No princípio – segundo a mitologia nórdica – havia apenas um abismo sem fundo e um mundo de vapor no qual uma fonte flutuava. Não havia céu nem terra. Da fonte, emergiam 12 rios que, depois de muito correr, congelaram-se. Camadas de gelo encheram o abismo. Por força da vibração quente advinda do mundo de luz ao sul do mundo do vapor, o gelo derreteu, formando nuvens, das quais surgiu Ymir, o gelo gigante, e a vaca Audumbla, da qual surgiu um novo deus, pai de Odin, Vili e Ve, que mataram Ymir, formando, com seu corpo, a terra; com seu sangue, os mares; com seus ossos, as montanhas; com seus cabelos, as árvores; com seu crânio, o céu; com seu cérebro, as nuvens; e, com sua testa, a Midgard, ou terra média, a terra dos homens. Os deuses tinham sua morada em Asgard, acessível apenas pela ponte Bifrost, representada por um enorme arco-íris. Nesse mundo, encontramos Loki – pai do lobo Fenris, da serpente Nidgard e de Hela, a morte – que pertencia à raça dos gigantes, conhecido como deus do fogo e da trapaça. Também conhecido como caluniador dos deuses, articulador de todas as fraudes e atos condenáveis, era belo, mas temperamental e com maus instintos. Loki, considerado um símbolo da maldade, tinha, como uma de suas habilidades metamorfosear-se, assumindo qualquer forma.
Com esse pano de fundo, lembro-me da recente elevação das alíquotas do IPVA no Paraná, de 2,5% para 3,5%, realizada pela Lei Estadual n. 18.371, de 15/12/2014. O IPVA vem disposto no art. 155, III, da Constituição Federal (CF). O mesmo diploma normativo que estabelece o Princípio da Anterioridade Genérica, que é garantia do contribuinte (art. 150, III, “b”). Ele prescreve ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, cobrar tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”. O sentido no qual foi empregado o vocábulo “cobrado” é o mesmo de “exigido”, até mesmo porque a interpretação literal abre margem à absurda conclusão de que o retardamento da cobrança atenderia à prescrição constitucional. O Princípio da Anterioridade determina a postergação da eficácia da lei que instituir ou majorar o tributo! O exercício financeiro coincide com o ano civil, iniciando-se em 1º de janeiro e terminando em 31/12.
O texto original do § 1º desse artigo prescrevia que essa vedação não se aplicava a uma série de tributos, as exceções à anterioridade genérica, dentre as quais não se encontra o IPVA. A justificativa para a existência desse princípio é a necessária observância do Princípio da Segurança Jurídica. Lembremos que integram a ideia de segurança jurídica as noções de certeza do direito e de previsibilidade da atuação estatal. Entretanto, a previsão da Anterioridade Genérica não assegura plenamente a previsibilidade para a qual foi concebida. Em razão disso, por meio da Emenda Constitucional nº. 42, de 19/12/03, foi inserida, no inciso III do artigo 150 da CF, a alínea “c”, que prescreve ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”. Essa mesma Emenda inseriu uma segunda parte no § 1º do artigo 150. Nele, estão elencados os impostos aos quais não se aplica a Anterioridade Nonagesimal. Sua prescrição é a de que “...a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I”. Percebam que a fixação da base de cálculo do IPVA foi incluída no rol das exceções à Anterioridade Nonagesimal. Assim, a incidência da lei que aumente a base de cálculo do IPVA não se submete à Anterioridade Genérica, apenas à Nonagesimal. Observe que nada é dito a respeito da alíquota.
Dito isso, analisemos a situação específica da elevação das alíquotas do IPVA no Paraná, que é, no mínimo, curiosa, a ponto de dar inveja ao próprio Loki. A Lei 14.260, de 22/12/2003 – Lei Orgânica do IPVA – estabelecia a alíquota de 2,5%. E, também, no artigo 2º, § 1º, “e”, que o “fato gerador” do IPVA ocorre “no primeiro dia de cada ano, em relação aos veículos automotores adquiridos em anos anteriores”. Mas quando passa, então, a incidir a lei que estabelece as novas alíquotas? Basta contarmos 90 dias da data da publicação da Lei, que se deu em 15.12.2014. Nossa contagem nos levará a uma data em março, uma data posterior, portanto, a 1º de janeiro de 2015. Isso faz com que o IPVA, com alíquota de 3,5%, só possa ser exigido em 1º de janeiro de 2016. Entretanto, e muito curiosamente, a mesma Lei 18.371 estabelece no art. 5º que “O fato gerador do imposto [...] referente ao exercício de 2015, em relação aos veículos automotores adquiridos em anos anteriores, ocorrerá no dia 1º de abril de 2015” – providência observada também no Decreto nº. 12.832, de 18/12/2014 – numa escancarada tentativa de burlar os ditames constitucionais, como se para atender à anterioridade bastasse modificar o momento em que se considera ocorrido o fato.
Lamentável! Exceto, é claro, para Loki, que se sentiria orgulhoso do Legislativo e do Executivo, certamente!
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