Advogado com atuação em causas polêmicas como o casamento homoafetivo, o aborto de anencéfalos e a extradição do italiano Cesare Battisti , Luís Roberto Barroso foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) em junho. E, logo de início no STF, já participou de outro julgamento controverso: o processo do mensalão. De passagem por Curitiba na última sexta-feira, onde participou do Congresso Estadual do Ministério Público, Barroso deu uma entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.
Antes de ser ministro, o sr. ficou conhecido por sua atuação como advogado em diversos casos emblemáticos do STF. Como está sendo essa transição do advogado Barroso para o ministro Barroso?
É uma transição relativamente difícil. A primeira grande diferença é que um advogado pode escolher as causas em que vai atuar, ao passo que um juiz, e um ministro do Supremo em particular, é obrigado a decidir o que aparece. Em segundo lugar, eu diria que o Supremo tem uma carga de Direito Penal muito intensa. E eu preciso dizer, com franqueza, que não gosto desse poder de decidir sobre a liberdade ou não das pessoas. Cumpro meu dever, mas não gosto desse papel.
O sr. foi nomeado para o STF no fim do caso do mensalão, e votou na questão dos embargos infringentes. Foi um momento de pressão?
Eu fui para o Supremo depois de uma vida muito feliz na advocacia e na academia, como professor. Fui para cumprir uma missão, e fui com muito gosto. Então, mesmo nos momentos de maior pressão e incompreensão, vivi em paz comigo mesmo.
O mensalão foi provavelmente a ação mais destacada na imprensa na história do STF. Como o sr. avalia a participação da mídia no processo?
A vida democrática tem um fluxo espontâneo que você não consegue, nem deve querer, controlar. Acho que o Brasil vive um momento de plenitude democrática e de um exercício pleno da liberdade de imprensa. Em matéria de liberdade de imprensa, acho que o excesso é melhor do que a escassez. Portanto, não acho que a gente deva se queixar do excesso de intromissão da imprensa. Feita essa ressalva, uma característica desse momento que o Brasil vive é que a imprensa não se satisfaz em noticiar. Ela frequentemente quer ir além e influenciar o julgamento. Como o país é livre, as pessoas podem adotar o comportamento que desejem. Mas quem julga não pode sofrer essa influência.
O sr. se refere ao ministro Celso de Mello, que recebeu uma enorme pressão para votar contra os embargos infringentes [que garantiram o direito a um novo julgamento para alguns réus]?
Não. Estou apenas dizendo que a imprensa em geral e a opinião pública em particular são elementos importantes em um regime democrático, e que um juiz precisa saber lidar com isso. Um juiz não pode julgar para ganhar uma manchete favorável. Cumprir a Constituição muitas vezes significa tomar a decisão que não é a mais popular. O sr. votou favoravelmente aos embargos o que, no momento, parecia a decisão mais impopular. Qual a justificativa?
O Judiciário muitas vezes tem esse papel contramajoritário. Às vezes, as multidões se embriagam de paixão e é o juiz quem tem que se conservar lúcido. Acho que no mensalão, em alguma medida, isso aconteceu quando os embargos infringentes foram admitidos. Eles estavam na legislação. A meu ver, era fora de dúvida que eles cabiam.
O mensalão mineiro, que envolve o PSDB, deve ser julgado no próximo ano. A repercussão deve ser a mesma que a do mensalão do PT?
Não sei. Da minha parte, vai haver a mesma isenção.
Voltando ao mensalão, a condenação de políticos por corrupção é algo raro no Brasil. Por quê?
Isso não envolve apenas a corrupção. O Brasil é, historicamente, uma sociedade de classes e uma sociedade na qual o Direito Penal, tradicionalmente, foi muito seletivo. O Direito Penal só alcança pobres. Ou pior, pobres mal defendidos. O país nunca foi aparelhado adequadamente para a punição da criminalidade econômica. Nesse sentido, o mensalão foi um ponto fora da curva. Não apenas porque o Supremo foi mais punitivo do que era sua tradição. Esse caso quebra um pouco a tradição de impunidade da criminalidade acima de um determinado estrato econômico. Quanto à questão de existirem inúmeros inquéritos e ações penais contra políticos, acho que, dentro de outros fatores, o sistema político brasileiro induz à criminalidade. É um sistema em que as eleições são caríssimas, há uma necessidade imperativa de financiamento de campanhas e é nesse financiamento que o Brasil lícito encontra o Brasil ilícito. Acho que todo esse esforço trará pouco proveito se na prática nós não promovermos uma reforma política que diminua a causa do problema, que é o custo das eleições.
O sr. fala em aparelhamento da Justiça para a punição dos pobres...
Não é só a Justiça. O Direito Penal está precisando ser repensado, o sistema penitenciário brasileiro precisa de uma revolução, a polícia precisa ser revalorizada e requalificada. Portanto, o sistema punitivo brasileiro em geral não só é deficiente como é um sistema de classe. Ele é aparelhado para punir pobres.
Mas o problema está na lei ou na atuação do Estado?
As duas coisas. É muito fácil condenar alguém que porta uma pequena quantidade de maconha. Mas é quase impossível alguém ir preso por sonegação. O sistema legislativo é duro com as drogas e leniente com a sonegação.
Houve momentos de tensão entre o Judiciário e o Legislativo ao longo dos últimos anos. Como o sr. vê esse clima institucional?
Acho que as relações do Supremo com o Legislativo são boas. Mas existe uma fronteira entre os poderes que se estende e se retrai de acordo com as circunstâncias. Em algumas matérias em que o Legislativo não pode ou não quis atuar, o Judiciário se expande. Existe uma linha de fronteira em que não é totalmente nítido se você está interpretando a Constituição ou tomando uma decisão política. Por essa razão surgem tensões eventuais. Nada mais normal em uma democracia.
O sr. atuou como advogado em dois casos emblemáticos no STF: o casamento homoafetivo e a descriminalização do aborto de anencéfalos. São esses os casos fronteiriços do qual o sr. está falando?
Penso que esses dois casos envolviam interpretação da Constituição, pois envolviam direitos fundamentais. Onde há um direito fundamental em jogo e o Legislativo não tenha atuado, o Judiciário tem o dever de fazê-lo. Contraria a ideia contemporânea de igualdade você discriminar uma pessoa em razão da sua orientação sexual, assim como, ao meu ver, contraria a ideia de dignidade da pessoa humana obrigar uma mulher a manter a gestação de um feto inviável.
O sr. foi advogado de Cesare Battisti. Hoje, temos o caso do Henrique Pizzolato, condenado por corrupção no Brasil e, possivelmente, foragido na Itália. O sr. vê algum paralelo entre os dois casos?
Não há nenhum tipo de relação entre os dois casos. Sua frase está correta: são casos paralelos e não vão se encontrar nunca. O Cesare Battisti era um cidadão italiano refugiado no Brasil que tinha sido julgado na Itália há quase 30 anos em um processo em que não se observaram garantias mínimas e em um ambiente de perseguição política. Portanto, era um italiano refugiado no Brasil. O caso do Pizzolato, pelo que eu li na imprensa, é de uma pessoa que tem dupla nacionalidade e que está se beneficiando do fato de que a Itália, como a maior parte dos países do mundo, não concede extradição de seus nacionais.
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