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Enquanto o mundo político estava de olho no STF por causa do risco de desmantelamento da Lava Jato, gente que tem amante em todo o Brasil suava frio por conta de outro julgamento, o do Recurso Extraordinário 1045273. Ele tem repercussão geral reconhecida, ou seja, o que sair de decisão vale para todos os casos semelhantes no país.

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Dias Toffoli pediu vista do processo quando estava em 5 x 3 pelo direito de amante receber pensão por morte. Não há prazo para devolver o processo, tão confuso que não dá para saber direito nem qual é a matriz e qual é a filial.

O caso entrou no STF em 2017 e, fosse uma peça de ficção, diríamos que é exagerado. A história foi de Sergipe a Brasília para ser solucionada. Casamento mesmo, de papel passado, não há. O que há são duas uniões estáveis de um mesmo falecido reconhecidas concomitantemente pela Justiça. A primeira, reconhecida apenas na primeira instância, é com um homem e durou 12 anos. A segunda, com uma mulher que teve uma filha, é reconhecida em definitivo pela Justiça.

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E quem chegou primeiro? Saber, com certeza, só mesmo o falecido. Nos autos, o único fato é que a mulher foi a primeira a acionar a Justiça, mas não há comprovação de qual relacionamento começou antes e nem se um sabia do outro ou da outra. Assim que a mulher pediu a pensão por morte, o companheiro pediu para dividir o valor. A questão está há anos em julgamento e, até agora, só a filha do falecido está recebendo.

O Tribunal de Justiça de Sergipe foi contra a divisão da pensão e o companheiro do falecido apelou às instâncias superiores. O advogado do autor, Marcos Vecchi, argumentou que as duas relações eram unidades familiares que não podem ser ignoradas pelo Poder Judiciário, portanto a pensão precisa ser dividida. A questão é tão complicada que o STF admitiu Amicus Curiae no plenário, os "amigos da corte", instituições reconhecidas da sociedade civil que não têm poder de decisão mas expressam seus pontos de vista para ajudar na formação da opinião da Corte.

O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, IBDP, foi uma dessas instituições que opinam. Argumentou que não há óbice sob o ponto de vista da Previdência, já que o pedido não é por duas pensões, mas para dividir uma, então não muda nada para os órgãos previdenciários. Sobre outro ponto de vista foi ouvida a Associação de Direito de Família e Sucessões, que lembrou da história da bigamia. Não há aqui um casamento de um lado e uma amante - ou um amante - de outro, mas duas uniões estáveis com reconhecimento judicial. Só que, para reconhecer a união estável, é necessária a monogamia, argumentou a ADFAS.

É importante lembrar que ninguém aqui está falando em pulada de cerca, mas em relações estáveis. Obviamente há pessoas que mantem mais de uma relação estável ao mesmo tempo, o clássico "pai de famílias", e ninguém está negando a existência dessa realidade ou julgando moralmente esse arranjo. Trata-se de decisões judiciais que precisam ser tomadas porque a pessoa que estava no olho do furacão fez questão de não passar nada a limpo e deixar a fatura para os outros depois de morrer.

A questão é outra: a Justiça pode reconhecer uniões estáveis concomitantes? Se pode, por que é proibido que uma pessoa tenha dois casamentos concomitantes?

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Muitos lembraram-se agora da história do trisal, o "casal" formado por um homem e duas mulheres que conseguiu reconhecimento judicial da união estável. São discussões muito diferentes. Ali, qualquer que seja o arranjo deles, foi reconhecida uma única unidade familiar, uma única união estável. É possível que uma pessoa faça, ao mesmo tempo, parte de duas uniões estáveis ou dois núcleos familiares protegidos pela Constituição? No fundo, é isso o que o STF precisa decidir.

O relator, ministro Alexandre de Moraes, foi contra dividir a pensão ou reconhecer judicialmente as duas uniões estáveis concomitantes, alegou que seria semelhante à bigamia e que, por analogia com o casamento, não pode haver o reconhecimento judicial. Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski acompanharam o voto. Aqui vale lembrar que a formalização das duas relações ocorreu só após a morte do homem, jamais ele próprio apontou se achava que elas fossem formais ou qual era mais formal que a outra.

O ministro Edson Facchin abriu uma divergência. Explicou que o julgamento deveria ter foco na questão previdenciária, não no reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Alegou que, caso haja boa-fé das partes, ou seja ninguém sabia que a pessoa tinha também outra família, o certo é dividir a pensão. Num caso em que não se sabe nem qual união começou primeiro, como ter certeza de que a companheira e o companheiro não sabiam da situação? Enfim, é o que eu acho. Mas outros 4 ministros pensam diferente. O voto foi acompanhado por Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio.

Curiosidade: entre esses ministros há quem já tenha votado contra a possibilidade de dividir pensão por morte com amante. O caso era diferente: um homem com duas famílias. A segunda união durou 11 anos e gerou 8 filhos, a mulher se considerava no direito de dividir a pensão com a viúva, com quem o homem era casado no papel. Não conseguiu. O julgamento, no entanto, foi em uma turma, não no plenário, e não teve repercussão geral.

Falta apenas um voto para que se reconheça o direito de dividir a pensão por morte - está em 5 x 3. Isso valeria para todos os casos no Brasil em que a pessoa tem duas famílias ao mesmo tempo. Dias Toffoli resolveu pedir vista. Ele não tem prazo para devolver o processo ao plenário e os demais ministros podem mudar seus votos até a conclusão do julgamento - não é usual, mas há casos em que isso ocorre.

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Dizer que respeita a família é uma coisa, respeitar mesmo é outra completamente diferente. Esses casos não são apenas folclóricos, são frequentes - e em alguns a Justiça decide dividir a pensão, como retrata essa reportagem da Gazeta do Povo. Curioso notar que o TRF-5 decidiu que a pensão por morte seria dividida justamente porque a esposa sabia da relação marital do falecido com a amante. No STF, é o oposto: como parece que o companheiro não sabia que o homem com quem estava há 12 anos também tinha uma relação duradoura com uma mulher, os dois têm direito de pleitear a pensão e devem dividir.

Um advogado que acompanha meu canal de YouTube contou uma história de pensão para amante que parece surreal: a cliente dele, logo na primeira instância, reconheceu que sempre soube do caso extraconjugal e que ele realmente vivia com a amante também. Todas as testemunhas relatavam que era "de dia na casa de uma, de noite na casa da outra", ambas aceitando a situação de dividir um homem só. Dividiram também a pensão. Cereja do bolo: quem matou o homem foi o irmão da amante, com uma enxadada.

De tudo isso, uma grande lição: jamais subestimemos o roteirista dessa novela chamada Brasil.