Brasília - O discurso do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), sobre a onda de escândalos enfrentados pelo Congresso Nacional em 2009 evidenciou o choque entre parlamentares e setores da sociedade civil organizada. Nas palavras do senador, o Brasil e o mundo passam por uma "crise de representação", na qual há uma disputa pelo direito de representar o povo, em uma crítica a entidades que controlam o poder público, como a imprensa e outras organizações sociais, que estariam tentando substituir os políticos como detentores do direito de falar em nome da população. A tese foi mal recebida por membros de organizações não governamentais (ONGs) que trabalham com a fiscalização do Poder Legislativo.
"A sociedade de comunicação que foi implantada concorre com o Congresso, de maneira que hoje o Congresso tem de dividir suas atribuições com o quê? Com as ONGs, com a sociedade civil, com as corporações e com toda essa mídia eletrônica, que perguntam: quem representa o povo, somos nós ou são os congressistas?", disse Sarney na última terça-feira.
Os questionamentos atingem os principais meios de propagação das 14 irregularidades enfrentadas pelo Senado desde fevereiro (ver quadro ao lado). Tudo começou com as reportagens sobre o mau uso da verba indenizatória e das passagens aéreas pelo site Congresso em Foco, especializado em notícias do Legislativo. Em vários momentos, os episódios também foram fomentados por levantamentos feitos por ONGs como a Transparência Brasil e a Contas Abertas.
"As ONGs são instrumentos pequenos, mas ágeis, muito mais rápidos do que as respostas de senadores e deputados citados em escândalos", definiu o diretor da Contas Abertas, Gil Castello Branco. Para ele, o desconforto dos parlamentares nessa relação tem ficado cada vez mais evidente. "Os políticos perceberam que ovo de codorna também mancha. Por isso ocorrem declarações como essa do Sarney."
O diretor da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, afirma que o discurso do presidente do Senado parece uma tentativa de tirar o foco dos casos concretos de irregularidades, como os 623 atos secretos editados pela Casa nos últimos 14 anos. "Não há briga por espaço, nem tentativa de desestabilizar a instituição. Nós não queremos ocupar o lugar dos congressistas. Se eles representam mal a população, o problema foi provocado por eles e não por nós."
Essência
A discussão sobre a representatividade da sociedade na democracia brasileira está ligada à essência do Congresso Nacional. Na composição das duas casas legislativas, a Câmara dos Deputados corresponde à representação do povo no país e os 513 deputados são distribuídos de acordo com as populações estaduais.
Já o Senado representa os interesses das unidades federativas. Cada um dos 26 estados e o Distrito Federal têm direito a eleger três senadores. A ideia do critério é evitar distorções de representatividade de regiões com poucos habitantes.
"Em um país politicamente maduro, o Congresso não tem o poder exclusivo de representar os interesses do povo. Ele convive com grupos de interesse, de pressão, com lobbies internacionais e até dos poderes Executivo e Judiciário", afirma o diretor da ONG Transparência, Consciência e Cidadania, David Fleischer. Segundo ele, essa convivência é indissociável.
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, o deputado federal Gustavo Fruet (PSDB-PR) lembra que a sociedade se organiza a partir de grupos de interesse e que a maioria dos congressistas é eleita a partir da identificação com esses segmentos. A situação provoca o fortalecimento de bancadas setoriais, como a ruralista, com mais de 150 parlamentares federais que defendem o agronegócio.
Por outro lado, diz Fruet, é evidente o aumento da participação individual do cidadão nos mandatos parlamentares. "As pessoas estão percebendo que a relação com o político não acaba no momento do voto. Elas estão tomando mais iniciativa", afirma o deputado. Segundo ele, ainda é cedo para definir como será o futuro desse relacionamento. "Mas tenho certeza de que isso fortalece a democracia."