Os Tribunais de Contas (TCs), que deveriam ser os guardiões da transparência nas finanças dos governos estaduais, deram aval às “maquiagens” feitas nos últimos anos nos estados. Levantamento do Tesouro Nacional mostra que boa parte dos estados gasta com pessoal mais do que declara, extrapolando os limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Para não ficarem desenquadrados, o que resultaria numa série de restrições, os governadores se utilizam de brechas aprovadas pelos próprios TCs. Isso ocorreu inclusive no Paraná.
Tribunais de Contas negam ter dado aval a “maquiagens”. Confira o que eles dizem
O maior exemplo dessa distorção é o Rio de Janeiro, que enfrenta uma das situações financeiras mais delicadas. O estado dizia gastar apenas 41,77% de sua receita corrente líquida com despesas de pessoal em 2015. Mas o Tesouro apontou que, na verdade, a despesa chega a 62,84%, acima do limite de 60% previsto na legislação.
Ao ultrapassar o limite, os governos são obrigados a apresentar estratégias para debelar o problema, entre elas cortar cargos comissionados. Além disso, ficam proibidos de contratar ou conceder aumentos além da inflação aos servidores. São medidas impopulares e que imporiam amarras não só ao Executivo estadual, mas também aos demais poderes e órgãos -–incluindo os próprios Tribunais de Contas.
Drible
Desde que a LRF foi aprovada, em 2000, os TCs adotaram diferentes interpretações da lei e “driblaram” o texto, mascarando o diagnóstico ruim das contas. Em decisões colegiadas, os tribunais permitiram que o cálculo da despesa com pessoal excluísse, por exemplo, gastos com pensões, parte dos inativos, abono pecuniário (quando o funcionário vende um terço de suas férias) e abono por permanência (bonificação ao aposentado que se mantém na ativa).
Resoluções como essas permitiram que ao menos sete estados ficassem artificialmente enquadrados nos limites da LRF: Paraná, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A Paraíba também “disfarçou” os números, mas admitia extrapolar o teto.
“Os TCs fazem um cálculo de seu entendimento e todos eles são menores, porque isso também afeta os outros poderes. Ou seja, fica um cálculo que beneficia a que se gaste mais”, diz o subsecretário do Tesouro do Estado do Rio Grande do Sul, Leonardo Busatto.
Integrante de um governo que se elegeu como oposição, o subsecretário do Tesouro do Rio Grande do Sul afirma que deixou de lado as metodologias do Tribunal de Contas. “Não estamos dizendo que o dado está errado, mas entendemos que o dado que mais reflete realidade do estado é o do Tesouro.”
TCs negam fazer “contabilidade criativa”
Os próprios Tribunais de Contas dos estados (TCs) gastam mais com pessoal do que declaravam, segundo números do Tesouro Nacional. Mas eles negam que haja alguma “contabilidade criativa” nas resoluções que permitiram aos estados ter despesas maiores que as permitidas pela lei. Os TCs do Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Paraíba, além do tribunal Distrito Federal, dizem que os critérios de cálculo são amparados em estudos técnicos e resoluções dos colegiados, aplicados sobre números fornecidos pela própria administração estadual.
Mas, segundo especialistas, os tribunais criaram mecanismos de exceção dentro da classificação de despesas com pessoal que mascararam a real situação financeira dos governos. Um relatório técnico do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul emitido em 2001, por exemplo, determina a exclusão de gastos com terceirizados e pensionistas do cálculo de despesa com pessoal. A orientação contraria a própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que coloca os dois dispêndios como parte da conta.
O Tesouro Nacional explicita a necessidade da inclusão desses gastos no Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF), utilizado pelos estados. “A despesa total com pessoal compreende o somatório dos gastos do ente da Federação com ativos, inativos e pensionistas, deduzidos alguns itens exaustivamente explicitados pela própria LRF, não cabendo interpretações que extrapolem dispositivos legais”, diz o documento.
Com a brecha patrocinada pelo TC-RS, o governo gaúcho diz comprometer 58,11% da receita corrente líquida (RCL) com pessoal, embora técnicos federais apontem que é 70,62%.
No Distrito Federal, uma decisão do Tribunal de Contas de 2013 permitiu a exclusão de pensionistas do cálculo. O colegiado já havia decidido, em maio de 2003, que os valores pagos aos funcionários que vendem um terço de suas férias não devem ser computados como despesa com pessoal. Em 2010, essa resolução foi estendida ao abono de permanência, um incremento no salário de aposentados que seguem ativos. Com isso, o Distrito Federal diz que 49,3% de sua receita corrente líquida está comprometida com pessoal, enquanto o Tesouro aponta que são 64,19%.
“Até poderia aperfeiçoar a LRF, mas antes é preciso aprovar outras duas leis. Primeiro, criar o Conselho de Gestão Fiscal, já previsto na LRF, mas cujo projeto dorme na Câmara há 16 anos. Segundo, aprovar uma nova Lei Geral de Orçamento e Contabilidade Pública.”
José Roberto Afonso economista que foi um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Receitas
No Rio de Janeiro, o problema está na classificação das receitas que sustentam a Previdência. A lei prevê que os gastos com inativos financiados com recursos próprios do regime fiquem de fora do cálculo. Esses “recursos próprios” são sobretudo as contribuições previdenciárias recolhidas, mas o governo fluminense tem considerado também receitas de royalties de petróleo e até de saques de depósitos judiciais, elevando o abatimento.
É por isso que o Rio diz que o déficit da Previdência estadual foi de R$ 542 milhões em 2015, enquanto o Tesouro detectou um rombo de R$ 10,8 bilhões. “Não tem sentido técnico algum. Essa composição [do boletim federal] não indica que foi recurso do Tesouro. O que o Tesouro pegou do sistema e colocou na Previdência foram R$ 500 milhões. O resto veio de royalties e depósitos judiciais”, diz o secretário estadual de Fazenda do Rio, Gustavo Barbosa.
A discrepância nos dados acaba refletindo na relação despesa com pessoal com a receita corrente líquida, que é de 41,77% segundo o Rio, contra 62,84% na avaliação do Tesouro Nacional. As contas de 2015 já foram aprovadas pelo TC-RJ.
Definição de indicadores
Um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal, o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre/FGV e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), avalia que é preciso “qualificar melhor” o objeto do controle, ou seja, aprimorar a definição dos indicadores que são alvo da lei, como a despesa com pessoal. O governo tentou fazer isso no projeto de renegociação da dívida dos estados, mas a iniciativa enfrentou forte resistência do Congresso e acabou sendo excluída do texto. Em resposta, a equipe econômica prometeu fazer uma revisão da LRF.
“Até poderia aperfeiçoar a LRF, mas antes é preciso aprovar outras duas leis. Primeiro, criar o Conselho de Gestão Fiscal, já previsto na LRF, mas cujo projeto dorme na Câmara há 16 anos. Segundo, aprovar uma nova Lei Geral de Orçamento e Contabilidade Pública”, diz Afonso.
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