Cerca de três horas depois da deposição da petista Dilma Rousseff (PT), condenada pelo Senado por crime de responsabilidade, o presidente Michel Temer (PMDB) será alçado definitivamente ao comando do país. O ato de posse de Temer começou depois das 16 horas, no plenário do Senado. Temer ocupava a interinidade desde maio, quando Dilma foi afastada temporariamente.
O peemedebista de São Paulo, casado com Marcella, de 32 anos, e pai de cinco filhos, agora põe à prova uma percepção dele sobre ele mesmo, que tornou-se pública a partir de uma emblemática frase, em agosto do ano passado, em meio ao agravamento das crises política e econômica. “É preciso que alguém tenha capacidade de reunificar a todos”. Foi a senha para Temer abandonar gradativamente sua habitual discrição e passar a trabalhar abertamente pelo afastamento de Dilma.
Foi o início do fim de uma aliança jamais bem resolvida. Uma relação que, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tinha jeito de namoro. E que virou casamento, quando PT e PMDB disputaram, em chapa única, a Presidência e a vice, em 2010, com Dilma e Temer. Dobradinha repetida, em 2014. Casamento desfeito, em 2015.
Os movimentos que levaram ao “divórcio” e à acusação de traição pela presidente Dilma, no entanto, já se acumulavam, antes mesmo da mudança de tom do sempre discreto presidente da República. À época, no começo de 2015, a Operação Lava Jato aproximava-se do governo, a economia desacelerava em ritmo frenético, a popularidade da petista despencava. Enquanto o governo rumava para o colapso, Temer já consultava seus advogados e assessores políticos para encontrar saídas que lhe possibilitassem sobreviver ao eventual ocaso de sua companheira de chapa.
Para o vice, mais que evitar ser tragado politicamente pela tempestade que começava a envolver o governo Dilma, havia o vislumbre de uma porta que daria acesso indireto ao poder. Afinal, sob o comando de Temer, o PMDB preteriu candidaturas próprias em 2010 ou 2014, quando já era o maior partido no Congresso, e teria, portanto, porções mais generosas de tempo de televisão e fundo partidário.
Temer já presidia o PMDB há mais de dez anos, havia sido duas vezes presidente da Câmara, mas tivera uma votação decepcionante em 2006. Analistas apontavam a ausência de uma liderança nacional na legenda, dividida em feudos e que, desde 1994, não tinha uma candidatura presidencial. Num passo simbólico, Temer então encomendou, em maio do ano passado, um primeiro “comunicado” à nação: o documento “Ponte para o Futuro”, com críticas à gestão Dilma e diretrizes gerais de governo.
Desde então, os movimentos do vice passaram a ser oscilantes: quando via espaço para aparecer como alternativa para “reunificar a todos”, avançava; intimidado pelo governo ou pela conjuntura política, recuava.
Jurista de muitos adjetivos
Mordomo de filme de terror, fisiológico, gentleman, discreto, vice decorativo, cordial, conciliador, formal, esfinge, jurista, anódino, amante da poesia. Esses são alguns dos termos que já foram usados para se referir a Michel Temer, que começou a vida política como segundo tesoureiro do centro acadêmico no curso de Direito da Universidade de São Paulo, em 1959, e pode chegar à Presidência da República sem ter recebido um voto sequer para tanto.
Nascido em 1940 em Tietê (SP), Temer tem cinco filhos, cujas idades variam de 7 a 47 anos, e é casado com Marcela, de 32. De origem libanesa, é virginiano. Gosta de ser visto como um jurista competente e não esconde o orgulho de ter um de seus livros, “Elementos do Direito Constitucional”, utilizado em diversas faculdades.
Esta não é a primeira vez que Temer chega ao poder por acesso indireto. Candidato a deputado em 1986 pelo PMDB de São Paulo, Temer não se elegeu, mas assumiu uma vaga como suplente, o que lhe possibilitou participar do histórico momento de 1988, depois de ter se mantido neutro diante do golpe militar.
O articulador
No início do segundo mandato de Dilma, as relações de Temer com sua “chefe” já eram marcadas por ressentimentos. O então vice-presidente lidava com a fúria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) contra o Planalto e o azedume de Renan Calheiros, possesso com a demissão de um afilhado político. Farejando a crise no principal partido da base aliada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu a Dilma que alçasse Temer à coordenação política do governo. O gesto não foi movido por afeto. Lula e o então vice nunca foram muito próximos.
A nova missão de Temer durou apenas dois meses — tempo suficiente para construir a narrativa segundo a qual estava sendo boicotado pelo Planalto, que não honrava os compromissos assumidos por ele em negociações. A troca de acusações mútuas ajudou a sustentar o afastamento contínuo entre Dilma e seu vice.
O pote de mágoa viria a ser aberto em dezembro, na famosa carta divulgada acidentalmente — jura o vice —, em que Temer elencou alguns dos incontáveis episódios que melindraram seu relacionamento com Dilma. Depois de viver como “vice decorativo” nos quatro primeiros anos de mandato, como se autodenominou, passou a ser visto como um intruso e com desconfiança. Os aliados dizem que ele se arrependeu da carta, que expôs traços “pouco estadistas” de seu caráter, como na reclamação por indicações a cargos não atendidas.
A carta veio dias depois de o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ter acatado o pedido de impedimento e de Temer ter desmentido dois ministros de Dilma, que o alistaram na linha de frente da resistência ao impeachment: “Não disse isso em momento algum”, afirmou categórico. Submergiu, então, em reclusão.
Nos bastidores
O então vice-presidente, porém, nunca ficou parado nos bastidores. Em julho do ano passado, enquanto a Lava Jato produzia seus desdobramentos, encaminhando as denúncias contra Cunha e excluindo Renan, Temer aproveitou a coordenação política para traçar o tabuleiro sobre o qual se movimentaria. Com a ajuda de Eliseu Padilha, então ministro da Aviação Civil e um de seus mais fiéis aliados, aproveitou para mapear todos os cargos do governo, as indicações dos parlamentares e o perfil de votos de cada um. “Eu deixei uma cópia (para o governo). Se eles perderam, é porque são tontos”, disse Padilha ao deixar a função.
Temer usou as planilhas por semanas na negociação com os parlamentares. Ligou pessoalmente para alguns deputados indecisos para tentar convencê-los, sem pedir voto “sim” de forma direta: “Veja bem, você tem que avaliar a conjuntura no seu estado, ver o que é melhor para você”.
Na mesma ocasião, quando Cunha deflagrava o pedido de impeachment de Dilma, Padilha desembarcava do governo. O gesto foi interpretado como a intensificação dos trabalhos que levariam Temer ao comando do país. A frase mais proferidas pelos peemedebistas resumia o espírito da saída: “Padilha é o Temer”.
Depois, foi a vez de pedir ao TSE a separação das responsabilidade nas análises das contas de campanha daquelas apresentadas por Dilma: “Não posso ser culpado por erros dos outros”, disse a aliados.
A ligação com Cunha
Eduardo Cunha intensificou a relação com Temer desde a reeleição. Os aliados mais próximos do vice gostam de dizer que o presidente da Câmara “forçou amizade” com o vice e que sempre houve uma “distância de segurança” entre ambos. Na realidade, porém, Cunha frequentou o Palácio do Jaburu, residência oficial do vice, com a assiduidade dos amigos. Nem mesmo quando foi acusado de receber propina da Petrobras e ser denunciado pelo Ministério Público deixou de prestar visitas ao presidente de seu partido.
Em dezembro, minutos antes de anunciar que acolheria o pedido de impeachment, foi a Temer que Cunha telefonou. Segundo relatos, o vice-presidente nada fez para impedi-lo.
Os aliados do vice sempre creditam à cortesia derivada de seu temperamento “afável” o fato de Cunha nunca ter sido por ele cortado. Para petistas, o motivo é outro: estariam juntos numa conspiração para viabilizar “um golpe”. Nas semanas que antecederam a votação do processo na Câmara, o Palácio do Planalto e o PT intensificaram o discurso de que ambos estariam agindo unidos.
“É um misto de decepção e perplexidade. Temer e Cunha são carne e unha. Aos poucos, foi se consolidando uma relação umbilical entre eles. Nessa tese do impeachment, um era presidente, e outro, vice”, afirmou no fim do ano passado o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE).
Tudo ou nada
Temer assumiu com vontade o corpo-a-corpo para conseguir os 367 votos que levaram o processo de impeachment da Câmara dos Deputados para o Senado. A exemplo de Dilma, não fez discriminações. Por exemplo, insistiu num encontro com o ex-deputado Valdemar Costa Neto (PR), condenado no mensalão e que usa tornozeleira eletrônica.
Dilma o chamou de conspirador e traidor. Os peemedebistas retrucaram que a presidente só estava colhendo o que plantou. E sustentaram que, se o Planalto tivesse chamado Temer para participar do governo, teria errado menos.
Uma das maiores frustrações de Temer como vice foi não ter conseguido encontrar com seu análogo americano, Joe Biden. Foi excluído da reunião que Dilma teve com ele. Foi convidado para um encontro em Washington, mas teve que cancelar porque a data coincidiu com a convenção do PMDB que marcou a saída da sigla do governo.
Agora, seus amigos brincam que talvez o único encontro de Temer com Biden será como presidente brasileiro, a exemplo do que Dilma fez quando tomou posse. A vingança, dizem aliados de Temer, é um prato que se come frio.
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