Os dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostram que o maior número de servidores públicos ganhando “supersalários” está nos Judiciários e nos Ministérios Públicos (MPs) estaduais. No total, a Justiça e o MP dos estados registraram 3.041 funcionários recebendo remuneração mensal média acima do teto do funcionalismo público no Brasil em 2015 – ou seja, quase um entre quatro servidores que recebiam mais que o permitido pela Constituição (R$ 33,7 mil). Os vencimentos acima do teto são permitidos por meio dos chamados “penduricalhos” – benefícios previstos em lei ou regras internas dos órgãos que não são considerados salário.
Em segundo e terceiro lugares estão, respectivamente, os governos federal e estaduais, com cerca de 2,5 mil funcionários recebendo supersalários. Esses entes administrativos, porém, têm um número de funcionários na ativa muito maior que os da Justiça. Em 2015, a União tinha 514 mil servidores que mantiveram seu vínculo empregatício ao longo do ano, enquanto os governos estaduais empregaram mais de 2,5 milhões de pessoas.
Os Judiciários e MPs estaduais, por sua vez, tinham 170 mil funcionários, segundo a Rais – ou seja, quase dois entre cada cem funcionários desse poder receberam acima do teto constitucional no ano passado. Essa proporção bate o recorde no Rio de Janeiro (7,5%), que também é o estado que concentra o maior número absoluto de supersalários na Justiça e MP estadual. Havia 1.521 juízes, procuradores e promotores com salário acima de R$ 33.763 – o que representa mais da metade de todos os servidores com vencimentos acima do teto. Em agosto, por exemplo, apenas um dos 861 juízes do estado ganhou menos que o teto.
Maiores salários
Quando se analisa só os maiores salários mensais médios registrados no ano passado, porém, o destaque é para o Legislativa do Pará. Dois agentes de saúde pública, um assistente administrativo e três dirigentes de órgão lideram o ranking dos supersalários entre funcionários públicos no ano passado. Eles receberam remuneração média entre R$ 114 mil e R$ 118 mil mensais em 2015.
Como a Rais não identifica o órgão ou o nome do funcionário, é impossível saber se eles estão registrados na Assembleia ou no Tribunal de Contas do Estado (TC), que é um órgão vinculado do Legislativo. A Assembleia nega que eles estejam em seus quadros com os valores e cargos citados. “Aplicamos o redutor constitucional naqueles casos em que os salários estavam acima do limite”, disse o diretor do Departamento de Gestão de Pessoas da Assembleia paraense, Max Ribeiro.
O TC do Pará afirmou que não paga supersalários, apesar de admitir que há casos “concedidos por meio de decisões judiciais” que extrapolam o limite legal. O órgão não explicou que decisões judiciais foram essas nem se elas têm a ver com os seis servidores beneficiados com supersalários.
O procurador de Justiça Nelson Medrado disse ter ingressado, entre 2012 e 2013, com ações judiciais contra a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Contas para que ambos aplicassem o redutor constitucional nos salários. “Eles estão fazendo isso, mas se tem esses seis supersalários, num desses dois órgãos ou em qualquer outro do Pará, o jornal vai me ajudar muito a ir em cima para saber quem está recebendo isso e fazer devolver o que recebeu a mais.”
Corrupção
São decisões judiciais como essas informadas pelo TC do Pará as responsáveis por boa parte dos supersalários pagos na administração pública brasileira. Outros ainda existem só porque não houve ação judicial ou administrativa para impedir seu recebimento.
Recentemente, defensores da redução dessas remunerações estão tentando enquadrar o debate usando termos mais pejorativos para descrever os supersalários. A senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), relatora da comissão especial criada no Senado para fiscalizar contracheques acima do salário dos ministros do STF, chegou a afirmar que “receber salário indevido também é corrupção”.
O professor de Direito do Estado da USP Floriano de Azevedo Marques vê o problema de forma similar. “Receber mais que o teto não é exatamente corrupção, mas é tão ilegal quanto. Os agentes públicos usam o poder de barganha que têm para pressionar o Legislativo e o Executivo para conseguir continuar recebendo vantagens indevidas. São ganhos ilícitos, que deixam claro como as burocracias mais qualificadas do Estado exercem o poder da sentença e de prender para barganhar vantagens.”
No Rio, só um de 861 juízes ganhou menos que teto
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro com apenas sete meses de carreira, Marianna Fux, empossada em abril passado no cargo, já em maio recebia vencimentos que “estouravam” o teto do salário bruto de R$ 33.670. Depois de estrear na magistratura recebendo R$ 18 mil (porque tomou posse o cargo no meio do mês), ganhou R$ 39 mil no mês seguinte e, entre junho e agosto, último dado disponível para 2016, ela recebeu R$ 46.830,15 mensais. Somadas ao salário base de R$ 30.471,11, ela ganha mais R$ 6.202 a título de “indenizações” e R$ 10.157,04 por “vantagens eventuais”.
Marianna fem 35 anos e é ilha do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux. Foi nomeada para o cargo depois de uma polêmica votação do quinto constitucional da seção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O caso dela é apontado no mundo jurídico como um símbolo das distorções salariais que cercam a magistratura. Está longe, porém, de ser o único no Judiciário fluminense. Em agosto, dos 861 juízes e desembargadores do Rio, apenas uma juíza teve contracheque bruto com cifras abaixo do teto constitucional (R$ 33.670); todos os outros o ultrapassaram.
“Esse tema é polêmico. Prefiro não comentar. Meu perfil é diferente do perfil do meu pai. Não vou querer ser indelicada. Vou pedir que tenha compreensão”, disse Marianna à reportagem, quando foi abordada e informada do assunto, na última sexta-feira (25).
Inchaço
Os salários do Tribunal de Justiça são inflados por mecanismos previstos na Lei Orgânica da Magistratura e sobre os quais não incide o corte pelo teto constitucional. Os magistrados têm direito a auxílio-educação para eles próprios e para até três filhos de 8 a 24 anos (R$ 1.052 por filho), auxílio-moradia (R$ 4.377), auxílio-creche (R$ 1.052), de 3 a 5 salários mínimos por adoção, até o filho ter 24 anos.
O auxílio-educação começou a ser pago a partir de 2015. Na ocasião de sua aprovação, foi criticado por integrantes do Judiciário, como o desembargador Siro Darlan. “A população não tem nenhuma obrigação de custear a educação dos filhos dos magistrados e dos servidores do Tribunal de Justiça”, escreveu, na época.
Mas, na ocasião, o presidente do TJ-RJ, desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, comemorou a aprovação do projeto de lei como forma de valorizar o trabalho dos juízes e servidores. “A perda de poder aquisitivo não conhece rubrica, vitimando a todos indistintamente”, afirmou.
Visão crítica
O juiz André Tredinnick, representante no Rio da Associação Juízes para a Democracia, diz que a entidade tem visão crítica contra os chamados “penduricalhos”. “O entendimento é que prestamos um serviço público e não que somos uma aristocracia do serviço público”, afirmou. “A gente defende o adicional por tempo de serviço, que a gente luta para inserir novamente na Constituição, que seria uma forma de remunerar pelo tempo de trabalhos prestados ao Judiciário. De resto, os direitos têm de ser igual aos demais trabalhadores.”
Já a juíza Renata Gil, presidente da Associação de Magistrados do Estado do Rio, saiu em defesa dos auxílios. “Os benefícios são rigorosamente legais e existem em outros poderes e na iniciativa privada”, afirmou.
Crise de legitimidade
Para o presidente da OAB-RJ, Felipe Santa Cruz, o Judiciário fluminense enfrenta crise de legitimidade provocada pelos salários inflados e pelas medidas tomadas durante a crise financeira do Estado. “Num Estado em uma crise aguda, como explicar para a população que um enfermeiro não recebe em dia, o aposentado não recebe, mas os juízes, com supersalários, recebem na frente?”, disse.
Em nota, o TJRJ informou que “os benefícios pagos a magistrados e servidores da Justiça decorrem de legislação específica e são custeadas por recursos próprios do Poder Judiciário, o seu Fundo Especial, observando seu equilíbrio fiscal e orçamentário. Os auxílios são eventuais, condicionados a regras, à situação específica de cada magistrado e não integram os salários.”
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