Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
A Protagonista

A Protagonista

A lenda da aspirina nazista

Ao falar sobre Paulo Freire em um programa de rádio, o ministro da Educação inventou a lenda da aspirina nazista que, pasmem, ganhou fôlego nas redes sociais. Vivemos a era em que não há fatos que contraponham as versões, mas continuo apaixonada por eles, os fatos.

O raciocínio de Abraham Weintraub é que o educador não produziu nada de útil, já os nazistas pelo menos inventaram uma coisa boa, que é a aspirina. A frase exata é: “A aspirina foi feita pelos nazistas. Eu uso por quê? Porque funciona”. Ocorre que a aspirina já existia há décadas quando houve a ascensão do nazismo. Em vez de aceitar os fatos e a própria condição humana, o ministro saiu com a seguinte justificativa:

""

O novo argumento, para tentar justificar o erro, é que tanto a Bayer quanto alguns de seus cientistas se envolveram com o nazismo, portanto a aspirina foi feita por nazistas só que antes da ascensão de Hitler ao poder. Mais uma vez, total desprezo pelos fatos.

A única ligação entre os cientistas que fizeram parte do grupo que patenteou a aspirina em 1899 e o nazismo é o fato de um deles, Arthur Eichengrün, ter sido levado a um campo de concentração depois de ter a própria empresa tomada pelo governo nazista.

Se levados em conta os fatos, não o fígado, a aspirina tem uma história que pouco tem a ver com política e muito tem a ver com ciência, esse prato que cai tão mal no estômago da ala psiquiátrica do governo.

O uso do ácido salicílico como alívio para dores remonta a tempos imemoriais. A primeira citação de que se tem notícia é no Egito Antigo, em 1500 A.C., em um dos tratados médicos mais importantes da história, o Papiro Ebers, que recebeu este nome em homenagem ao monge que o adquiriu e está em exposição na Universidade de Leipzig, na Alemanha.

Imagem do corpo da matéria

Esse documento contém mais de 700 fórmulas tratadas de maneira mística, receitas de remédios populares e uma descrição impressionante sobre o funcionamento do sistema circulatório humano. Uma das fórmulas era a infusão de folhas de murta para alívio das dores reumáticas. A planta é fonte de ácido salicílico.

O pai da medicina, Hipócrates, prescrevia outra modalidade de obter a mesma substância: suco de casca de salgueiro. Servia para aliviar as dores do parto e baixar a febre em 400 d.c. Também era tradicional na medicina dos Celtas e dos Teutões, povo germânico que vivia no norte da Alemanha e na parte continental da Dinamarca.

Somente no século XVIII que se conseguiu identificar a substância já tradicionalmente utilizada para alívio da dor por tantos povos ao longo da história. O trabalho foi feito pela British Royal Society em 1763. A substância recebeu o nome de salicilato, derivada do nome da espécie de plantas à qual pertence o salgueiro, salix.

A ciência andava em outro ritmo. Foi só décadas depois, em 1828, que se conseguiu isolar a substância. O trabalho foi feito por Johann Andreas Buchner e Pierre-Joseph Leroux a partir da casca de salgueiro, a mesma da receita original de Hipócrates, o pai da medicina. No entanto, ainda estávamos longe do remédio mais famoso do mundo.

Em 1853, em Estrasburgo, se conseguiu sintetizar uma nova substância, o ácido o-acetilsalicílico na forma não-pura. Em 1859, Hugo von Gilm conseguiu transformar o ácido acetilsalicílico num sólido insolúvel em água. 10 anos depois, Karl Kraut estudou esses dois processos experimentais e conseguiu melhorar o processo de extração.

O ácido salicílico foi o primeiro remédio do mundo a ser produzido e empacotado de maneira industrial. Chegou ao mercado em 1874, fabricado pela Chemische Fabrik v. Heyden em Radebeul, cidade alemã nos arredores de Dresden. Mas e a Bayer? Ainda tem mais história.

Esse remédio realmente funcionava aliviando as dores e baixando a febre, mas causava dores de estômago muito fortes. As pesquisas continuaram simultaneamente em vários pontos do mundo para desenvolver uma versão do remédio que fosse mais tolerável pelos pacientes.

O trabalho foi feito por uma equipe comandada por um cientista judeu renomado e responsável por diversas patentes de remédios. Ele orientou um jovem cientista que havia conseguido emprego na Bayer poucos anos antes e tentava uma forma de aliviar as dores da artrite que incapacitavam o próprio pai.

Arthur Eichengrün teve a ideia de usar uma substância encontrada no vinagre, ácido acético, para tentar obter uma versão pura e estável do ácido o-acetilsalicílico. Quem conduziu a experiência foi o assistente, Felix Hoffmann, que teve sucesso em 10 de agosto de 1897 no laboratório da "Farbenfabriken vorm. Friedr. Bayer & Co."

Eles conseguiram produzir um pó com os mesmos efeitos de alívio da dor e febre mas sem tantos efeitos colaterais quanto a versão que existia no mercado. O sucesso após tantas tentativas gerou dúvidas na comunidade científica e, como na época ainda não havia processos de testes de medicamentos, a certeza veio quando o chefe do laboratório da Bayer, Heinrich Dreser, resolveu testar o remédio nele próprio.

O ácido acetilsalicílico já havia sido patenteado na Alemanha, mas a Bayer consegiu o registro para essa nova versão, estável e que se poderia produzir em larga escala de forma industrial.

A marca "Aspirina" é um nome composto. A vem de acetil e SPIR vem de Spiraea ulmaria, a planta de onde se tira o ácido salicílito. Já o IN, segundo a Bayer, era um sufixo muito utilizado na época. A patente foi emitida em nome da empresa no ano de 1899.

Imagem do corpo da matéria

Foram 3 os cientistas envolvidos na última fase do desenvolvimento da aspirina, a que se deu dentro da Bayer, empresa que seria uma das principais apoiadoras do nazismo. Nenhum deles se tornou nazista.

Heinrich Dreser morreu em 1o de dezembro de 1924, dez anos antes da ascensão de Hitler ao poder, em 1934. Felix Hoffmann se aposentou em 1928 como chefe do laboratório da Bayer, mudou-se para a Suíça e viveu recluso até 1946. Nunca se envolveu com política.

Arthur Eichengrün, judeu, foi apagado da história da aspirina em 1934. Era comum aos apoiadores de Hitler o revisionismo histórico que retirava méritos de judeus. Não havia fato que fosse capaz de contrapor as narrativas nazistas e a história só começou a ser reposta depois que o pesadelo acabou.

O fato é que até hoje a Bayer nega a participação do cientista na descoberta. No campo de concentração, ele escreveu todo o histórico científico que o levou a propor a síntese ao assistente. Somente em 1999 o material foi revisado. O cientista Walter Sneader, do departamento de ciências farmacêuticas da Universidade de Glasgow, concluiu que essa era a versão mais crível.

O cientista não tinha como único mérito a aspirina. Quando houve essa descoberta, ele já era inventor de sucesso. Fez o Protagol, usado para combater gonorreia antes dos antibióticos. Também é um dos inventores do acetato de celulose solúvel e da espuma expansível. Empreendedor, deixou a Bayer em 1908 para abrir o próprio laboratório, Cellon-Werke.

A empresa foi confiscada pelo governo nazista em 1938. Em 1943, Arthur Eichengrün foi preso pela primeira vez por não colocar a palavra "Israel" ao lado do próprio nome em uma carta a um oficial nazista. Os judeus eram obrigados a se identificar dessa forma, mais uma das inúmeras técnicas de desumanização dos nazistas.

Ele cumpriu a pena, mas não dobrou a espinha. No ano seguinte, foi preso pelo mesmo motivo e levado ao campo de concentração de Theresienstadt, na área da então Tchecoslováquia ocupada pelos nazistas. Ele resistiu durante 14 meses, até o final da II Guerra Mundial. Morreu em 1948, aos 82 anos de idade, aposentado na cidade de Bad Wiessee, na Bavária.

São necessárias muitas mentes privilegiadas, de diversas culturas, trabalhando durante séculos para trazer para a humanidade um avanço como um remédio capaz de salvar milhões de vidas. Já para transformar essa história em algo grotesco se necessita muito pouco: um microfone na mão e um vácuo na cabeça.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.