitos fundamentais das mulheres seriam violados pela legislação vigente: direito à autonomia, o direito à integridade física e psíquica, direitos sexuais e reprodutivos e haveria, ainda, violação à igualdade de gênero e discriminação social e impacto sobre as mulheres pobres. “Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher”, argumenta o ministro.
Segundo Regina, não faz sentido o argumento de que o trecho do Código Penal não foi recepcionado pela Constituição porque o artigo 5.º garante o direito à vida. “Onde a Constituição mudou a preservação do direito à vida? O texto constitucional fala que a vida é um direito fundamental, e não diz se começa com dois ou três meses tem vida”, critica a advogada.
Brandalise aponta ainda que o Código Civil no artigo 2.º define o seguinte: “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Do mesmo modo, a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário na íntegra, garante o direito à vida desde o momento em que o bebê é concebido.
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