O que poderia ser apenas mais um acidente trágico com mortes a entrar para as frias estatísticas de trânsito acabou provocando a primeira renúncia de um deputado estadual na história do Paraná e expôs um histórico de multas não só de homens públicos, mas de 68 mil cidadãos que continuam dirigindo com a carteira de habilitação suspensa.
Em 22 dias, uma sequência de fatos desencadeada desde que os jovens Gilmar Rafael Yared e Carlos Murilo de Almeida foram mortos em um acidente provocado pelo ex-deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho (PSB) culminou com a decisão do governo do estado de "caçar" os motoristas que ignoram as leis de trânsito.
Neste período, a população protestou contra a impunidade no trânsito, cobrou respostas da polícia, do Judiciário e da Assembleia Legislativa. Saiu às ruas em passeatas e fez campanha com adesivos nos carros "190 km/h é crime".
Na Assembleia Legislativa, a perda do mandato de Carli Filho era tida como inevitável pelos deputados, que temiam o desgaste político de votar contra o processo de cassação.
Diante do cerco formado ao redor de Carli Filho, a renúncia e o pedido de desfiliação do PSB na última sexta-feira não chegaram a surpreender e puseram fim a uma trajetória política que estava apenas começando. Ele foi eleito pela primeira vez para o cargo em 2006, com 46.686 votos e aos 24 anos de idade o mais jovem da Assembleia Legislativa.
Repercussão
Não por acaso o acidente teve todos os ingredientes para uma repercussão nacional. Um deputado jovem, rico, filho de prefeito, dirigindo um carro importado com a carteira de motorista suspensa, embriagado, em altíssima velocidade. Dois mortos.
Os questionamentos são inevitáveis. Há quem defenda que, por ser um parlamentar, ele deveria servir de exemplo para a sociedade. Para outros, os parlamentares representam a sociedade e reproduzem a mesma conduta da população. "É constrangedor para mim ver um parlamentar do meu partido com tamanho desatino como esse menino, que merece punição exemplar, mas casos como esse são centenas no Brasil e temos de nos indignar contra todos que enchem a cara, pegam um carro e matam no trânsito. Quem age assim chama a responsabilidade para si e deve responder por homicídio doloso", diz o presidente da Frente Parlamentar pelo Trânsito Seguro, deputado federal Beto Albuquerque (PSB-RS).
Em todo o Brasil, morrem por dia 100 pessoas vítimas do trânsito. No Paraná, só no ano passado, 2.077 perderam a vida em acidentes, 360 em Curitiba.
Para Beto Albuquerque, que defendeu a perda de mandato e a expulsão de Carli Filho do PSB, a população espera que o parlamentar que faz a lei seja o primeiro a respeitá-la, mas no trânsito o sentimento de impunidade é geral. "O que acontece dentro da Assembleia é mais lamentável porque envolve autoridades públicas, mas é tão grave quanto qualquer outro condutor agir assim. Não importa o pedigree do sujeito que comete a infração", argumenta o presidente da Frente pelo Trânsito Seguro.
Consequências
O "efeito Carli" levou até a Secretaria de Segurança Pública endurecer as regras contra carteiras vencidas. Ao determinar a entrega das habilitações às autoridades de trânsito em 48 horas, sob ameaça de prender os desobedientes, conseguiu tirar de circulação 1.595 carteiras no Paraná na quinta e na sexta-feira 730 só em Curitiba. Antes da medida, o Detran do Paraná havia recolhido nos 5 primeiros meses do ano 1.875 habilitações suspensas. Ao todo, 68 mil motoristas ainda estão com a carteira suspensa.
Nesse universo em situação irregular, 26 deputados estaduais já receberam notificação de suspensão de carteira. A descoberta também veio na esteira do caso Carli.
Sensacionalismo
Para o cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Sérgio Braga, os números preocupam, mas a população precisa separar a situação envolvendo Carli Filho do histórico de infrações dos outros deputados. "Eles estão assumindo as multas, entregando as carteiras e respondendo pelas multas como qualquer cidadão comum. Acho que não se deve fazer muito sensacionalismo nisso porque eles não estão reivindicando privilégios", diz o analista, que faz parte do movimento Vigilantes da Democracia, que monitora o trabalho dos deputados estaduais e federais há 1 ano e 6 meses.
O que deve ser investigado, segundo Braga, é a chamada "indústria da multa", porque não só os deputados são vítimas. "As pessoas pensam que o deputado é um ser à parte e só porque tem mandato não pode receber multa. Milhares de cidadãos comuns também estão sendo multados diariamente", comparou.
Já para o advogado Marcelo Araújo, consultor e professor de Direito de Trânsito da Unicuritiba, a resposta está no comportamento dos motoristas. "A indústria da multa é como outra qualquer. Só existe porque tem muita matéria-prima. Se deixar de haver infrações, não tem razão mais para existir e para de funcionar", analisa.
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