O número de pessoas que saíram as ruas no último domingo (15) chamou atenção para um clima de instabilidade política que há muito não se sentia no Brasil. Porém, ao mesmo tempo que as manifestações mostram o amadurecimento da democracia, alguns grupos bradaram contra o sistema democrático, solicitando uma “intervenção militar constitucional” ou mesmo um golpe de Estado. “É interessante que alguns grupos queiram retrocessos, mas ao mesmo tempo a liberdade de expressão, que é cerceado em uma ditadura, seja tão valorizada”, diz a cientista política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Maria do Socorro Braga.
Para ela, mesmo que haja a defesa da ditadura, é difícil que os movimentos antidemocráticos deslegitimem os protestos como um todo, já que a pauta dos protestos de agora tem se mostrado mais clara que a das manifestações de junho de 2013, quando o movimento dos “black blocs” tirou as pessoas das ruas. “É como se as pessoas estivessem procurando estabelecer um novo contrato social. Ainda não se sabe muito o que se quer, mas está claro que pelo menos o grupo da classe média não está satisfeito”, diz Maria do Socorro. O combate à corrupção e a crise econômica, porém, representam um desafio imediato para o governo. A reportagem listou, com a ajuda da cientista política, ao menos cinco motivos que levaram as pessoas as ruas e cinco outros que devem ser considerados quando se fala em volta à ditadura.
lado positivo
Cinco motivos que levam as pessoas as ruas:
Democracia
As manifestações são os melhores meios para se medir a quantas anda a participação popular em um país. Os protestos, possíveis justamente em função de um sistema democrático, reforçam ainda mais a democracia. Apesar de gerar instabilidade política, a manifestação é ferramenta para “fazer acordar” os políticos para as reivindicações populares.
Fim da corrupção
Pesquisas realizadas em diversas cidades do país durante as manifestações da última semana mostraram que a maior parte das pessoas foi às ruas para pedir o fim da corrupção e a punição de políticos envolvidos em desvios. Especialistas apontam diversos fatores que tornam o Brasil mais vulnerável à corrupção, partindo da própria cultura política do país. A cobrança e fiscalização da sociedade civil colabora para a elaboração de novas ferramentas anticorrupção.
Reforma política
A organização e as normas que regem o sistema político brasileiro e as eleições são temas debatidos há tempos no país. O assunto quase sempre volta à tona apenas com a mobilização popular. Os protestos de 2013 são um exemplo claro disso e, apesar de poucos avanços, ao menos a minirreforma eleitoral acabou aprovada em dezembro daquele ano. As medidas, que pretendem reduzir os gastos de campanha com a limitação de cabos eleitorais e de despesas com alimentação e combustível, passarão a valer em 2016.
Situação econômica
Além de desafiar os governos nas esferas federais e estaduais, a crise econômica gera impactos em todos os cidadãos. A expectativa sobre a economia já não ia bem, mas a confluência de fatores e o escândalo da Petrobras tem feito a inflação e os juros subirem, o poder de compra do brasileiro baixar, e a expectativa de manutenção de empregos e novas contratações também cair. “Isso tudo é ruim para a democracia, a crise acaba radicalizando o discurso, porque as pessoas sentem no bolso”, diz a cientista política da UFSCar, Maria do Socorro Braga.
Benefícios trabalhistas
Antes de assumir o governo e durante o período eleitoral, as promessas eram de manutenção de todos os direitos trabalhistas, mesmo diante da crise econômica. Logo nos primeiros meses do ano, a ideia de ajuste fiscal, como redução da desoneração da folha de pagamento das empresas e a mudanças nas regras de acesso a benefícios trabalhistas, passou a pautar o governo. E não apenas o federal. No Paraná, os professores conquistaram uma vitória diante do plano de medidas de contenção de despesas. Eles não deixaram a Assembleia aprovar projetos que mexiam com o funcionalismo. (KB)
lado negativo
Cinco motivos para não querer a volta da ditadura:
É inconstitucional
O Estado democrático de direito, com garantias à vida, liberdade e igualdade, está previsto na Constituição de 1988, promulgada depois de um longo período ditatorial. A mesma Constituição não abre brechas para golpes ou “intervenção” militar, como alguns manifestantes que foram às ruas na semana passada defenderam. Há dispositivos na lei que, inclusive, estabelecem como crime a incitação a golpe ditatorial.
Risco aos direitos humanos
Muitos dos que se manifestaram contra a ditadura foram perseguidos pelo governo militar, que usava de métodos violentos para silenciar movimentos contrários. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, divulgado no fim do ano passado, traz uma série de violações aos direitos humanos ocorridas no país entre 1964 e 1970, como prisões ilegais e arbitrárias, tortura, execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáver.
Censura
A censura à imprensa e à produção artística foram marcas fortes do período ditatorial. Os militares criaram o Conselho Superior de Censura, cujas regras orientavam o posicionamento da mídia. As críticas ao país, seja por meio de notícias, peças teatrais, músicas, ou seja, qualquer meio de difusão de informações, eram passíveis de retaliação. A Lei de Imprensa, criada em 1967, previa, por exemplo, multas e até o fechamento de veículos de comunicação e sanções para os jornalistas que desobedecessem as ordens dos militares.
Restrições à representação política e sindical
Os militares extinguiram o multipartidarismo e instituíram apenas duas legendas, a Arena, da qual os governistas faziam parte, e o MDB, da oposição. Com todos os oposicionistas aglutinados na mesma sigla, a força política era pequena. O governo também detinha o poder de suspender os direitos políticos de qualquer cidadão. O Ministério do Trabalho passou a controlar manifestações sindicais, enfraquecendo as instituições que lutavam por mais direitos dos trabalhadores. Com isso, leis trabalhistas eram descumpridas.
Falta de transparência
Sem a possibilidade de ao menos contestar as ações do governo militar, o acesso às informações de interesse público, como gastos em cada área, era restrito. Nem as contas do governo eram analisadas pelo Congresso e não havia possibilidade de formação de conselhos de fiscalização. Com a oposição enfraquecida e a mídia censurada, a possibilidade de jogar luz sobre casos de corrupção do governo era nula. Gastos com obras como a da Usina de Itaipu e da rodovia Transamazônica, por exemplo, foram mantidos em total sigilo. (KB)
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