Um registro feito no Tabelionato de São Vicente, São Paulo, feito em janeiro de 2015 oficializou a união entre uma analista de sistemas, uma pedagoga e um engenheiro. O “trisal”, como se definem, procurou estipular como fica sua divisão de bens e a sucessão em caso de morte de um deles. Mas ainda que tenha sido feito por uma tabeliã que tem fé pública, a validade jurídica deste documento é questionável e depende de um posicionamento definitivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A Constituição Federal prevê que, no Brasil, o casamento deve ser realizado entre duas pessoas. Mas uniões estáveis com mais parceiros já foram realizadas em cartórios do país. O assunto gerou polêmica no primeiro semestre e o CNJ orientou que os registradores civis não realizem esse tipo de união por enquanto. Audiências públicas sobre o tema devem ser realizadas ainda neste ano para que haja uma definição sobre o assunto.
O CNJ estima que 10 uniões desse tipo já tenham sido realizadas no Brasil, mas só tem notícia de duas oficialmente. Além da de São Vicente, outra foi realizada em 2012, em Tupã, no interior de São Paulo.
O assunto entrou na pauta do CNJ após uma representação Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) que pediu que esse tipo de união fosse proibido liminarmente. Em maio, a corregedora do conselho, ministra Nancy Andrighi, instaurou um pedido de providência para analisar o caso e solicitou a todos os tribunais de Justiça do Brasil que comuniquem os cartórios sobre a análise.
“Somente se pode declarar num tabelionato o que existe no mundo jurídico. Não se declara o que não existe para o direito”
Segundo a assessoria de imprensa do Conselho, as audiências públicas ainda não têm data marcada, pois há “outros assuntos mais prioritários estão ocupando a agenda do CNJ”, mas previsão é que sejam marcadas ao longo deste semestre.
A Associação de Notários e Registradores (Anoreg) foi procurada para responder sobre o posicionamento dos cartórios sobre o assunto, mas, como o assunto ainda está em debate no CNJ preferiu não se posicionar e disse que reportagem deveria procurar os “órgãos reguladores”.
Constitucionalidade
A presidente da ADFAS, Regina Beatriz Tavares da Silva considera que esse tipo de união é inconstitucional porque o artigo 226 da Constituição diz que a união estável é aquela entre duas pessoas.
“Essas escritura não valem nada. As pessoas estão sendo levadas a equívoco. Pagam emolumentos de um ato notarial que não vale nada”, diz a advogada.
A tabeliã que fez um dos registros afirmou que só registrou os fatos. Mas para Regina Beatriz, “somente se pode declarar num tabelionato o que existe no mundo jurídico. Não se declara o que não existe para o direito”.
O presidente do instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) Rodrigo da Cunha Pereira reconhece que o tema é polêmico até mesmo entre os membros do instituto, mas, na opinião dele não cabe ao Estado interferir em questões de foro íntimo.
Sobre a constitucionalidade, o advogado argumenta que a interpretação ocorre de acordo com o tempo. Ele cita como exemplo a união estável entre pessoas do mesmo sexo. O texto constitucional falava de união entre homem e mulher, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que esse tipo de união se aplicaria também a casais homoafetivos.
Uniões paralelas
Pereira ressalta que a uniões poliafetivas ainda são pouco comuns no Brasil, mas que o reconhecimento a esse tipo de relacionamento vai no mesmo sentido da defesa das uniões paralelas ou simultâneas, em que nem sempre todos os envolvidos sabem que as duas uniões existem.
Para ele, o reconhecimento a esse tipo de relação é parte de um processo semelhante ao aconteceu com os filhos fora do casamento, que eram considerados bastardos, e após a Constituição de 1988 passaram a ser reconhecidos pelo Estado.
“Por que incomoda? Por que não pode? É contra a moral e os bons costumes? Talvez isso seja mais honesto do que pessoas que têm relações clandestinas”, diz Pereira sobre as relações que envolvem mais de duas pessoas a são registradas em cartório. O advogado enfatiza que esse tipo de relação continuará a existir, independentemente do tipo de o Estado aceitar ou não.
“Essas relações vão continuar existindo, mesmo que não sejam reconhecidas na hipocrisia do mundo jurídico”, diz Pereira.
“Essas relações vão continuar existindo, mesmo que não sejam reconhecidas na hipocrisia do mundo jurídico”,
Para Regina Beatriz, as consequências das uniões poliafetivas são “nefastas”. “Quem quer viver assim no plano dos fatos que viva. Mas não põe criança no meio. Os adultos fazem o que bem entendem”, defende a advogada.
Consequências sociais
Além dos argumentos jurídicos advogada cita estudos para sustentar que a união poliafetiva não é benéfica para a sociedade. Um levantamento feito por ela mostra que os países onde existe poligamia têm números piores de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Ela também cita um estudo da Royal Social Academy segundo o qual a monogamia impacta com redução de crimes em geral e crimes domésticos, como agressão e estupro. Além disso, nos países monogâmicos há maior investimento nos filhos, menos negligência e mortes acidentais de crianças.
A presidente da ADFAS chama atenção ainda para o fato de que a poligenia – um homem que tem várias – esposas é muito mais comum do que a poliandria – uma mulher com vários homens. Ela considera que aceitar esse tipo de relacionamento significa um retrocesso e cita como exemplo o próprio caso registrado em São Vicente: no acordo dos três, o homem ficou como principal administrador dos bens.
“Tanto fizemos para alcançar igualdade! Nem com a Constituição alcançamos a igualdade. Depois, só com o Código Civil de 2002, é que conseguimos”, relembra Regina Beatriz.
“As consequências desse tipo de relação são nefastas, péssimas, prejudiciais, altamente danosas para as mulheres e crianças. Esse tipo de relação só não é prejudicial para o homem”, diz a advogada.
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