Fazia 25 graus às 9 horas da noite da última quarta-feira, segundo dia de ocupação da Assembleia Legislativa. Um vento morno tremulava as bandeiras de Curitiba, do Paraná e do Brasil, hasteadas a meio-mastro em frente do prédio. Raios ao longe e pingos esparsos anunciavam que o tempo mudaria em breve. Por isso, muitas barracas foram armadas sob a rampa que dá acesso ao prédio do plenário. “O medo é da chuva. Mas também é do choque”, disse a professora Marcia Lima, uma agitada senhora de óculos e camiseta preta. No dia seguinte, a tempestade viria. O batalhão de operações especiais da Polícia Militar, também.
Durante três dias, cerca de 500 pessoas acamparam no gramado bem aparado dos arredores da Praça Nossa Senhora de Salete, no Centro Cívico, em Curitiba. Uma parte do grupo continua por lá. O maior contingente ficava do lado oeste do prédio, onde havia grandes tendas, geralmente ponto de encontro de conhecidos ou de professores que vinham da mesma cidade. Às 22 horas, ouviam-se risadas ao longe; cartazes de protesto balançavam com o vento insistente; e o ambulante Luiz Airton, que não sabia os motivos daquela movimentação toda, despedia-se depois de vender, em pouco mais de duas horas, cerca de 200 cachorros-quentes. “O clima está agradável”, relatou Marcia, explicando o funcionamento das coisas naquela minicidade, antes de orientar três professoras que chegavam para passar a noite e defender o movimento que tentava impedir a aprovação do “pacotaço” de Beto Richa. “Desta vez, o governador nos deu uma dose cavalar de motivos para protestar”, disse a funcionária pública, utilizando um trocadilho para lembrar o 30 de agosto de 1988, dia em que a polícia montada, sob comando do então governador Alvaro Dias, avançou sobre os professores.
Além da força do movimento, que conseguiu vitória parcial na última quinta-feira ao adiar a votação das medidas, o que impressionou foi a logística e a organização da APP (Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública). No centro do acampamento, uma gigantesca tenda branca funcionava como armazém. Mais de duzentas caixas com copos d’água empilhavam-se. Sacolas com comidas apareciam a cada minuto. No entorno, havia 26 banheiros químicos, oito seguranças particulares que trabalhavam em turnos de 12 horas, um esquema de credenciamento para quem quisesse pernoitar na Assembleia –com direito a cadastro em computador – e também um revezamento nas atividades cotidianas, como limpeza: dentro da Assembleia, foram instalados provisoriamente um lixo orgânico e outro para produtos recicláveis. O banho, maior das preocupações, era resolvido com uma visitinha rápida à sede do sindicato (ônibus ou táxi inclusos); ou com a boa-vontade de parentes.
Blues da meia-noite
Perto das 23 horas, palavras como “dignidade”, “honra”, “respeito” e “constituição” eram as campeãs nas rodinhas de conversa. Foi quando um arpejo de violão chamou a atenção. Era o professor de Educação Artística Delnébio Pedro Martins, de 58 anos. Cabelo comprido e jaqueta de couro, sentado em uma cadeira de plástico em companhia de jovens e politizados integrantes da União Paranaense dos Estudantes Secundaristas (UPES), Martins, um “blueseiro”, disse que estava ali porque “não queria ver o governador meter a mão no seu bolso.” O professor foi até o acampamento em um “triciclo grande e amarelo” que fez inveja aos piás que o rodeavam. E arrependeu-se de não ter trazido a gaita, seu “principal instrumento”.
Depois de dez horas de viagem, quatro servidores de Umuarama, no Noroeste do estado, finalmente conversavam sobre o dia que acabava. “Hoje até que foi tranquilo. Mas ontem o bicho pegou”, afirmou Crederson Emanuel da Silva, 40 anos, professor de Educação Física, referindo-se ao dia da “invasão” da Assembleia. Era a primeira vez dele por ali. “Fiquei embasbacado com a estrutura”, exclamou. Para o jantar, pão com mortadela. Otimista ou despreparado, o grupo trouxe roupa suficiente somente para dois dias. Quem voltou a Umuarama deixou o que não usou como doação. Uma vaquinha para compra de comida também garantiu algumas bolachas.
Angelo Gonçalves, 38 anos, diretor de uma escola em Umuarama, não quis falar de outro assunto. “Dão R$ 4 mil de auxílio-moradia para um juiz. Para professor, que não ganha nem R$ 4 mil, querem tirar os R$ 400 de auxílio-transporte?”, bradava, ao que seus colegas meneavam a cabeça, em sintonia. “O boi, o governador já sangrou. Mas tirar o couro, ele não vai não”, resumiu funestamente Everaldo Burda, 43 anos. Passava da meia-noite. Alguns rapazes da UPES, já meio roucos, gastavam o que restava do gogó cantando “Tempo Perdido”, música da Legião Urbana. O portão que dá acesso à Assembleia estava prestes a ser fechado. A partir daquele momento, a entrada só seria permitida com a credencial laranja em que deveriam constar “nome” e “entidade ou movimento social.”
A cama-esteira
Perto da uma hora da manhã, o desafio foi escolher um lugar ao abrigo da luz. “O segundo andar é bom porque é escuro”, avisou Alyson Angel [o repórter leu no crachá], um rapaz jovem e magro que tomava chá verde num copo de plástico.
No primeiro andar, todas as lâmpadas estavam acesas. E o ar-condicionado, que não funcionara no dia anterior, parecia estar agora na temperatura “congelante”. No banquete improvisado em frente do plenário, havia pãezinhos franceses meio murchos, um bolo caseiro pela metade, peras, bananas e maçãs. Os microfones que costumeiramente ampliam as vozes dos parlamentares estavam desligados e sistematicamente virados para cima. Com a movimentação silenciosa no chão acarpetado, a cena toda parecia um velório de corpo ausente.
Perto das duas da madrugada, uma ideia salvadora: no chão, uma professora esticou uma daquelas cadeiras pretas e confortáveis utilizadas pelos deputados. Separou a almofadinha do assento e de repente inventou o que se poderia chamar de cama-esteira. Passou a noite ali.
Atrás do repórter, que já pesca a cada cinco minutos e tenta se aninhar numa cadeira dura e irreclinável, uma professora dá o play, no celular, em um vídeo em que se ouve o hino nacional. Ela faz isso por três vezes e sorri, lembrando os momentos seguintes à ocupação da casa. O frio e os bocejos aumentam. Uma senhora adormece de boca aberta ainda segurando uma edição das Palavras Cruzadas Coquetel. Um rapaz enrola o moletom vermelho nos olhos e deita de barriga para a cima, encarando a luz. Sob um edredom reforçado, um casal dorme quase de conchinha. Há quem se jogue no chão, simplesmente. Há quem deite de bruços em um colchão forrado com um lençol de motivos campestres. A Assembleia, enfim, se transforma num albergue em que o colorido de bandeiras de centrais sindicais, penduradas por todo o espaço, quebra a sobriedade rotineira da casa.
O movimento diminui aos poucos. “Onde você vai dormir?”, pergunta um senhor – sentado em frente a uma plaquinha de papelão na qual se lê “Londrina” – a uma senhora com olheiras proeminentes. “Cabe eu aqui?”, indaga, apontando para um estreito corredor já ocupado por uma professora que dormia profundamente e cobria o rosto com um cobertor fino.
É quase três da manhã. Em pé, restam oito pessoas. Ouvem-se roncos na Casa do Povo.
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