Talvez porque a Amazônia seja algo que habita a imaginação apenas, não a experiência cotidiana da maioria dos brasileiros, é muito fácil criar lendas a respeito dela. Aprendemos algumas belíssimas na escola, que são inclusive patrimônio cultural brasileiro. O problema é que, na era das redes sociais, as lendas passaram a substituir fatos.
Tudo vira histeria, em narrativas de preferência contadas por gente que nada entende do assunto e, algumas vezes, até por gente requenguela que se vale do anonimato para ter coragem de dizer o que pensa. Vale para todo tipo de tema. A verdade começou a ser vítima preferencial nas fake news dizendo que vacina dava autismo, que agora apresentam ao Brasil suas vítimas fatais.
A relação entre o agro brasileiro e a preservação ambiental é um dos mitos mais cultivados tanto por políticos quanto por ambientalistas e representantes dos ruralistas. Na realidade, é tão complexa e complementar que o povo da cidade, maioria do Brasil, não compreenderia.
É claro que existe muita tensão no campo e muitos conflitos. O que não existe fora da imaginação é a formação de exércitos rivais. Nosso agro, que carrega o Brasil nas costas, não é feito de gente má que pretende acabar com o planeta e plantar soja até na jardineira do apartamento da sua mãe. Os ambientalistas, por outro lado, também não são os jihadistas da natureza intocada que não se importam com gente morrendo de fome e querendo trabalhar.
Nessa área, que traz tanto do sustento do país, o Poder Público também não é o mito do gigante adormecido, que deixa tudo acontecer. É um mediador eficaz, apoiado pela sociedade civil também por meio das Organizações Não-Governamentais. Não fosse assim, agro não daria tanto dinheiro até durante as maiores crises.
A verdade é mais chata do que o material lacrativo que se necessita para mitar nas redes sociais. E o problema todo da Amazônia este ano começou com a substituição de trabalho duro e silencioso por lacração para a massa.
O Brasil é com certeza o país que mais pode dar exemplos ao mundo do convívio entre produção rural e sustentabilidade, mas isso depende de olho vivo. Se aparece bandido em Brasília, onde tem câmera e escuta até onde Deus duvida, imagine nos rincões da Amazônia. É preciso mostrar o tempo todo que há regras e deixar claro quais são as consequências de fugir delas.
Resolvi entrevistar alguém que entende do tema que é um mistério para mim e para a maioria dos brasileiros. Entrei em contato com Renato Farias, biólogo, diretor do Centro de Vida, uma ONG que atua na área amazônica do Mato Grosso com desenvolvimento sustentável. Morador de Alta Floresta há 40 anos, ele é filho de agricultores da região. Foi lá que estudou em escola pública e se formou. É junto de gente como ele, filha de quem ganha o pão com a terra, que trabalha para promover o desenvolvimento sustentável da região.
Convido você a abandonar os clichês e os preconceitos, esquecer a necessidade de mitar o tempo todo e compreender como é a rotina de quem vive na floresta mais importante do mundo. Aqui falamos de amor pela nossa terra, pelo nosso Brasil, pelas nossas raízes. Falamos de sonhos de futuro e necessidade de um mínimo de seriedade das autoridades públicas, todas elas em vários governos.
Conheçam um pouco da porção da Amazônia onde vive Renato Farias, um lugar em que agricultores bolsonaristas não querem mais incêndio e que ambientalistas são filhos de agricultores interessados melhorar a qualidade de vida de suas próprias famílias. Para quem está no meio do fogo, pouco importa o bate-boca dos políticos e seus seguidores fanáticos, interessa poder trabalhar e garantir o sustento também das próximas gerações.
Madeleine Lacsko - Eu li no site que o ICV faz um trabalho de preservação levando em conta a necessidade de desenvolvimento das pessoas e da região. Como exatamente vocês atuam?
Renato Farias - Eu sou morador de Alta Floresta há 40 anos, trabalho com meio ambiente desde 1994 e no ICV desde 2009. Todos nós lá somos filhos de agricultores, vinculados à agricultura, sociobiodiversidade e melhoria da qualidade de vida da população.
Em termos de agenda de trabalho, temos dois escritórios e uma atuação avançada.
O escritório de Cuiabá cuida das agendas políticas, levantamento de dados e transparência, trabalha junto ao governo. O escritório de Alta Floresta, fica no norte do Estado, no Portal da Amazônia e tem a maior equipe. Temos também operação em Cotriguaçu, no noroeste do MT.
A região Norte é mais consolidada, mais aberta, tem mais pecuária. Já a região noroeste, é mais extrativista, com áreas indígenas e assentamentos.
Nós temos uma “visão territorial”, discutimos a integração e como os atores que estão na região trabalham para o desenvolvimento a médio e longo prazos.
No final da década de 90 e início dos anos 2000 também tivemos um momento de crises ambientais. Houve alto índice de queimadas, chegamos a ficar sem pousos e decolagens, virou uma questão de saúde para as crianças.
Naquela época, criamos o programa “fogo emergência crônica”, que tinha o objetivo de- reduzir a zero as queimadas, um trabalho com o poder público e empresários locais, discutindo de forma mais ampla o efeito das queimadas. Acabamos desenvolvendo um trabalho bem relevante na discussão da pecuária
A nossa relevância nasceu de uma demanda: as ONGs e ambientalistas falavam de sustentabilidade, mas não mostravam como.
Nós mostramos que era possível utilizar áreas que precisavam se restauradas e que o tipo de pecuária na região estava muito arcaico. As técnicas novas já estavam aí desde a década de 70.
Desenvolvemos parcerias com a Embrapa e parceiros locais. Áreas que estavam abandonadas ou degradadas poderiam render ao proprietário 10 vezes mais. Isso, sem falar numa redução de praticamente 90% de carbono por quilograma de carne. Isso gerou uma agenda local e hoje Alta Floresta é reconhecida ou está no cenário como uma das regiões com um dos melhores projetos na agenda de produção de carne bovina do mundo.
Até tivemos uma discussão sobre isso com o McDonald’s, que defendia não comprar nada que viesse da Amazônia. Não é não se comprar da Amazônia, mas como comprar, quais compromissos e critérios têm de ser estabelecidos para efetuar uma compra.
ML - Vocês têm projetos com o Fundo Amazônia?
É uma outra agenda bastante significativa, o Projetos Redes Socioprodutivas. Nós esperamos um pouco para entrar no Fundo Amazônia porque queríamos que ele estivesse mais estruturado. Fizemos um projeto de apenas 30 meses, curto prazo, pensando na renovação dele.
Atuamos em 6 municípios. Em 2, no norte do Estado, trabalhamos com agricultura familiar envolvendo 4 cadeias: leite, café, cacau e hortifruti para abastecer a região com alimentos de qualidade.
Nos 4 municípios do Noroeste, trabalhamos mais com extrativismo, o babaçu, que é uma palma muito legal e a castanha do Brasil, inclusive fazendo um processo de inovação ampliando a discussão entre pequenos agricultores e o setor privado sobre manutenção da floresta;
Esse projeto do Fundo Amazônia atua diretamente com 600 famílias, sem contar o potencial indireto e a capacidade de ampliação. Nós tratamos do seguinte arranjo: organização, produção, beneficiamento e comercialização. Não é só o trabalho nas propriedades, é o trabalho fora também, de comercialização. É o trabalho de comercialização e, consequentemente, o aumento de renda e, consequentemente a melhoria de qualidade de vida e da relação entre a produção e a conservação na região.
ML - O presidente disse que não precisamos do dinheiro do Fundo Amazônia...
RF - Sobre não precisar do recurso, é um pouco de efeito direto. É um trabalho que vem de doação, um trabalho que já está na região há 10 anos. Outras organizações também participam.
Não se precisa desse recurso para fazer esse apoio a milhares de famílias. Mas quais são as políticas públicas que vão vir para colaborar com essa agenda?
Chega a ser doído imaginar, por exemplo, que esse recurso não vai chegar. Um recurso de doação, com uma agenda gerida por brasileiros, dentro do BNDES, cheio de restrições, cheio de burocracias que a gente tem de cumprir, com análise posterior até 5 anos depois do fim do projeto.
Também temos de pensar que, aqui, esse é o recurso que vai no mercado, que vai nas cooperativas, nas associações, é o salário das pessoas. Não são pessoas “importadas”, não são consultores, são filhos de agricultores também
Tem uma certa simplicidade nessa retórica que deixou de ouvir quem está aqui na ponta. Acho que, se ouvir os agricultores beneficiados, mesmo os que votaram no atual governo. A questão não é essa, não é esse ou aquele governo, a questão é a necessidade que a gente tem de apoio a esses grupos nessa vastidão da Amazônia tão complexa, que é o nosso trabalho do dia-a-dia.
ML - O presidente Bolsonaro fez acusações sem provas de que ONGs estariam colocando fogo na mata para abalar o governo. Já houve algum indício disso? Como essa fala foi recebida pelo terceiro setor?
RF - Sobre essa fala de que as ONGs são responsáveis, eu confesso que nem sei o que te falo, porque é tão fora da realidade… Eu cheguei aqui há 40 anos, ainda no governo militar, estudei aqui em colégio público, com militar, com Educação Moral e Cívica, OSPB, essas coisas. Fiz universidade aqui, meus pais estão enterrados aqui, minhas filhas nasceram aqui. A gente tem uma agenda super positiva com o nosso território. É tão descabida essa fala...
Somos daqui, queremos o bem daqui, trabalhamos para que essa região se desenvolva muito e que ela seja igualitária, que respeite todos os tipos de grupos.
Quando nos dispomos a trabalhar num território, a gente acaba tendo que dialogar com todos os setores, não só com parte deles.
ML - Este artigo de vocês mostra as queimadas este ano. Tem alguma comparação com anos anteriores?
RF - É importante a gente saber que, em 2014 para 2015, houve uma significativa redução das operações de comando e controle. Isso, ao longo dos anos, vai emitindo sinais principalmente para aqueles grupos que pensam na irregularidade ou na ilegalidade, que é avançar sobre áreas, fazer queimadas, fazer grilagem.
Isso se intensificou no início do atual governo, principalmente pelas mensagens que o Ministério do Meio Ambiente acabou por colocar. A própria desestruturação desses órgãos federais. Na mensagem de que ia estruturar, mas vai demorar um tempo para isso. Mas e esse período? Como fica.
Se as ferramentas que nós temos para alertar as autoridades não resultam em nada, a tendência é que amplie o desmatamento e, na sequência, áreas que estão com fogo, ampliam.
A ampliação disso se dá vinculada a uma ausência e aos sinais dados. A questão principal são os sinais dados. Porque a imensidão da Amazônia, a complexidade que se dá e essa informação que chega, parece que tudo pode. Ou não pode, mas a gente não sabe como vai combater o que não pode. Esses sinais acabam alavancando de novo uma agenda negativa.
De 90 a 95% das queimadas nos últimos anos, sempre foram apresentadas como desmatamentos na linha da ilegalidade. O sinal tem que ser de ação e não o sinal de que estamos pensando ou vamos ver como isso vai ser no futuro.
ML - Há como reverter o que foi perdido com as queimadas?
RF - Uma coisa importante entender é que há um sentimento aqui na ponta que as pessoas não querem que o quadro se amplie. Há um trabalho por parte da sociedade e, quando a gente fala sociedade, não só sociedade civil, tem também o terceiro setor, que é compreendido de forma equivocada.
As ONGs apóiam também agendas das empresas ou dos governos como, por exemplo, a campanha do soro caseiro e a campanha do combate à pobreza. O Terceiro Setor existe para complementar a agenda do governo.
A sociedade local e o empresariado estão em busca de soluções. A grande questão de reverter o quadro são as cicatrizes que essa agenda de destruição vai deixar ao longo do tempo. Vincular a produção do país a uma agenda de sustentabilidade é o principal ativo que a gente tem.
Essa visão a meu ver muito equivocada de que a Amazônia poderia ser aberta para mais produção. A gente já tem uma área de tamanha vastidão com condição de produção a partir de uma melhora no modelo de produção. Então, eu acho que falta uma análise profunda sobre isso.
Eu acho que a gente vai sofrer tanto na questão da biodiversidade quando na relação do agronegócio. Vários ex-ministros do Meio Ambiente deram alerta sobre a preocupação com os nossos produtos no exterior. O Blairo Maggi (grande produtor rural e ex-ministro da Agricultura) falou que a gente tem de entender que não somos os únicos produtores do mundo: se a gente perde mercado, vem outro e ocupa. E a gente está passando a mensagem que esses produtos estão vindo de áreas com devastação da floresta amazônica.