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O que têm em comum um caso de chacina e um caso como o de Maringá, em que um motorista que estacionou em vaga para deficiente sem autorização e teve seu carro coberto de papeizinhos azuis e brancos, formando o símbolo da vaga para deficiente? Pode este caso ser considerado como uma espécie de “linchamento moral” do sujeito que estacionou na vaga? Mas se é assim o que nos inclina a ter simpatia num caso como o de Maringá e ojeriza aos casos de linchamento? Estamos usando dois pesos e medidas? É tanto interessante tentar identificar as semelhanças nos dois casos quanto perceber a relevância do contexto e dos detalhes para compreender as diferenças.

Em ambos os casos, talvez se possa dizer, haveria algo como uma ameaça ou suspensão provisória de um “pacto social”, isto é, tanto o linchador como o autor da pegadinha pode ser visto como alguém que desespera da transferência do direito de punir ao Estado, zelador pactuado da manutenção das leis, frente à reiterada e rotineira experiência de observar outros violando o mesmo pacto sem sofrer sanção. Em certo sentido, é como se se estivesse reagindo em nome daquilo que idealmente se tivesse pactuado, uma vez que se constata que os meios pactuados de garantir o cumprimento da lei parecem sistematicamente falhos. No Brasil, todos sabemos, é um lugar comum reconhecermos a precariedade com que o poder organizado cumpre sua parte no pacto; portanto, vivemos um “pacto” esgarçado desde a sua origem, graças aos quais tanto as violações das leis quanto talvez as reações a ela são mais comuns do que em outros países mais civilizados.

Mas esse modelo explicativo é limitado. A oposição entre a população-vítima e o Estado-incompetente é a tal ponto um chavão entre nós que ela também pode servir de razão no sentido inverso. Não é nada raro ver que os motoristas que param em lugar proibido reclamam de serem multados como se fossem eles as vítimas? Como diz um conhecido meu de outro país, no Brasil todos são cheios de direito: eu tenho direito de parar onde quiser (já que o estado é uma porcaria), eu tenho o direito de ouvir a minha música no último volume sem que ninguém reclame etc. Ninguém, é claro, deveria ter razão de reagir deste modo; mas pode ter razão nos outros casos?

Assim, talvez os diferentes casos mencionados também compartilham dos riscos inerentes à presunção de realizar a justiça por conta própria, isto é, o de amplificar a injustiça ou gerar outras. Não é impossível que o carro esteja estacionado na vaga de deficiente por razões alheias à vontade do motorista. E como diferenciar, afinal, um caso de linchamento e o episódio de Maringá?

Se não formos capazes de ver uma diferença “de natureza” entre os casos assim focalizados, isso não significa que as demais diferenças contextuais que dão significado aos dois tipos de ação não sejam decisivas aqui – ao menos para os sentimentos que nos geram. Os casos são muito diferentes, é óbvio, na gravidade da infração com que os presumidos justiceiros cometem para reparar a justiça (se é que a colagem dos papeizinhos é tipificada como uma infração). São muito diferentes também na presunção com que a culpa está sendo imputada, pois o carro estacionado é em si mesmo a evidência de uma infração. Ainda, no direito que se concede àquele que se pretende punir a se defender: pois no caso de Maringá a própria reação do motorista acaba por denunciar a sua consciência de estar cometendo uma contravenção. Em um caso a transgressão é bem humorada, noutro é assassina. Num caso a inteligência, noutro a pura ira. Mas talvez a principal diferença resida no sentido que cada um dos gestos ganha no seu contexto: se um caso de linchamento é indeterminado quanto à sua motivação efetiva, a pegadinha politicamente correta veicula expressamente uma mensagem de defesa das regras de respeito coletivo sistematicamente violadas. E talvez seja por isso principalmente que ele nos move a uma certa solidariedade (isto é, a nós que não nos limitamos a olhar para o motorista como um otário que se deixou pegar no pulo, mas como a alguém que deveria compreender adequadamente o significado da lição). Talvez, pouco a pouco, nos tornemos mais numerosos e possamos gastar melhor nossa energia.

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