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Há um clarão urbano no meio da floresta amazônica em que Brasil, Colômbia e Peru se unem por um enredo de crimes e contravenções, um lugar imerso na imensidão verde entrecortada por rios sinuosos onde as populações desses países encontraram meios peculiares de sobrevivência, muitos à revelia da lei. Nesse ambiente de tolerância aos negócios ilícitos, a cidade de Letícia, capital do departamento da Amazônia colombiana, sustenta-se pelo tráfico de cocaína e do contrabando de gasolina e comida para o Brasil, cabendo ao vilarejo peruano de Santa Rosa o papel secundário – mas não menos importante – de entreposto de drogas e combustível.

A gasolina contrabandeada, vendida por qualquer pessoa em qualquer esquina em garrafas de cachaça e Coca-Cola, move praticamente tudo o que anda sobre rodas em Tabatinga e Benjamin Constant. Nestas cidades, de 40 mil e 20 mil habitantes, respectivamente, não há um só posto de combustível. O único faliu seis meses após abrir. Perdeu para a concorrente colombiana vendida nas ruas por R$ 1,70 o litro. Apenas a Polícia Federal, o Exército e algumas repartições públicas usam produto oficial trazido de Manaus, a R$ 2,70 o litro. Em Benjamin Constant, a gasolina colombiana enfrenta a concorrência da rival peruana, vendida nas ruas a R$ 1,00.

Grande parte do que ali se come também é fruto do descaminho. A total falta de estradas e a carestia do transporte aéreo deixam a população local refém dos barcos de cargas e passageiros – os chamados recreios – que toda semana vencem os 1.700 quilômetros do rio Amazonas entre Manaus e o extremo-oeste do estado para abastecê-la de leite, ovos, azeite, cerveja, gás de cozinha. Mas esse comércio legal é insuficiente. O pão é feito da farinha que os colombianos compram nos Estados Unidos e infiltram via contrabando em um punhado de cidadezinhas e vilarejos isolados às margens do rio. A batata e a cebola vêm do Peru. Tudo sem pagar imposto no Brasil, naturalmente.

O isolamento na vastidão verde da Amazônia forjou nessas cidades características únicas, sujeitas à influência política, econômica e cultural dos vizinhos. Não há situação similar à de Tabatinga. Com um pé na criminalidade colombiana e outro na indulgência brasileira, vive sob os efeitos de um pacto de tolerância entre guerrilheiros, militares, policiais e traficantes na sua cidade-espelho, à qual se une por uma avenida. Letícia está tão isolada da capital Bogotá quanto Tabatinga de Manaus. Ali só se chega de avião ou de barco pelo Rio Putumayo, que corta uma região sob estreito controle das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs).

Pelo acordo de cavalheiros, ninguém incomoda ninguém. Letícia tornou-se assim uma ilha de paz num país que há mais de cinco décadas vive sob o fogo cruzado de uma guerra civil. "O traficante não quer incômodo no quintal dele", diz o delegado da Polícia Federal em Tabatinga, Márcio Anatter. Unidas pela Avenida da Amizade, as duas cidades são xifópagas também nos negócios ilícitos. Faz algum tempo que os acertos de conta do crime organizado colombiano são transferidos para o lado de cá da fronteira, onde há nada menos do que 100 pontos de venda de drogas.

A manauara Dora, que hoje vive da prostituição numa boate da cidade de Guayaramerín, na fronteira da Bolívia com Rondônia, viu de perto a atuação dos traficantes. Há dois anos, ela e cinco colegas foram contratadas para levar drogas até Manaus, de barco pelo rio Amazonas. "Fomos em seis e voltamos em três", conta. As outras foram mortas a tiros. Os corpos ficaram estirados numa rua da periferia de Tabatinga e as autoridades nem se importaram de ir atrás dos assassinos, diz ela. "A polícia é amiga dos bandidos", constata.

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