Autor de um livro que analisa o aprofundamento da intimidade das construtoras com o Estado – Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar –, o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos acredita que as revelações da Operação Lava Jato não serão suficientes para construir um novo modelo de relação entre empresas e governo. Para o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), outros mecanismos que vigoram se encarregarão de manter o status quo. “Existem alicerces institucionais”, avalia.
As práticas de corrupção na ditadura eram semelhantes às que foram reveladas pela Lava Jato?
Existem poucas denúncias de corrupção na ditadura, mas isso não significa, obviamente, que as práticas eram melhores, pelo contrário. Tem um caso emblemático: o Relatório Saraiva. É uma denúncia de corrupção feita por um adido militar da embaixada brasileira em Paris envolvendo o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, de recebimento de propina na compra de equipamentos para uma obra da Camargo Corrêa no Brasil (a denúncia foi arquivada). O relatório vem a público anos depois, numa CPI no início da década de 1980, quando já há mais de dois partidos e o Parlamento tem contraditório expresso.
A relação com os agentes públicos era tão próxima quanto hoje?
Nos esquemas de corrupção de hoje, as propinas são pagas para vários agentes. Para uma empresa chegar à Petrobras, não é como na ditadura, quando ela ia direto até o presidente, aos diretores. A Odebrecht, tudo indica, tinha uma relação direta com o Ernesto Geisel, que foi presidente da Petrobras no governo Médici. Hoje, a empreiteira vai por intermediários. A propina é sistematizada e passa por várias mãos. Todo o esquema de influência das empresas era mais direcionado para o Executivo, por causa da hipertrofia do Executivo. Tudo indica que (a corrupção) era até mais elevada. Como era o sistema de terraplanagem de uma usina hidrelétrica como Tucuruí na ditadura? Ninguém sabe, porque não teve investigação. Sobre o Comperj (complexo petroquímico da Petrobras) há milhões de investigações. Hoje tem TCU (Tribunal de Contas da União), Polícia Federal, Ministério Público, Justiça, imprensa, oposição parlamentar, sociedade civil, movimentos sociais. Quase tudo isso estava amordaçado na ditadura, alguns nem existiam.
A Lava Jato vai mudar esse modelo?
Existe uma relação estrutural dessas empresas com o Estado, que é constituída em certos alicerces, mecanismos institucionais. Tem o financiamento de campanhas, e essas empresas são ativas contribuidoras. Por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), está proibido, e há de se verificar se vai haver mecanismo de fiscalização intenso. A lei de licitações tem várias lacunas, usadas por esses empresários para pedir aditivos de obras, recursos emergenciais. São brechas usadas para desvios de verbas. Nos Estados Unidos, existe a prática da seguradora que verifica se a obra está sendo feita no prazo, com qualidade e no orçamento. Isso não está na agenda do dia no sistema de reformulação das obras públicas no país. São vários mecanismos que, se não forem atacados, eu vejo uma possibilidade remota de haver mudança. Claro que a punição pedagógica da Justiça pode ser um fator que iniba esse tipo de prática, mas daí a anular, eu acho delicado. É a forma como opera a política, todo o regime de obras no país.
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Leia a matéria completaNem a médio prazo?
As empresas estão organizadas e acho que vão ser refratárias a uma mudança sistemática nesse modelo. As sinalizações do Congresso têm sido num caminho oposto. E esses (financiamento de campanha e pagamento de propina) não são os únicos mecanismos de poder sobre a administração pública. Existem as emendas parlamentares, e os sinais são inclusive contraditórios. A Justiça vai lá e proíbe o financiamento privado, mas a Câmara dos Deputados, sob a presidência de Eduardo Cunha, aprovou o orçamento impositivo, que fortalece a prática das emendas parlamentares. Segundo as denúncias que já li, muitas delas partem de acordo prévio com empresas, o que é a presença dos interesses desses empresários sobre a vida parlamentar e a determinação do orçamento.
As empresas anunciaram mudanças internas para inibir a corrupção. É possível confiar?
Acho que, às vezes, o termo corrupção nos desloca do foco. Essas empresas estão organizadas há muito tempo para pautar as políticas públicas. Elas são muito organizadas. Criam necessidades de infraestrutura e de obras e, ao mesmo tempo, não necessariamente esses projetos, vendidos como se fossem urgências, correspondem aos anseios da população. O poder de pautar as políticas estatais, para além das práticas de pagamento de propina e outras irregularidades, me parece longe do fim.
A Lava Jato, por consequência, provocou uma insatisfação geral com a política. Esse vazio pode abrir espaço para um novo regime totalitário?
Desejo muito que isso não aconteça, mas é sempre uma possibilidade em aberto. A impressão é que esse tipo de manifestação pública parte de um desconhecimento sobre o que está acontecendo, o que está em jogo e o que estava em jogo naquela época. Não só essas empresas eram corruptas naquela época, era muito mais grave. Elas apoiaram e financiaram o golpe (militar). O Sebastião Camargo (fundador da Camargo Corrêa) financiava a Operação Bandeirantes, que torturava e matava. A gente vê as pessoas defendendo intervenção militar, mas é justamente o contrário. As denúncias de corrupção virem a público são sintomas de saúde do estado democrático de direito brasileiro. A Lava Jato, de certa forma, vem de um processo de formação da Justiça, dos mecanismos de fiscalização que se construíram a partir da Constituição de 1988.
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