"Não desejo para ninguém passar por essa experiência." As palavras são de um dos controladores que acompanhavam o Legacy no dia do acidente com o Boeing da Gol que fazia o vôo 1907, dia 29 de setembro, que matou 154 pessoas. É a primeira vez que um profissional que estava de plantão naquele dia dá uma entrevista. Localizado pelo G1, esse controlador, que trabalha no Cindacta-1, em Brasília, só aceitou falar sob a condição de não ser identificado. E fez um alerta sobre a precariedade do controle de tráfego aéreo no Brasil: "A bomba-relógio está ligada novamente. Vai estourar. Já aconteceu e vai acontecer novamente''. A seguir, os principais trechos da entrevista. G1 - Como tem sido o seu dia-a-dia?
Controlador - Bem chato. Eu só penso naquilo que me machuca, me maltrata. Te deixa impotente em algumas situações. Você fica sem previsão de algum futuro, sem previsão de expectativa de melhora, de piora. Não que me sinta culpado, pois não tenho sentimento de culpa, porque dentro da minha capacidade profissional fiz a minha parte. Mas existe a cobrança pessoal, a cobrança de família. Toda uma dedicação ao serviço. É justamente essa injustiça da vida. Você se pergunta por que eu fui escolhido para estar ali naquele momento, por que não outra pessoa. Não é nada confortável e não desejo para ninguém passar por essa experiência. É complicado. A parte emocional ficou muito comprometida.
G1 - Como você ficou sabendo do acidente?
Controlador - Depois de uns 20, 25 minutos senti falta do Gol. Cadê o Gol? Começou aquela barata tonta. Foi quando o piloto do Legacy pousou no Cachimbo (Base Aérea onde o jatinho Legacy fez o pouso de emergência depois do acidente), ligou para Manaus, e falou: "Vinha voando, mantendo o tempo todo 370, colidi com alguma coisa e fiz um pouso de emergência". E falaram que houve uma colisão. Como isso aconteceu se o cara vinha em 360 e o outro a 370 [altitudes diferentes]"?
G1 - Você saiu a que horas [no dia do acidente]?
Controlador - Uma hora, uma hora e meia depois, porque tinha pouca gente na equipe pra render também. A gente é preparado para agüentar um tipo de pressão, segurar a onda, segurar o emocional. Aí comecei a me imaginar no lugar de cada pessoa, no lugar do piloto, no lugar do comissário, no lugar do cara que estava botando o filho para buscar um monte de gente e ver aquela cena trágica, foi horrível. Aí fiquei só...e, graças a Deus, culpa minha não foi. É um consolo que eu tenho, até hoje.
G1 - Tem se dito que o número que aparecia na tela do sistema era 36 mil pés após passar por Brasília.
Controlador - Como o sistema modificou de forma automática, a informação da direita dizia mesmo 36 mil pés, nível 360 [parte do radar que mostra o plano proposto de vôo]. Porém, no lado esquerdo, a altitude real que a aeronave estava mantendo apresentava variação. Era uma questão técnica de transponder [equipamento que envia dados para o radar do controle aéreo e para outras aeronaves].
G1 - Quantas vezes você chamou o Legacy?
Controlador - Várias. Na hora não tem como. São vários aviões que a gente atende constantemente, não tem como contar para esse eu fiz tantos [chamados] para outro tantos.
G1 - Outras pessoas tentaram chamar o Legacy?
Controlador - Não, porque estava dentro da minha [área], mas o acidente foi na área de Manaus. Saiu da minha área e umas 30 milhas depois aconteceu a colisão. Foi quase na divisa. G1 - Quando houve o acidente, quem controlava [o Legacy] era Manaus?
Controlador - Pelo local do acidente, pela experiência de distância e velocidade, Manaus teve de três a cinco minutos para resolver o problema. Esse pontinho aqui, Nabol (ponto imaginário no espaço aéreo para controle de tráfego), é um ponto de notificação compulsória. O piloto tem a obrigação de tentar chamar comigo ou tentar chamar Manaus.
G1 - Como foi o dia seguinte ao acidente?
Controlador - Tenho uma certeza: caí de pára-quedas naquela situação. Jamais imaginei que estivesse na mesma altitude. É uma experiência horrível. Pra mim é difícil em especial quando falo com minha família por telefone. Quando ouço voz de pai, mãe, irmão... Já expressei minha vontade de sair, de ser transferido. Não quero voltar aqui para Brasília.
G1 - Então você quer continuar sendo controlador de vôo?
Controlador - Sim, gosto. É interessante, isso não me melindra em continuar a trabalhar com essa função. Para quem gosta, é um vício. Se eu me sentir seguro com o sistema, volto. G1 - O relatório preliminar diz que vocês tentaram falar com o Legacy sete vezes e não conseguiram. Há um ponto cego em que é difícil a comunicação entre o centro de controle e as aeronaves na região do acidente?
Controlador - Com certeza, e não é à toa que é o próprio local em que ocorreu o acidente. Na minha área de controle mesmo, a área é cega, surda e muda.
G1 - Também foi dito que a pessoa que estava monitorando o Legacy havia sido homologada em 2006.
Controlador - Tenho seis anos [de controlador de vôo]. Na verdade, quatro anos e meio, pois um ano e meio foi de estágio, homologação. Não dá para saber o tempo de homologação de cada colega de turma. Existiam pessoas de vários tempos de experiência, operadores com 20 anos, 10 anos, outros com três anos. Tinha somente eu e um assistente [monitorando o Legacy]. Ele deveria ter uns três, três anos e meio de experiência.
G1 - Vocês estão preocupados com a investigação da PF?
Controlador - Nosso maior medo é sermos injustiçados. Fizemos tudo o que podíamos fazer, com a informação que tínhamos.
G1 - O que vocês acham do tráfego aéreo no Brasil?
Controlador - A bomba-relógio está ligada novamente. Vai estourar. Já aconteceu e vai acontecer novamente.
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