Um ano após os ataques que pararam São Paulo em maio de 2006, Maria da Luz da Silva ainda não conseguiu que o estado reconheça que seu filho não é um indigente, como consta em seu atestado de óbito. Maria Dinauci de Lima não sabe quem disparou os quatro tiros em seu marido, o cabeleireiro Lindomar Lino da Silva em 15 de maio. E a agente penitenciária M. tem medo ao lembrar dos 20 tiros que mataram Robson Cleiss, seu marido e colega de trabalho.
Vítimas da violência que marcou o período entre os dias 12 e 20 de maio, os três são parte das estatísticas do período - 493 pessoas foram mortas a tiro nos oito dias, de acordo com laudos dos 23 Institutos Médicos Legais do estado. O número reúne os mortos dos ataques de maio e da reação da polícia, além de casos não relacionados, como suicídios e latrocínios.
Nem as autoridades sabem ao certo quantos dos mortos estavam, de fato, envolvidos no primeiro episódio da guerra urbana que se travou entre criminosos ligados à quadrilha que age a partir dos presídios de São Paulo e a polícia. Foi a primeira das três séries de ataques ocorridas em 2006 em São Paulo.
As estatísticas oficiais são incompletas. Na apresentação dos dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública (SSP) nesta quinta-feira (10), diante de seguidos questionamentos sobre as informações apresentadas, o secretário Ronaldo Marzagão não descartou uma revisão no levantamento.
Oficialmente, o estado considera que 140 pessoas morreram na primeira série de ataques, iniciada em 12 de maio de 2006. Destes, 92 são apontados como "criminosos" no documento. "Foram mortos em confronto com a polícia", explica Marzagão, que, questionado sobre o termo "criminosos", recuou. "O certo seria suspeitos."
Além das 140, o levantamento do estado aponta mais 114 mortes de autoria desconhecida na capital. Das 114, 11 foram esclarecidas e estão ligadas aos ataques. Quatro mortes foram causadas por dois policiais - um deles, autor de uma chacina, foi morto; o outro está preso. O estado diz não ter dados sobre mortes esclarecidas fora da capital.
Para Marzagão, os números são uma questão "micro", da qual ele não pode falar. "Eu cuido da macropolítica de segurança". O assessor de imprensa Enio Lucciola, responsável pela redação do levantamento, minimizou a discussão: "No fim é uma questão de semântica."
Números
A questão de semântica é vista como um problema pelo Ministério Público, pela Ouvidoria da Polícia e pela Defensoria Pública. O número de mortos em supostos confrontos com as autoridades, e os poucos esclarecimentos um ano após os ataques, levantam suspeitas.
Um dia antes de Marzagão apresentar os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), o procurador-geral do Ministério Público, Rodrigo Pinho, classificou a demora de "falta de empenho" na apuração das mortes. O ouvidor Antonio Furani diz que há indícios de execução em boa parte dos casos e destaca que, de 88 mortes de autoria desconhecida, apenas oito foram solucionadas. E, por fim, a Defensoria diz ter provas da participação de policiais em execuções e tenta conseguir indenização do estado para a família de uma das vítimas.
Sobre as suspeitas de participação de policiais militares em execuções, o G1 procurou o corregedor da PM, José Paulo Menegucci, para ouvi-lo sobre as investigações internas na corporação. A Secretaria de Segurança Pública, no entanto, não atendeu à solicitação.
Secretário descarta novos ataques
Um ano após a onda de violência de maio, o secretário Marzagão descarta novos ataques articulados como os de 2006. Ele enfatiza que desde então a prioridade é o uso da inteligência no combate ao crime organizado e ressalta que, no primeiro trimestre de 2007, foram detidas 107 pessoas da quadrilha sem que um único tiro fosse disparado. O governo também sustenta que a estrutura financeira da organização foi desmontada com o combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro do bando.
A certeza de Marzagão de que a quadrilha não voltará a aterrorizar a cidade como em 2006 é contestada pelo procurador-geral de Justiça, Rodrigo Pinho. "A organização criminosa continua atuante. Mas estamos fazendo o possível para desarticulá-la." A violência, que, na opinião do então governador Cláudio Lembo (DEM), quase culminou em uma guerra civil em 2006, ainda é uma ameaça na avaliação do MP.
Nos presídios, de acordo com a Pastoral Carcerária, o crime organizado continua atuante e influente. Um presidiário perseguido por quadrilhas relatou ao G1 a ação dos criminosos no sistema prisional. Os agentes penitenciários ainda reclamam de falta de segurança. A categoria discute paralisações para chamar a atenção da sociedade para a situação.
A superlotação também continua sendo um problema - em dez anos, o número de presidiários praticamente dobrou (de 67.748 em 1997, a população carcerária do estado saltou para 137.107 em 2007) e as rebeliões continuam sendo uma constante.
O G1 tentou ouvir o secretário de Administração Penitenciária, Antônio Ferreira Pinto, sobre a situação atual do sistema, mas sua assessoria não respondeu à solicitação. Assim como na SSP, o acesso público às informações oficiais é limitado. Recentemente, foram retirados do site da secretaria os números referentes à capacidade de cada presídio. De acordo com a assessoria, os dados estão sendo atualizados, após reformas nas unidades.
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